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Friday, May 11, 2018

Teatro - Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens


“Impactado”

Este foi o termo que definiu minha sensação ao final da peça “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, do Grupo Coletivo Negro (SP), ontem à noite no Teatro do Sesc.

Baseada em depoimentos de jovens negros, e com texto apoiado nas letras e discursos dos Racionais MCs, “Farinha” é uma “peça-show” absurdamente sensorial que te deixa travado na cadeira com uma encenação de cair o queixo.

Um “performer”, Jé Oliveira (absolutamente fantástico), um Dj premiado e uma banda. Pronto! Tá montada a tribo que incendiou o teatro com uma pajelança desconcertante.

Fiquei zonzo, bestializado.

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Mesmo pegando um recorte específico da questão do negro brasileiro (meninos e homens heterossexuais negros das favelas e subúrbios de São Paulo), acredito que nunca o grito da negritude tenha ecoado de forma tão vigorosa e combativa na cena brasileira.

O painel foi imenso.
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No lado social, a questão do homem de cor periférico, sua família, suas brincadeiras, sua memória e relações. Seu cotidiano permeado pela violência, pela banalização da morte, pelo constante alerta e defesa. Sua vivência sob o peso do preconceito, do rebaixamento, da exclusão. Seus sonhos, anseios. Sua sexualidade e afetos.

No lado político, a consciência moldada a partir da descoberta de ícones como Malcom X, Zumbi e Racionais MCs. A descoberta de textos que espelham dores, a descoberta de conteúdos que discutem, enraízam e definem. A identidade construída a partir daquilo que representa, que dá voz.

Do lado musical ..... méldéls, que maravilha !
Marvin Gaye, Jorge Benjor, Cheryl Lynn, Kool and The Gang, Hyldon, Cassiano, Jackson Five, James Brown, rap, jazz, samba, funk . Isto sem falar, é claro, do rap poderoso e onipresente dos Racionais.

Mas, tirando este lado festivo que dá uma aliviada na parada, confesso que a peça me assustou.

Nunca na minha vida tinha visto tão de perto tanta raiva, indignação, revolta e palavras de ameaças tipo “... se liguem, a coisa vai virar...”, “... se liguem, Zumbi tá voltando ...”, com olhares intimidadores para a plateia.

Mêêêdoooo.

Tanto que, no final, quando eles entraram com umas armas tipo metralhadoras, me caguei todo. Pensei “é agora que vou ser esburacado”.

Mas não. As tais “armas” eram, na verdade, potentes lanternas que projetaram “Todo poder ao povo” nas paredes do teatro.

Ufa !

Mas o discurso enfurecido rola o tempo todo durante a encenação, quase sem refresh.

Não tem como não ser afetado.

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Fora as dores sociais que são trovejadas direto, a peça insere uma homenagem à Marielle (necessária) e, como não poderia deixar de ser, ao “metalúrgico barbudo preso em Curitiba”.

Ai meu cú! De novo? Que bela bosta.

Mas, o que foi legal, é que quando rolou a tal “homenagem ao Lula”, o povo simplesmente não se manifestou (como tinha se manifestado no caso da Marielle).

Um silêncio constrangedor tomou conta do teatro.

Aí o Jé Oliveira ficou meio sem chão e emendou um “ ... agora tem que mandar pra cadeia também o Aécio e o Temer...”.

Ai sim o povo aplaudiu.

Que merda . Por que sempre tem quer rolar “Lula Livre !”, “Salvem o Lula!”, “Free Lula!” em tudo que é peça?

Isto sem falar que eles também deram um jeito de debochar do Moro através de uma “bandeira-cortina-pano” provocativa.

Mas, enfim, estas babaquices não inutilizaram o conjunto da obra.

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E que obra !

Durante o espetáculo eu pensava

“Esta porra – apesar de violenta e assustadora - deveria estar nas escolas, nas praças, nas igrejas, no congresso, nos salões, nas comunidades, na televisão, na internet.

Esta porra deveria ser jogada na cara da sociedade, no seio da família brasileira, e assim, quem sabe, contribuir para provocar mudanças e transformações reais”.

Super.

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No final, o grupo propôs um debate com os presentes.

Foi a oportunidade para eu me manifestar e dizer que, por ser branco, tive a impressão de que não tinha conseguido entender, captar todo o discurso encenado.

E também comentei que, por ser “das antigas”, vinha de uma tradição na qual o samba (tipo Martinho, Beth, Bezerra), davam voz às questões da negritude. E que o que eu percebia é que agora este lugar tinha sido ocupado pelo Rap.

A questão de “não entender tudo o que foi visto” foi reforçada pela manifestação de uma mulher negra (que reclamou de não ter visto a questão da mulher negra em cena), e por uma bixa negra (que reclamou de não ter visto a questão das bixas negras em cena).

A isto, o elenco respondeu que o recorte da peça é muito específico (jovens negros heterossexuais), mas que eles buscaram expandir o discurso para abarcar a maior identificação possível com o público (inclusive com os brancos).

Verdade. Apesar de eu não ter entendido tudo, não teve como não me identificar e compreender (com) muito do que foi visto.

Já quanto ao rap ter tomado o lugar do samba na questão da representatividade negra, houve uma concordância.

Sim, o rap, o grito de revolta e resistência oriundo dos guetos americanos, ecoou nas favelas e periferias do Brasil e passou a ser o seu meio de expressão mais autêntico.

Muito bom.

Valeu demais.

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Irada, furiosa e necessária.

Tomara que a peça volte a Porto Alegre e mais pessoas a assistam.

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