Hino do Blog - Clique para ouvir

Hino do Blog : " ...e todas as vozes da minha cabeça, agora ... juntas. Não pára não - até o chão - elas estão descontroladas..."
Clique para ouvir

Monday, October 24, 2005

Falando Merda

Image hosted by Photobucket.com

O que é “falar merda”? Qual a diferença entre mentir e “falar merda”? O filósofo e professor da Universidade de Princeton, Harry Frankfurt se propôs a estudar o assunto.

Para ele a mentira está associada diretamente à ocultação de fatos, de acontecimentos. O mentiroso tem noção de que está deliberadamente negando a verdade acontecida e conhecida por ele. Já o falador de merda não está nem aí para a verdade; o que realmente lhe interessa é projetar um imagem, é tentar convencer o outro com argumentos soltos, argumentos sem ligação com suas próprias convicções.

Um exemplo prático de falação de merda pelo qual passei neste mês : eu estava em um grupo de convivência onde foi colocado o tema “a paz” para discussão. O primeiro companheiro a se manifestar discorreu lindamente e utopicamente sobre a beleza de se viver numa sociedade harmoniosa, de se viver num mundo de fraternidade e amor. Disse que, como forma de contribuir para construção deste Éden terrestre, a ação dele só se pautava pela tolerância, pela não violência, pela não reação, pelo perdão. Que preferia ser agredido a agredir, morrer a matar. Foi de encher os olhos d´agua. Fui ficando cada vez mai puto enquanto o ouvia.

Logo que ele acabou sua “mensagem”, pedi a palavra e, assumidamente, reconheci que, apesar de ter achado o discurso muito bonito, não concordava. Disse que para mim, quando provocado ou incitado, a natureza do homem o impele à reação, ao revide. É claro que o desenvolvimento da sabedoria, da razão e outros objetos nobres da personalidade podem amenizar estes instintos primários mas nunca eliminá-los totalmente.

Após me ouvir (e mais outras manifestações semelhantes) o companheiro-Gandhi voltou a pedir a palavra e, num surto de lucidez, disse que na juventude participara de violentas brigas de gangue e que até hoje tem ganas de matar um determinado rival. Que quando vê tal figura na rua tem ímpetos homicidas (veja só...). Além disto, acrescentou que tem uma filha de dois anos e que para ele é um exercício para se acalmar toda a vez que a criança demanda atenção ou faz birra. A partir deste momento comecei a gostar dele pois senti que agora a verdade fluía.

Este é um exemplo de falação de merda, ou seja aquelas falas vagas, formatadas em generalidades e desassociadas de certezas, desassociadas de experiências reais próprias. São expressões ôcas, vazias, incondizentes com as ações de quem as profere. São discursos onde a crença e a verdade são mascaradas, maquiadas através de belos filtros construídos para enganar os incautos.

Eu fora...

Segue abaixo duas resenhas sobre o livro “Sobre Falar Merda” do Harry Frankfurt e que está sendo lançado agora no Brasil

"Sobre Falar Merda" chega ao Brasil em tempos de CPIs

Camila Marques (da Folha Online)

Em tempos de CPIs e tantos discursos políticos exaltados transmitidos ao vivo do Congresso Nacional (deputados e senadores, algumas vezes, mais querem aparecer do que questionar depoentes e testemunhas), chega ao Brasil o livro "Sobre Falar Merda" (ed. Intrínseca, R$ 19,90 - 68 págs), escrito pelo mais celebrado filósofo moral da Universidade de Princeton (EUA), Harry G. Frakfurt.

O título original é "On Bullshit", expressão em inglês usada para desqualificar algum tipo de fala ou declaração. Nos Estados Unidos, a obra já está na décima edição --se tornou o primeiro livro editado por uma universidade a liderar o ranking dos mais vendidos do jornal "The New York Times". Se depender do título, deve fazer o mesmo sucesso por aqui.

O pequeno tratado, já que são apenas 68 páginas, tenta definir o que é, de fato, falar merda. "Um dos traços mais notáveis de nossa cultura é que se fala tanta merda. Todos sabem disso. Cada um de nós contribui com sua parte. Mas tendemos a não perceber esta situação", começa Frankfurt.

Aos poucos, de modo até certo ponto acadêmico --afinal, Harry Frankfurt é filósofo e professor--, ele cita outros estudiosos do tema e discute definições de dicionários e livros para termos como falação, impostura, conversa fiada, lorota, charlatanice e, claro, merda. Importante ressaltar que, mesmo acadêmico, o texto é de fácil compreensão.

Uma das questões centrais do livrete é diferenciar os atos "falar merda" e "mentir". Com exemplos concretos e interessantes, Frankfurt detalha que o falador de merda quer apenas passar uma impressão diferente sobre si mesmo, não sendo esta necessariamente falsa ou mentirosa. Ao fazer isso, diz o filósofo, a pessoa não está nem aí para verdade e os fatos.

O mentiroso, porém, esconde fatos que conhece. Inventa deliberadamente sua história, mas respeita a verdade, mesmo fugindo dela. Justamente por conta do desrespeito pela verdade é que o falador de merda, para Frankfurt, é mais perigoso que aquele que mente.

Um dos exemplos de Frankfurt remete a um orador do Quatro de Julho, data da independência americana --um correspondente brasileiro seria facilmente encontrado. Em um inflamado discurso, o homem dirá: "Somos um grande e abençoado país, cujos fundadores, sob orientação divina. criaram um novo começo para a humanidade!"

Segundo Frankfurt, o orador não está mentindo, porque não tem a intenção de provocar na platéia crenças que considere falsas. Mas também não se importa com o que a platéia pensa sobre os fundadores do país e o papel da divindade na história dos EUA. "A opinião dos outros sobre ele é o que o preocupa. Ele quer ser considerado um patriota", explica Frankfurt.

O filósofo continua a divagação dizendo que, atualmente, parece "inevitável" não falar merda. Por quê? A teoria dele: "É inevitável falar merda toda vez que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está dizendo". E nos dias de hoje, em que todo mundo precisa ter opinião sobre tudo (é quase um dever cívico, polemiza Frankfurt), se fala a primeira coisa que se vem à cabeça, seja ela coerente ou não com a verdade e os fatos.

E não é exatamente essa a postura de tantos políticos, publicitários, comerciais, artigos etc.? "Dane-se o conteúdo, o que vale é falar bonito" ou "dane-se se é verdade, o que importa é vender bem". "Sobre Falar Merda" diz que sim.

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

O Globo

Um filósofo americano explica por que esta crise não cheira bem

"Sobre falar merda", de Harry G. Frankfurt. Tradução de Ricardo Gomes Quintana. Editora Intrínseca, 68 páginas. R$ 19,90

RIO - Numa carta datada de 4 de abril de 1654, o padre António Vieira faz esta advertência a D. João IV, Rei de Portugal: "Me manda V. M. diga meu parecer sobre a conveniência de haver neste estado ou dois capitães-mores ou um só governador. Eu, Senhor, razões políticas nunca as soube, e hoje as sei muito menos; mas por obedecer direi toscamente o que me parece. Digo que menos mal será um ladrão que dois; e que mais dificultoso serão de achar dois homens de bem que um".

O trecho, de uma previdência e concisão admiráveis, torna ainda mais deprimentes, se é que isso é possível, pelo menos dois aspectos da atual crise política: os sinais de que a corrupção continua sendo uma prática rotineira nos altos postos do Estado brasileiro, por um lado, e a retórica pobre e vazia daqueles que se dizem dedicados a combatê-la, por outro.

Quem acompanha as investigações sabe que o palavrório dos interrogadores pode ser mais enervante do que as negativas dos interrogados. No entanto, enquanto depoentes recorrem à Justiça para não serem obrigados a falar a verdade, ninguém precisa ir ao STF para garantir o direito de fazer discursos entediantes em vez de perguntas. Todos concordamos, afinal, que falar besteira cansa, mas não é nem de longe uma falta tão grave quanto mentir.

Pois Harry G. Frankfurt discorda. Ele é o autor de "Sobre falar merda", ensaio que procura definir o significado preciso de um fenômeno tão disseminado (é uma "ubiqüidade impublicável", nos dizeres do New York Times) quanto pouco estudado: "bullshit", no original em inglês, ou o falar merda na tradução. Filósofo e professor da Universidade de Princeton, Frankfurt escreveu o ensaio em 1985, para apresentá-lo num grupo de estudos. O texto foi publicado em 1988 numa reunião de ensaios e em algum momento começou a circular na internet. Só no início do ano, por sugestão de seu editor, Frankfurt concordou em lançá-lo num volume único, embora o achasse muito curto para isso.

O livrinho foi um sucesso. Chegou ao primeiro lugar na lista de mais vendidos do NYT e há planos para traduzi-lo em mais de dez idiomas - o que demonstra a amplitude do fenômeno estudado: "Um dos traços mais evidentes de nossa cultura é que se fale tanta merda. Todos sabem disso. Cada um de nós contribui com sua parte", como constata o autor. Mas os méritos de "Sobre falar merda" não se resumem à pertinência do tema. Sua maior qualidade é demonstrar que é possível escrever com graça e clareza sem abrir mão do rigor intelectual (atributos raros tanto em trabalhos acadêmicos quanto, num outro extremo, no trabalho de autores mais interessados em vender a filosofia do que praticá-la).

Frankfurt procura definir o falar merda através de uma comparação com outras formas de desonestidade: a mentira, o blefe, a dissimulação. Sua conclusão é que ele não apenas é um fenômeno distinto de todos esses, como também é, de todos, o mais danoso à verdade, porque sua essência é uma "falta de preocupação com a verdade", ou "indiferença em relação ao modo como as coisas realmente são" (uma distinção importante para o leitor brasileiro é a que Frankfurt faz entre falar merda e o que ele chama - o tradutor, na verdade - de falação: uma conversa descompromissada, em que os envolvidos sabem que ninguém está necessariamente convicto do que diz; definição próxima ao significado comumente atribuído à expressão "falar merda" no Brasil).

Friday, October 14, 2005

Antes de ser uma mulher, sou um menino...

Image hosted by Photobucket.com

Um dia eu vou crescer, serei uma bela mulher
Um dia eu vou crescer, serei uma bela garota...
....
Mas por enquanto sou uma criança, por enquanto sou um menino
Por enquanto sou uma criança, por enquanto sou um menino...
...
Um dia eu vou crescer, sinto o poder em mim
Um dia eu vou crescer, tenho certeza
Um dia eu vou crescer, sei de um útero dentro de mim
Um dia eu vou crescer, sinto isto pleno e puro
...
Mas por enquanto sou uma criança, por enquanto sou um menino
Por enquanto sou uma criança, por enquanto sou um menino
-----------------------------------------------------------------------

Este é um trecho da música “Por enquanto sou um menino (For today I am a boy)" , cantada e tocada com toda a carga de emoção que caracteriza a banda Antony and the Jonhsons.

A primeira vista é uma letra chocante que tanto pode falar de um transexual, um travesti, um esquizofrênico ou qualquer coisa associada a “patologias de identidade”.

Sim, pode-se ter esta leitura óbvia e imediata. Mas para mim esta é uma belíssima letra que fala da serenidade da certeza. Fala da quietude certa, da convicção do espírito que surge depois que findamos seja qual for a luta que travamos com os fantasmas das nossa mente.

E o final deste embate nos leva a um local onde nossa alma pode repousar já distante da dúvida, da hesitação. Onde o conjunto se fecha e o universo se encontra; onde a natureza aflora, os caminhos são claros, o sonho encontra seu destino.

Mas esta não é uma conquista sem dor, sem sofrimento, sem solidão. É o resultado de uma luta interior; é o resultado da nossa coragem de olharmos para nós mesmos, de buscarmos nossa essência, nossa força ativa.

E, como diz a letra, muitas vezes este encontro com nossa verdade faz com que nos recolhamos, faz com que escondamos esta luz de liberdade em um “útero” até que o nascimento se faça.

--------------------------------------------------

FOR TODAY I AM A BOY (From the album “I Am a Bird Now”)

One day I’ll grow up, I’ll be a beautiful woman
One day I’ll grow up, I’ll be a beautiful girl
One day I’ll grow up, I’ll be a beautiful woman
One day I’ll grow up, I’ll be a beautiful girl

But for today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy

One day I’ll grow up, I’ll feel the power in me
One day I’ll grow up, of this I’m sure
One day I’ll grow up, I know a womb within me
One day I’ll grow up, feel it full and pure

But for today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy

For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy

Thursday, October 06, 2005

Desejo, necessidade, vontade...

Image hosted by Photobucket.com

Semana passada eu transportei um cadáver no meu carro. Não, isto não é uma figura de linguagem, metáfora ou qualquer coisa assim. È verdade. Uma grande amiga tinha que fazer o translado dos restos mortais de um familiar de um cemitério para outro e eu me ofereci para realizar o transporte. Foi uma experiência digamos “intensa”, tanto para mim quanto para ela. Sem entrar no mérito da ação, o que posso dizer é que tanto eu quanto ela saímos diferentes da situação, nossas emoções ficaram diferentes e isto é o que importa no meu ponto de vista.

Isto me fez lembrar de várias outras situações onde me senti motivado a provar “o novo”, a sair da casca, a arriscar. Por exemplo, em outra ocasião fui conhecer um clube de swing (troca de casais), com uma outra amiga enlouquecida. Morríamos de mêdo do que poderia acontecer, mas, no final, achamos legal, curioso e acabamos nos divertindo (vejam bem, no sentido familiar do termo...).

Também já passei um carnaval inteiro num congresso de ufologia vendo filmes e slides de ets, ouvindo diversas teorias da conspiração e batendo fotos com abduzidos.

De outra feita eu e meu companheiro viajamos até outra cidade para conhecer um grupo de cristãos gays (sim, isto existe) que realizam um excelente trabalho social (educacional, prevenção a aids, inclusão, apoio emocional, etc). Fomos bem recebidos e acabamos criando bons laços de amizade.

Também já transitei por serviços voluntários, religiões, grupos políticos e sociais, terapias alternativas ...e por algumas áreas bem menos ortodoxas...

O que eu quero dizer com tudo isto?

No meu entender não adianta ficarmos esperando que a novidade, o inusitado, algo que instigue bata a nossa porta. Não adianta querermos viver o novo, enriquecer nossa biografia, querermos passar por experiencias diferentes, querermos que as coisas aconteçam sem que antes façamos um movimento em direção ao risco, ao inusitado para nossa mente.

Todos temos desejos, curiosidades, fantasias (em vários níveis : emocional, cultural, social, religioso, sexual, etc). Isto é natural. Porém, o que fazemos em relação a isto? O que nos impede de arriscarmos? Palavras como “estranho”, “excêntrico” e “diferente”, relacionadas com alguma vontade nossa, tornam-se mansas quando nos permitimos.

Nossa mente nos aprisiona : pudores, preconceitos, preocupação com opiniões alheias, falta de coragem ou companhia muitas vezes nos impedem de buscar algo que nos interessa, algo que provoque nosso conhecer, que nos introduza no desconhecido. Esta prisão nos engessa, nos tranca e faz com que entremos cada vez mais num processo de lamentação a respeito da rotina, da falta do novo. Ou então passamos a cultivar sonhos e esperanças de que algum dia ocorra uma mudança e o inesperado faça com que as coisas comecem a acontecer tirando-nos da letargia.

Limites existem – é aquela velha história : nossa liberdade acaba quando inicia a do outro-; mas onde existe intenção, espaço e respeito, tudo pode acontecer.

A vida é ampla. As coisas estão aí, as possibilidades existem, as experiências nos aguardam.. Neste universo cabe a nós decidirmos o que fazer com aquilo que intensifica nossa vontade, que aguça nossa curiosidade. Porém o certo é que não há como gerar transformação, evolução e realização sem ação, sem força, sem coragem, sem disposição ao movimento.

Qual é nossa escolha?

Saturday, October 01, 2005

Robôs fúteis

Image hosted by Photobucket.com

Há alguns dias me vi numa situação inesperada de saia-justa. Estava eu em um
cinema aguardando para entrar na sala de projeção quando me vi frente a frente com uma colega da academia de ginástica que frequento, famosa por seu estrelismo e culto ao corpo.

Nas aulas de Power Jump e Jump Fit trocamos algumas palavras mas não temos intimidade e muito menos amizade, pois –confesso meu preconceito- a acho um tanto ôca. Pois bem, nos cumprimentamos e ela fez um convite para sentar-me junto a ela e uma amiga.

Eu, sendo educado, aceitei. Mas,ao mesmo tempo, surgiu em mim um certo pânico. Pensei : " o que vou conversar?... que tipo de assunto discutiremos até que a sessão comece?". Confesso que não achei resposta. Assim, em meio a uma certa angústia, num momento de indecisão, solicitei licença e fui ao banheiro. Lá, enquanto lavava as mãos, fez-se a luz : "regime ! malhação!!”.. "é isto!!"... "vou falar sobre cuidados com o corpo!!".

Assim, tranquilo por ter achado o caminho do link temporário, voltei para junto delas. Como faltavam alguns minutos para o inicio do filme, fomos tomar um café. Sentamos e logo puxei o assunto : "e aí como está o regime? ... nas aulas percebo que vc está ótima !" ... Pronto! Foi a deixa! O santo baixou!

Dali para diante tudo rolou tranquilo. Ouvi um tratado completo sobre alimentação, remédios emagrecedores, lipoaspiração, lipoescultura, botox, dietas, melhores tênis, melhores roupas, freqüencia, intensidade, repetições, etc. Fiquei em silêncio durante todo o tempo dos expressos. Eventualmente comentava alguma coisa do tipo "ah, é?", .. "ãh,ãh",... "que bom", .. "veja só".

Logo chegou o horario da sessão, assistimos ao filme e no final nos despedimos com beijinhos. Tudo rápido e indolor.

Depois, voltando para casa, me lembrei de Gustavo Corção em seu "Lições de Abismo" quando ele fala sobre frivolidade, sobre a futilidade, quando ele fala sobre os autômatos, os robôs humanos cheios de botões pré-programados os quais podemos acionar ao nosso bel prazer. Percebi que foi o que fiz com a tal colega. Sabendo, sendo conhecedor da sua programação "sou fanática por regime" , foi só acionar o botão correspondente para que ela agisse de acordo com o formatado, de acordo com o programado.

Agi certo ou errado? .. não tenho o juízo.

Com a palavra Corção ("Lições de Abismo"), onde o narrador relata ao amigo Miguel uma conversa que teve com uma outra amiga (D. Alice) sobre seus problemas com a esposa (Eunice) :

"D. Alice puxou conversa sobre Eunice... Foi uma conversa penosíssima, em que me defendi, para não dizer a milésima parte de nosso segredo. D. Alice, com muita delicadeza , perseguiu-me, cercou-me, querendo convencer-me que a maior falta é a minha, porque não procurei adaptar-me. E terminou a sua defesa dizendo que Eunice "só é um pouco fútil".

Eis aí, Miguel, o que d. Alice acha pouco (a futilidade). E você? Sabe você o que é isso, qual é a realidade dessa monstruosa deformação que merece sorrisos de complacência e rápido perdão?....

Não ignoro que tenho contra mim o quase unânime consenso. A moça bonita, quando sorri à toa, quando faz trejeitos de faceirice e fala sem propósito, parece uma flor da humanidade, um espetáculo estimulante, uma fonte de alegria. Na verdade, porém, a futilidade é uma coisa lúgubre. Não sei se você já viu essas chagas medonhas que roem o nariz, que abrem um buraco no rosto. Vistas sem levar em conta o rosto, o nariz, a boca, a expressão humana enfim, essas chagas têm um luxo de cores a que não recusaríamos uma certa beleza exótica. Postas no homem são um horror. Pois assim é a frivolidade.

O que existe na frivolidade é mais doença do que saúde; mais fixação do que mobilidade; mais morte do que vida. Eu disse fixação. Explico-me melhor : todos nós sofremos na vida certos golpes psicológicos, um susto, uma surpresa maravilhada, uma descoberta dolorosa, que deixam em nós um resíduo. Ora, tudo em nossa vida vai depender da possibilidade de assimiliação desses resíduos. Se conseguirmos dissolvê-los na substância de nossa pessoa, então esses sinais de nossas experiências serão fecundos. Haverá uma experiência propriamente humana, um lucro. Se eu transformar em sangue, em alma, as pedras de meu caminho, terei doravante antenas sensíveis que antes não possuía, serei capaz de intuições que antes me faltavam. Farei versos, descobrirei novos planetas, ou terei simplesmente um harmonioso equilíbrio que me permitirá a dilatação da vida.

O frívolo, ao contrário, é aquele em que o resíduo das experiências encaroçou. Tem pontos sensíveis, botões, teclas de comando, e são movidos de fora para dentro, como os mecanismos. Aperta-se um botão e ele diz "bom dia" encarquilhando os músculos da face. Aperta-se outro botão e ele faz um discurso, se é um ministro, ou atira os cabelos para trás, se é uma moça de vinte e cinco anos...

Conheci uma pobre moça que passou toda a vida e muitos maus pedaços escorada num leit-motiv que viera provavelmente da adolescência. Alguém, certo dia, em certa conjunção favorável de astros, dissera : "Que bom gênio tem Fabrícia!" e desse dia em diante, com a constância de uma vestal, Fabrícia guardara acesa essa divisa. Fez questão de ser fiel a esse compromisso de acaso, conseguindo mesmo um certas situações mais difíceis, um verdadeiro heroísmo na defesa do bom humor sistemático e de empréstimo. Lembro-me que fui vê-la no dia em que o filho morreu atropelado. Chorava como toda boa mãe, mas creio não me enganar muito se disser que vi, por detrás das lágrimas honestas, um clarão que parecia telegrafar-me: "A vida é assim; vou reagir, e vocês verão que bom gênio tem Fabricia."
.....

Em Eunice o painel de comando é formado quase todo pelos desejos contrariados de sua adolescência pobre. Uma de suas idéias-mestras é a de ser uma pessoa decidida; outra é a de possuir uma natural distinção....E além dessas, uma infinidade de outras menores, formadas por coisas, palavras, objetos, que dentro dela ficaram como entraram e continuam a funcionar de modo a devolver as reações que as originaram. Apalpando-os, anotando-os, eu descobri um por um os botões que fazem rir ou chorar a minha boneca de corda..."