Para o budismo, a “natureza do Buda” está presente em cada
ser, ainda que de forma apenas latente nos seres sem as faculdades intelectuais
para manifestá-la, como no caso dos animais.
A qualidade específica dos seres humanos
refere-se à capacidade de utilizar de maneira plena essa natureza. A compreensão
dessa grande vantagem que temos, sem dúvida confere um valor inestimável à
condição humana. Todavia, longe de gerar desprezo pelas outras formas de vida,
ela incentiva o budista a vivenciar uma compaixão ainda maior pelos seres
imersos na ignorância de modo mais profundo do que ele, e o budista se esforça
em sanar o sofrimentos desses seres. Do ponto de vista do budismo, é inadmissível utilizar a inteligência
humana para explorar outros seres.
No Sutra da Descida a Lanka, um dos sermões do Buda Sakyamuni pronunciados há 2.500 anos, lemos :
Mas que tipo de virtude praticam esses seres? Enchem o ventre
de carne animal, espalhando o medo entre os animais que vivem nos ares, nas
águas e sobre a terra! [...] Os praticantes do Caminho devem se abster de
carne, pois comê-la é fonte de terror para os seres”
Quando o budista escolhe seguir o Caminho, pronuncia a
seguinte frase: “Tomo refúgio no Dharma e prometo não prejudicar mais nenhum
ser”. É evidente que essa promessa também se aplica aos animais. Sabe-se que o
budismo rejeita a ideia sustentada pelas religiões monoteístas de que os seres
humanos foram concebidos para ocupar o ponto mais alto da criação, com as
demais criaturas concebidas para satisfazer as exigências dos seres humanos e servir-lhes
de alimento e diversão. Todos os seres são considerados com o direito
fundamental de existir e de não sofrer.
Shantideva, o mestre budista indiano que viveu nos séculos
VII-VIII, resumiu essa ideia num célebre verso: “ Se temos todos um igual
desejo de sermos felizes, por qual privilégio seria eu o único objeto dos meus esforços
para alcançar a felicidade? E se nós todos tememos o sofrimento, por qual
privilégio teria ou direito a ser protegido, eu apenas e não os outros?”
Sobre isso o Dalai Lama comenta :
Devemos proteger os outros do sofrimento da mesma forma como
faríamos com nós mesmos, e devemos nos preocupar com o bem-estar dos outros
tanto quanto com o nosso. Quando protegemos nosso corpo, nós o consideramos
como uma entidade única e protegemos também todas as suas partes. Mas os seres
formam um conjunto, pois partilham a dor e a alegria, e todas as partes desse
conjunto devem ser tratadas da mesma maneira.
Dalai Lama |
Como definir o que é um “ser sensível”?
Um ser considerado “sensível” é um organismo vivo, capaz de
diferenciar bem-estar de dor e de fazer a distinção entre as diversas formas de
ser tratado, ou seja entre as diferentes condições propícias ou nefastas à sua sobrevivência.
Um ser sensível também é capaz de reação consequente, de modo a evitar ou se
afastar do que poderia interromper sua existência, buscando o que lhe for favorável.
No budismo tibetano, por exemplo, os seres são designados pela palavra ‘gro ba
que significa a ação de “ir”, no sentido de ir “na direção” do que lhe for favorável
e de “se afastar” do que lhe for nocivo.
Subjetiva ou não, a tendência natural até mesmo de uma
minhoca é a de continuar viva. Para tanto, não é preciso que ela disponha das
capacidades intelectuais necessárias para a formação de conceito de “dor”, “existência”
ou “finitude”. O budismo faz assim uma diferença entre a reação instintiva de
uma animal minúsculo, que se afasta de um estímulo nocivo em potencial, e a
reação, puramente mecânica, da flor que se inclina em direção do sol por
fototropismo. Os movimentos das plantas são inteiramente comandados por fatores
externos. A planta não tem escolha e, num dado momento, apenas uma direção de
movimento é possível. Enquanto o metabolismo vegetal é imediato, o animal pode
postergar sua ação.
Nos organismos mais rudimentares, essas reações não
espelham, é claro, uma ação refletida ou uma experiência subjetiva de “bem-estar”
ou de “sofrimento”. Essas reações fazem parte, no entanto, de uma continuidade,
cuja complexidade gradual leva ao aparecimento de um sistema nervoso, o qual
passa então a permitir a percepção das sensações de dor e, em seguida, a consciência
subjetiva da dor. Ter em conta essa continuidade deve, portanto, nos levar a valorizar
e respeitar toda forma de vida.
Budismo e vegetarianismo.
Nem todos os budistas são vegetarianos, e os textos não são
unânimes em condenar o consumo de carne. Determinados sutras do Grande Veículo,
o Mahayana, são, porém, inequívocos, como o Sutra da Descida a Lanka que declara
:
Para não se tornar fonte de terror, as pessoas na condição
de vida do bodisatva, que manifestam uma vida plena de benevolência, não devem
se alimentar de carne. [...] A carne é um alimento para os animais ferozes, é
impróprio dela comer. [...] Matar animais por lucro, trocar mercadorias por
carne, ambas são más ações: um mata, o outro compra, os dois cometem erro.
Da mesma forma, no Sutra do Grande Parinirvana, o Buda diz: “Comer
carne destrói a compaixão”, e aconselha seus discípulos a se afastarem do
consumo da carne “da mesma forma como rejeitariam a carne de seus próprios
filhos”. Muitos mestres tibetanos também condenaram o consumo da carne animal.
O imperador Ashoka, que se tornou adepto do budismo e do
vegetarianismo no mesmo momento, promulgou vários decretos, 150 anos após a morte
de Buda, para que os animais fossem tratados com benevolência. Em especial, ele
ordenou a inscrição de preceitos em grandes pilares exigindo que seus súditos tratassem
os animais com bondade e proibiu os sacrifícios animais em seu território.
Ashoka |
Os budistas chineses e vietnamitas são estritamente
vegetarianos. Os tibetanos vivem num elevado planalto recoberto de imensas
pradarias que apenas permitem a criação de rebanhos de iaques, cabras e
carneiros. Renunciar ao consumo de carne sob tais condições implicava, até
pouco tempo, limitar a alimentação à manteiga, iogurte (no verão) e tsampa, a
tradicional farinha de cevada tostada. Essas condições levaram as populações,
em grande parte nômades, a viver de seus rebanhos, e os tibetanos, em sua maioria,
gostam muito de carne.
No entanto, eles têm consciência do aspecto imoral do seu
comportamento e procuram saná-lo, abatendo apenas a quantidade de animais estritamente
necessária para que sobrevivam. No exílio, na Índia ou no Nepal, é crescente o número
de mosteiros tibetanos que não permitem a carne nas refeições preparadas em
suas cozinhas.
Shabkar |
Para o budista, em geral, ser vegetariano ou vegano (sobretudo
nos países industrializados) é um modo de manifestar sua compaixão pelos animais.
Ao contrário dos hindus vegetarianos, para o budista a carne não é “impura” por
si mesma. Para ele, não haveria nada de errado, em princípio, em comer animal
morto de forma natural.
Além disso, muitos praticantes budistas compram com
regularidade os animais destinados ao abate, para soltá-los na natureza ou em
locais de refúgio, onde serão bem tratados.
Por exemplo, lemos na autobiografia
do eremita tibetano Shabkar, que viveu nos séculos XVIII-XIX, que durante sua
vida ele salvou centenas de milhares de animais da morte.
No Tibete, os animais
cuja vida é assim “comprada” terminam seus dias em tranquilidade com o restante
do rebanho. Essas práticas são ainda correntes entre os fiéis budistas. No Butão,
onde predomina o budismo, a caça e a pesca são proibidas no país todo.
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Texto retirado do livro : "Em defesa dos animais - direitos da vida", de Matthieu Ricard
1 comment:
"Não me interessa nenhuma religião cujos princípios não melhoram nem tomam em consideração as condições dos animais" (Abraham Lincoln). Se quero ser feliz, não infelicito; se quero viver, não mato.
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