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Hino do Blog : " ...e todas as vozes da minha cabeça, agora ... juntas. Não pára não - até o chão - elas estão descontroladas..."
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Thursday, June 28, 2012

TEATRO - A PRIMEIRA VISTA & CABARET

TEATRO - A PRIMEIRA VISTA

Drica Moraes & Mariana Lima
Segunda peça que vejo do canadense Daniel MacIvor. 

A primeira foi “It on It” e me impressionou muito. Portanto foi com boas expectativas que fomos ao Sáo Pedro domingo passado para conhecer “A primeira vista” com as ótimas Mariana Lima e Drica Moraes. 

Mas que surpresa : ao invés de um texto “denso”, “dramático” como “It on It”, “A primeira vista” (a primeira vista) é super leve, light, tranquila, sem nenhum arroubo emocional, sem grandes dramas. 




A história é de uma simplicidade só : duas garotas se conhecem numa loja de material para acampamento e acabam desenvolvendo uma relação que se estende pelo resto de suas vidas. 

Durante a peça somos levados a acompanhar diversos encontros delas (alguns fortuitos, outros não), onde os diálogos nunca se aprofundam de forma incisiva. Isto é até de certa forma explicado com uma frase recorrente durante a peça : “Nada é suficiente”. O sentido ambíguo, a leitura desta frase define – numa visão bem poética – que o “nada se basta”. Não é necessário acrescentar, adicionar, acumular. O pouco, o simples, o “nada”, basta para preencher muitas necessidades – inclusive as emocionais ( e as da peça também).

Então o que se ve no palco é uma fila de cenas “bonitinhas” mas sem grande expressão (quase nada é apresentado). Os diálogos são truncados, cortados – com algumas passagens bem viajantes -, isto sem falar do humor um tanto “fora da casa” ,que pra mim não funcionou diversas vezes. Esta situação foi me exasperando e fui criando um distanciamento cada vez maior até me desligar da cena.

 No final não achei grande coisa e fui saindo um tanto decepcionado ao passo que meu companheiro estava em prantos. Curioso, indaguei-o para que tudo aquilo , e ele, aos poucos foi me abrindo os olhos para uma série de fatos e situções que me tinham passado despercebido, os quais, sem dúvida alguma, dão outra dimensão, revelam outros segredos e engrandecem a montagem. Atrás da sutileza, o invisível, o não dito sustenta uma riqueza humana que fala aos corações com uma sensibilidade ímpar.

Falar das atrizes chega até a ser ridículo. Não dá pra destacar nenhuma. Nada menos que perfeitas as duas.

TEATRO - CABARET 

Bem, o que falar sobre Cabaret ? Na verdade utilizar qualquer superlativo é redundante, desnecessário.


Estar diante de um clássico, soberbamente executado, é uma experiencia única que invade nosso espírito, nos transporta, nos fascina. A magia do teatro explode, se impõe diante de nós, que acabamos subjugados pelos demónios da cena. O palco é o altar onde o feitiço acontece, o espaço onde nossa mente é tragada para um mundo de ilusão / verdade que faz a delícia dos sentidos.

Cabaret é um dos maiores musicais de todos os tempos. Contando a história da ascenção do nazismo na Alemanha dos anos 30, sob o olhar de pessoas comuns, a peça equilibra de forma perfeita, riso, emoção e reflexão. E a montagem brasileira é perfeita.

Claudia Raia é uma diva e mata a pau integralmente – uma atriz completa. Sua Sally Bowles surge numa personalidade mais forte, diferente da garota ingênua e frágil que a Liza imortalizou no filme homonimo. São dela os dois melhores numeros musicais (na minha opinião) : “Maybe this time” - que fecha o primeiro ato (com eu aos prantos), e “Cabaret” - que fecha a peça (com eu aos prantos novamente) . Nossa diva não deixa nada a desejar. Perfeita.

Jarbas Homem de Mello, como o MC – Mestre de Cerimônias – é simplesmente perfeito, também numa caracterização bem diferente do excelente Joel Grey. Jarbas faz um MC viril, raivoso, cínico, debochado e, sem dúvida alguma, corajoso. Super ator.

O resto do elenco mantem o nível da apresentação lá em cima. Isto sem falar da parte tecnica (luz, musica, som, cenografia, etc), tudo executado de forma primorosa.

Fantástico.

Saturday, June 16, 2012

Atividades da semana


Livro : A visita cruel do tempo – Jennifer Egan

A visita cruel do tempo 
Como definir ? Romance ou coletânea de contos ? Nem um nem outro ? Uma nova forma de escrita ?

 Fica a cargo de cada um decidir.

 Resumindo, “A visita cruel do tempo” (Prêmio Pulitzer 2011) enfilera 13 capítulos, nos quais cada um dá voz, destaque e aprofundamento a um personagem relevante (mas não protagonista), citado “em passant” ou com alguma conexão – aos / nos capítulos anteriores. 

Assim a autora, a cada capítulo, com saltos no tempo e nos espaços (lugares) onde as tramas são apresentadas, vai criando um rico painel humano, onde o que mais se destaca é a melancolia intrínseca ( talvez uma tristeza light ? ) gerada pela inexorável passagem do tempo. Muito bom.

Filme : Os vingadores

Os Vingadores
Super HQ filmada ! Muito divertido. 

Na verdade estava curioso para sabe como os roteiristas fariam para equilibrar tantas divas juntas. Nick Fury, Thor, Hulk, Homem de Ferro, Viuva Negra, Capitão América e O Gavião Arqueiro no mesmo time ? 

Como comportar tantos egos ? 

Mas a coisa rolou bem. Pra mim os momentos mais legais (os mais decisivos) ficaram com o Homem de Ferro e o Hulk, mas no final acredito que houve uma certa equananimidade de cenas entre os vingadores. 

De qualquer forma a sequência da batalha em Manhatan é absolutamente fantástica. Merece o Oscar de efeitos especiais com certeza.

Filme : Prometheus

O dilema : comparar ou não com o Alien ? Se comparar, Prometheus perde feio. 

Se esquecermos o Alien, o novo filme do Ridley Scott é bom. Alien é um clássico,  tem uma trama simples, direta, habilmente explorada / desenvolvida. 
Já Prometheus é pretensioso na sua busca de profundidade filosófica, científica e religiosa. Não que o filme seja ruim. Na verdade está milhas a frente da quase totalidade de porcaria que se ve hoje nas telas em termos de sci-fi. 

 O problema é que, com tantas “possíveis leituras”, Prometheus fica parecendo mais uma colcha de retalhos do que um sci-fi “pé no chão”. Mas o filme é bom.

Destaque óbvio para o Michel Fassbender e a Noomi Rapace (deuses).

Show - Emmerson Nogueira

Terça, dia 12, o Teatro do Sesi em Porto Alegre abriu as portas para um espetáculo voltado a quem curte o rock dinossauro. 

Músicos ótimos, iluminação impecável, set-list exemplar e muita garra, fazem o show do Emmerson Nogueira (totalmente sold out) transformar-se numa celebração do bom e velho rock and roll. Emerson, com sua característica voz rouca, comanda os trabalhos sentadinho no banquinho e trocando de violão várias vezes. 

Emmerson Nogueira
Como bom mineiro fala pouco e mostra muito serviço.

 E que serviço !!

 Supertramp, America, Toto (que nunca gostei muito), Pink Floyd, Creedence, Rod Stewart, Legiao Urbana, Lobão, Simon and Garfunkel,  Joe Coker, Kleiton e Kledir  e muito mais, em covers exemplares (sem contar o set com viola caipira), fizeram a alegria do povo presente. 


Confesso que nunca me atirei no chao pela musica do Emmerson (apesar de achar ele um gato). 

Sempre achei uma coisa meio musica de elevador (muzak, piped music, weather music ou lift music);  aquele tipo de som que voce ouve, acha agradável, mas não identifica (e nem se interessa por) quem está cantando. 

Mesmo assim resolvi ir ao show para curtir "uma musica relaxante". 


Mas a surpresa foi grande, pois o cara toca e canta horrores.

 Virei fã. 

Thursday, June 07, 2012

MPB GLS - Parte 1

Untitled Document

MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E OS GUEIS (Gays)

Panorama Histórico – Social - Cantos e Representações

- Primeira Parte -
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Trabalho apresentado na conclusão do "CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LITERATURA BRASILEIRA" da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2009.
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A publicação deste trabalho no Blog foi dividida em 5 partes
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Para acessar a Segunda Parte, tecle AQUI.
Para acessar a Terceira Parte, tecle AQUI.
Para acessar a Quarta Parte, tecle AQUI.
Para acessar a Quinta Parte, tecle AQUI
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INTRODUÇÃO

Música e bichice. Dois temas que permeiam minha vida.

Aprendi a amar a música com meus pais. Ambos tinham a alma meio romântica, sonhadora, boêmia e a nossa casa tinha sempre – quando não era quebra pau - alguma bela melodia ecoando. Lembro que através deles conheci Noel Rosa, Billy Blanco, Nat King Cole, Dick Farney, Maysa, Miltinho, Doris Monteiro, Carmem Miranda e outros. Já a bichice vem da minha orientação sexual. Homossexual assumido desde tenra infância (nem tanto), passei por todas as fases básicas do processo - da negação à aceitação - até adquirir uma certa tranqüilidade com o destino, com a sorte, com o carma (ruim, diriam alguns).

Este trabalho busca integrar estes dois temas, propondo uma visão da representação guei na Música Popular Brasileira. Porém a idéia de mostrar caminhos deste mapa requer saber de antemão que o terreno a ser trilhado será enganoso, movediço, pantanoso.

Olhar o objeto “homossexualidade”, que histórico-socialmente está associado a conceitos como “errado” - “doença”, “pecado”, “desvio” , “negativo” -, já define que tal pode ser, quando se trata de canções, vislumbrado (leitura de entrelinhas, detalhes, códigos, expressões, etc) ou diretamente identificado (em maior ou menor grau). Isto porque quando a arte quer expressar o “proibido” pode buscar várias trilhas, desde a mais velada à mais explícita – e a vida, a experiência guei permite este leque de visões.

No que se refere à MPB-guei, a vontade ou a intenção de enxergar a experiência homossexual em determinadas canções (não explícitas) pode impulsionar “enxergar chifre em cabeça de cavalo” (super-interpretação das letras). Este é um risco que pode levar a achados verdadeiros ou completamente enganosos, e quem em última análise teria o poder de afirmar qualquer conclusão, seriam apenas os compositores. Porém, mesmo que a possibilidade do erro, do equívoco exista, isto não deve representar impedimento para leituras baseadas em subtextos e outras “formas secretas” embutidas nas canções. Isto aparece neste estudo.

Por outro lado, uma canção onde a homossexualidade é entregue às claras, seja pela letra ou por declarações do compositor, proporciona a leitura direta da vivência guei dentro do olhar do autor (a mensagem manifesta). A MPB traz um rico material neste sentido, desde obras belas e poéticas até a “baixaria total”. Como a proposta seria dar ouvidos a todas as vozes que cantaram (e cantam) a vida guei na MPB, procurei selecionar exemplos de todos os tipos de canções – das mais “bonitinhas” às mais “podres”. Acredito que o conjunto apresentado presta-se a um bom panorama, porém, tenho plena convicção de que o retrato está incompleto.

Para desenvolver / discutir o tema, apoiei-me nos seguintes eixos :

Histórico social : apresenta ambientes sociais (político, sexual, moral, cultural, etc) através de algumas décadas e suas influências – tanto no sentido positivo quanto negativo - para a condição guei no Brasil (como os gueis foram afetados ou não pelas transformações).

Artistas relevantes : destaca alguns artistas (compositores e cantores) que tocaram – ou tocam – (de forma velada ou explícita) a questão guei e que acabaram por criar (ou tornarem-se) referência no assunto. De alguns são analisados aspectos da vida privada – dentro do que considerei relevante ao tema - (e autorias) e de outros apenas as obras. Por motivo de volume e formatação do trabalho, alguns artistas foram deixados de fora conscientemente (ex : Ana Carolina, Marina), sem que isto represente negação de importância dos mesmos para o assunto.

Músicas (análise / interpretação) – tirando as óbvias, esta é uma área que pode ser muito enganosa. Particularmente – e francamente - não concordo com todas as “interpretações gueis” colocadas, mas acho importante registrar até mesmo porque acredito que a discussão cresce e se polemiza. Aqui também fui obrigado a enxugar (e muito) as obras analisadas, o que me doeu.

Identidade guei – mesmo que não se chegue à conclusão alguma, é importante discutir o assunto como forma de identificar / conhecer fenômenos que surgem (no) e povoam o mundo guei. Através destes fenômenos uma (sub) cultura guei acontece e estabelece – em maior ou menor grau - um reconhecimento e compartilhamento (uma aproximação) de idéias que exclui o “outro” - aquele que está fora do “mundinho” (universo guei), seja por desinteresse, indiferença ou condenação.

Resistência – mostra como a construção de uma “cultura guei”, de um “espaço guei” na sociedade (desde guetos às vitrines) advém da ação, da resposta dos “perseguidos” frente às pressões (condenações e violências - explicitas ou não –) as quais estão sujeitos no cotidiano (ou seja, as bichas e as sapatas (as lésbicas) dia a dia suando, lutando por um lugar ao sol). Estas ações e respostas compõem um quadro de resistência que aproxima (ou pretende aproximar) os gueis de outras categorias historicamente perseguidas, como os negros, o que, dentro de determinado olhar (no caso aqui, a religião afro), revela-se verdadeira.

Linguagem guei – o “dialeto guei brasileiro” mostra-se como um sub-produto originado na experiência social, cultural, moral, política, sexual, religiosa, enfim de vida do guei. Este patoá é usado fortemente como forma de comunicação entre os iniciados e é empregado largamente na nova música guei brasileira. O registro de algumas de suas origens e significações ilumina diversas letras de canções, as quais, caso contrário, seriam inacessíveis aos “ignorantes”.

Perfis - depois de analisar diversas canções, é possível traçar alguns perfis psicológicos, de aflições mentais (ou não) recorrentes. Neste sentido surgem personagens, figuras, estereótipos que habitam o imaginário social (dentro e fora do mundinho) quando se pensa em comportamentos gueis. Aqui também o terreno é fértil, porém, mais uma vez o formato do trabalho limita a penetração no tema.

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1 - Retrospectiva Século XX (nova sociedade e sexualidade)
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1.1 - Transformações sociais
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O século XX foi palco de enormes transformações sociais em escala global. A eclosão de duas guerras mundiais (1914-18, 1939-45), a explosão de revoluções regionais (Russa,Chinesa, etc), o caos das artes - com o aparecimento de diversas propostas, escolas e correntes (dadaísmo, surrealismo, expressionismo, cubismo, pop-art, etc) -, o florescimento de novas ideologias e formas de pensamento (socialismo, existencialismo, beatniks, hippies, etc), o avanço das ciências, da medicina, da tecnologia, da industrialização etc, provocaram profundas modificações econômicas, políticas e sociais nos povos.
O impacto deste complexo afetou a observação / percepção humana, principalmente nas últimas décadas do século, sobre aquilo que até então era considerado como “correto”, “certo”, “adequado” a respeito das tradições, culturas, modos, enfim formas de viver e pensar da humanidade. Nesta problemática surgiu a necessidade de novas idéias, novas posturas para conceber os fenômenos científico-sociais-culturais-econômicos que pululavam no mundo. Conceitos até então solidificados, arraigados, necessitavam de novos significados.

Nas sociedades democráticas, fundamentadas principalmente numa visão branco-patriarcal de poder, grupos até então marginalizados (mulheres e negros, principalmente), viram seus direitos civis reconhecidos após longos históricos de lutas. O desenvolvimento de novas leis, com foco na afirmação dos direitos de igualdade, contribuíram para a valorização do humano como cidadão a ser respeitado na sua particularidade, na sua privacidade, independente de gênero, raça, cor, etc.

A censura, a perseguição política e/ou social , a falta de liberdade, passaram a ser vistas como aberrações, como sofrimento, como erro nas relações em qualquer nível (institucional ou não). A valorização dos direitos humanos, do direito à expressão passaram a ser valores positivos e necessários para a realização dos indivíduos.

1.2 - Revolução sexual

No aspecto sexual, as transformações também ocorreram. Fenômenos como o desenvolvimento da psicanálise, a aparição de estudos com foco científico sobre a sexualidade (ex Relatórios Kinsey (1948) e Hite (1976) - principalmente estes -) , lançaram novas luzes nos diversos tabus que dominavam o pensamento comum. Conceitos até então considerados como “errados” , como “pecado”, como “doença” (ex. masturbação), foram questionados e re-apresentados sob novas óticas.

A introdução da idéia do “natural”, e /ou da simples realização do desejo, em diversos objetos que até então eram vistos como aberrações (práticas, tendências, comportamentos, etc), contribuíram para avançar no conceito do “aceitável” como comportamento e/ou prática.

Referindo-se às mulheres, o avanço das técnicas contraceptivas, a valorização – ou a “descoberta” - do orgasmo, o direito ao aborto, o avanço no mercado de trabalho, tudo contribuiu para revolucionar seus papéis no mundo. O sexo biológico deixou de ser item de definição de atuação social - o que gerou muita discussão a respeito de direitos, e formas de ação - , modificando de forma decisiva as relações masculino X feminino. Era a Revolução Sexual.

Isto falando do mundo heterossexual.
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1.3 - Revolução sexual e os gueis
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Se considerarmos a medicina, com sua pretensão cientificista-higienizadora nas mais diversas áreas psico-biológicas, como definidora do certo e errado no comportamento humano, teríamos que considerar os gueis como “doentes” até 1990, quando então a OMS (Organização Mundial de Saúde) retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças.

O simples fato desta “desclassificação” ocorrer na última década, indica a sombra ameaçadora sob a qual os gueis (os “doentes”) viviam no século passado.

Até então discursos médicos sobre a homossexualidade eram (ou poderiam ser) fundamentados na idéia de aberração, de monstruosidade, da patologia bio-psíquica, a qual, obviamente, era passível de “tratamento e cura”.

Vejamos dois exemplos registrados por Aldo Sinisgalli – médico legista, paulista, com atuação na área de “antropologia criminal” na década de 30:

Os homossexuais, os pederastas, não são homens normais. Como anormais precisam de tratamento adequado. A punição, reclusão em presídios, é injustiça e não traz o mínimo resultado prático. Deixar em liberdade elementos perniciosos é perigoso e prejudicial à sociedade. Logo, um instituto para pederastas se faz necessário. No instituto para pederastas estes seriam tratados, reeducados. Far-se-ia a seleção profissional, gozando os invertidos de uma relativa liberdade. Propugnamos por um dispositivo legal permitindo a internação dos pederastas perniciosos ao meio social nesse instituto.(apud TREVISAN, 2007, pág, 206):

ou

O homossexualismo é anti-social. O homossexualismo é a destruição da sociedade; é o enfraquecimento dos países. Compreende-se facilmente o prejuízo que traz à sociedade e às nações o desenvolvimento do homossexualismo, sabendo-se que os invertidos encontram a satisfação genésica com indivíduos do mesmo sexo, desprezando as mulheres. A maioria dos pederastas não se casa, não constitui família. A grande maioria deles é constituída por moços solteiros. Portanto o pederasta não contribui para o engrandecimento, para o desenvolvimento da sociedade e do país. Se o homossexualismo fosse regra, o mundo acabaria em pouco tempo. (apud GREEN;POLITO, 2006)

Homofobia
O ranço apocalíptico destas afirmações dá o tom do ambiente social ao qual os gueis estavam expostos. Obviamente tal ambiente era sinônimo de uma vida de clandestinidade emocional, uma vida de frustração, de impossibilidade de realização e de uma existência plena..

Isto demonstra que as conquistas da Revolução Sexual não avançaram do mesmo modo nos direitos dos homossexuais. Sob pesadas hostilidades religiosas, políticas, científicas, tradicionais, sociais, etc, os gueis enfrentaram – e enfrentam – diversos obstáculos para terem seus direitos reconhecidos e poderem expressar seus sentimentos e emoções. Desta forma, vivendo numa sociedade onde sua forma de vida é condenada (explícita e/ou veladamente), os gueis ainda são alvos de agressão (moral e/ou física - muitas vezes resultando em mortes)

Don Kulick (2008,pág..47) comenta a violência a qual as travestis baianas – e de resto as brasileiras - estão sujeitas.

[...] se alguns homens mostram-se (....) atraídos por travestis, muitos outros lhes são francamente hostis. Elas precisam estar preparadas para enfrentar comentários desairosos (que partem tanto de homens quanto de mulheres) e tentativas de agressão física (por parte daqueles) (...) Á noite os perigos são maiores (...) A exposição coloca as travestis em posição vulnerável, alvo fácil do assédio de policiais, motoristas, transeuntes, gente que passa de automóveis e ônibus. Na maioria das vezes, a violência vem na forma de agressão verbal, mas não são raros os casos em que gangues de jovens espancam travestis. Também é comum ver gente que passa de carro lançar pedras e garrafas sobre elas. Algumas vezes chegam a disparar armas de fogo contra travestis em plena rua. Normalmente as pessoas que cometem esses crimes não são identificadas nem detidas. E quando o são, recebem penas leves da Justiça.

Nesta condição, medo, baixa auto-estima, repressão, perseguição, violência, preconceito faziam – e fazem – parte da vivência guei. A clandestinidade, o abafamento dos sentimentos, a mentira social, atrai o silencio e a marginalização. Os gueis estabelecem-se à margem, na periferia da sociedade. Não existe inserção, inclusão plena. O modo guei é associado ao pecado (coisa do demônio), à doença (passível de “tratamento”), falta de vergonha na cara, efeito do carma, influência de más companhias, resultado de traumas, ou seja, sempre negativo.
Execução de gays no Iraque

Os gueis (bichas, veados – ou “viados” -, invertidos, pederastas, etc) respondem a isto de diversas formas. Ocorre desde a repressão / sublimação dos desejos (a clandestinidade total – viver toda a vida numa mentira, viver “no armário”) até o escracho total (chutar o pau da barraca), usado como forma de agressão e auto-afirmação, Dentro deste universo de extremos, os gueis vivem sua condição. Um universo difícil de embates pessoais, familiares, religiosos, sociais, etc.

É inegável que no Brasil, mais recentemente, ocorreram alguns avanços nos direitos dos homossexuais (adoção, contrato de parceria civil, compartilhar planos de saúde, pensão alimentícia, etc), porém isto não se traduz na plena aceitação do guei na sua condição de cidadão, na sua integridade emocional, na sua extensão de espírito.

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2 - Gueis e a Arte
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2.1 - Gueis e representação artística
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Como forma de representação da vida (e suas variantes), a arte reconhece e reflete – nas suas mais diversas formas - os fenômenos sob os quais os homens experimentam a verdade, a mentira, o lógico, o abstrato, o enigma, o mistério, o revelado, o baixo, o alto, o gozo, a dor, enfim a existência.
Neste espaço alargado de inúmeros caminhos, sob as mais diversas idéias, intenções, inspirações, criações, etc - o encontro homossexual se viu representado desde a antiguidade nas mais variadas óticas e culturas.

Porém, como a representação da “condição homossexual” resume-se no final das contas em registrar o sexo - ou o amor, as emoções, as tendências, as compulsões - praticado por (ou em relação a) seres do mesmo sexo (os iguais), o que conhecidamente não é amplamente aceito – o leque de possibilidades de apresentação do assunto pode ir desde o explícito ao mais dissimulado (mascarado, disfarçado), além do dúbio. E a forma, o tom da apresentação vai depender sempre da intenção do autor. Escracho, deboche, agressão, escárnio, condenação, celebração, aceitação, explícito, implícito, fantasia, verdade, mentira, pulsão, compulsão, etc, são termos que podem ser empregados na análise (na interpretação) de uma obra com foco no assunto - ou que “toca” o assunto - .

Diante desta grande variedade de possibilidades de aproximações, estabelece-se o risco do erro, do engano interpretativo, porém, ao mesmo tempo surge o desafio de penetrar no mistério, no oculto, no alargamento da visão, e conseqüente descoberta e revelação de outras leituras, o que enriquece o material dando-lhe novas significações.

O material artístico guei, permite este tipo de experiência.
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2.2 - Gueis e a Música Popular Brasileira
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A música, como exemplo de forma cultural inerente ao humano, traz dentro de sua força vários discursos que representam a vida - num sentido amplo -, e a MPB traduz esta idéia com uma riqueza de conteúdo ímpar. Neste sentido, os gueis, como fenômeno social real, apresentam-se na MPB desde os primórdios das gravações mecânicas (1902).

No que se refere ao velado - ao dissimulado, ao disfarce - letras de duplo sentido, frases alegóricas, símbolos, gírias, alusões, interpretações, referências, etc, contribuíram – e contribuem - para identificar (às vezes com uma “forçação de barra”) a “intenção guei” de uma canção.
Por outro lado, canções explicitamente gueis apregoam (jogam na cara) ao que vieram e não deixam dúvidas sobre suas intenções.

Neste universo – seja intencional ou mascarado –, o guei se viu – e se vê - retratado na MPB das mais diversas formas, com as mais diversa conotações, com os mais diferentes intentos e propósitos, ou seja, sempre inserido na cultura musical nacional.
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3 - MPB Guei - Primórdios
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3.1 - O bonequinho.
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Bahiano



Em 1903 surge uma canção que talvez seja a primeira referência bicha na MPB. A cançoneta O bonequinho gravada pelo ator Lino, em nossa pioneira gravadora, Zonophone, e mais tarde regravada na Odeon por Bahiano - o cantor mais popular de sua época.

O bonequinho


Lá da moita, lá da moita sossegado / Sem desastres no caminho / Francisquinho, Francisquinho / Batizado com alcunha o bonequinho / - Ai, ai. As pequenas quando me vêm ficam com os olhos ternos / E depois elas cantam assim: - Ai que lindo o bonequinho! / (Que culpa tenho eu de ser bonito') / Minha mãe quando eu nasci, mui risonha e presenteira / Ficou doida de alegria e disse assim (logo) pra parteira: - Oh comadre que lhe parece, hein? Que beleza de neném! / Que mãos, que pés, que cabeça e que ... ! / Ai que lindo o bonequinho! / A parteira toda ouriçada foi contar à vizinhança, / Essa nova espalhou-se e começou, pois, a festança. / (Falado): A princípio acharam graça, mas mais tarde, / Quando me viam na rua a imitar minha mãe ... / (Viram) que era um (menino), tinha uma cabeça bem-feita, / Uns braços redondos e ... / Ai que lindo, bonitinho, ai que lindo o bonequinho!


Clique abaixo para ouvir O bonequinho
 

O historiador José Ramos Tinhorão (apud FAOR, 2006, págs. 363 e 364) explica melhor quem era então esse Bonequinho e onde ele circulava.

Acredito que o bonequinho era uma forma de indicar que o cara era bicha, assim como tinha o termo 'almofadinha', criado pelo J. Carlos, para definir o rapaz arrumadinho, que se vestia com certo exagero. Nessa época, o homem usava bengala por elegância e entrava em moda o uso de um paletó, muito cinturado e preso ao corpo, que fazia sobressair a bunda. E pode reparar na música que o autor dá a entender que ele tinha uma bundinha bonitinha. E na hora de falar desse detalhe, ele pula, analisa.

Como se vê, os gueis já começaram a incomodar desde os primeiros registros musicais.
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3.2 - Anos 30 – Noel Rosa – pioneirismo
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Noel Rosa
Já nos anos 30, sob os ecos da doutrina nazi-fascista européia, o Brasil embarcou na onda médico-higienista que se outorgava autoridade para definir os padrões que definiriam as melhores qualidades sócio-biológicas para formatar os perfeitos cidadãos habilitados a construir e povoar a pátria mãe exemplar.

Dentro desta linha do “perfeito Frankestein”, seres considerados “inferiores” eram automaticamente relegados ao lixo social (doentes mentais, “sub-raças”, marginais, velhos, aleijados, etc.). Os gueis, obviamente, também eram elencados neste grupo de párias e estavam expostos ao preconceito, a perseguição, a marginalização – e quem sabe, ao extermínio.

Neste clima, aparece uma bela canção de Noel Rosa - Mulato Bamba (Mulato Forte) - que representa um marco na representatividade guei na cultura nacional. Diz a letra :

Mulato Bamba


Esse mulato forte é do Salgueiro. / Passear no tintureiro é o seu esporte, / Já nasceu com sorte e desde pirralho / Vive às custas do baralho, / Nunca viu trabalho. / E quando tira um samba é novidade / Quer no morro ou na cidade, / Ele sempre foi o bamba. / As morenas do lugar vivem a se lamentar / Por saber que ele não quer se apaixonar por mulher. / O mulato é de fato, / E sabe fazer frente a qualquer valente / Mas não quer saber de fita nem com mulher bonita. / Sei que ele anda agora aborrecido / Por que vive perseguido / Sempre, a toda hora / Ele vai-se embora / Para se livrar do feitiço e do azar / Das morenas de lá. / Eu sei que o morro inteiro vai sentir / Quando o mulato partir / Dando adeus para o Salgueiro. / As morenas vão chorar, / Vão pedir pra ele voltar / E ele não diz com desdém: / -Quem tudo quer, nada tem.

Clique abaixo para ouvir Mulato Bamba
 

A ambigüidade – ou não - dos versos são notáveis. Frases do tipo “...ele não quer se apaixonar por mulher” e “...não quer saber de fita nem com mulher bonita”, indicam uma preferência ou uma escolha.

Isto remete a uma leitura guei da canção, porém a coisa não fica só nisto. Referências ao clima de perseguição policial podem se encontrar em “Sei que ele anda agora aborrecido - Por que vive perseguido - Sempre, a toda hora”.

Também há a discussão sobre quem – qual persona guei - teria inspirado Noel a compor Mulato Bamba.

João Máximo e Carlos Didier (1990, pág 220) puxam a brasa para o famoso malandro carioca Madame Satã.

Mas em quem terá se inspirado Noel para criar personagem tão singular como este mulato forte do Sal­gueiro? Todos os bons malandros, do morro ou não, parecem nele contidos, a intimidade com o tintureiro, a habilidade inata com o baralho, a astúcia que o permite viver sem trabalhar, a facilidade com que faz um novo samba. Mas a singularidade desse malandro é outra. De tal feitio que as morenas do lugar se queixam: o mulato em questão simplesmente não quer se apaixonar... por mulher. O bamba forte, corajoso, disposto a enfrentar qualquer valente, mas não querendo saber de fita. Isto é, de amor. Nem com mulher bonita.
Estranho mulato este que em muitas coisas lembra o Satã, um dos mais afamados valentes da noite carioca, capaz de virar do avesso um botequim da Lapa, de encarar um, dois tintureiros (camburão) de uma só vez, sem medo de nada, nem mesmo da morte, quanto mais desses policiais que vivem dando batidas pela Mem de Sa atrás de pederastas que um impiedoso moralismo recomenda sejam varridos das ruas como lixo. É muito comum o silencio da noite ser quebrado pelo alvoroço dessas criaturas correndo em bando, aos gritos, numa desesperada fuga a policiais violentos. Os perseguidores atrás, brandindo cassetetes, os perseguidos na frente, entrando como ratazanas assustadas na primeira porta que encontrem aberta na Mem de Sa, na Riachuelo, na Gomes Freyre ou na Lavradio. Satã, porém, não foge. Terá sido ele o inspirador de Mulato Bamba? Grande, forte, um touro de homem, temido, a própria polícia torcendo para não encontrá-lo pela frente numa dessas batidas, e no entanto acariciando o sonho de se tornar um dia uma esvoaçante estrela dos nossos palcos. Pode ser visto, vestido de baiana, odalisca ou rainha de Saba, a rebolar freneticamente num desses espetáculos que os cabarés da Lapa de vez em quando apresentam, homens travestidos de mulher. Quem vê Satã assim, batom, brincos, pulseiras, mexendo com as cadeiras, cantando com voz de contralto, nem imagina do que é capaz.

A relação de Noel com a noite marginal carioca explica a intimidade com o assunto.

Ele (Satã) e Noel são amigos. Noel, na verdade, tem muitos camaradas entre esses homossexuais que a polícia persegue. Conhece alguns deles. Confessos como Satã e Jota Piedade, bom compositor que em troca de companhia passa adiante os sambas que faz. Ou velados como As­sis Valente e Ismael Silva, que não abrem a guarda com medo de perder o respeito do pessoal do meio. Mas Noel não liga, aceita-os como são. (MÁXIMO e DIDIER,1990, pág 220)

Os autores concluem sua análise homoerótica do samba :

Seu samba - a primeira obra da música popular brasileira a focalizar de modo mais ou menos claro esse tipo de personagem - não deixa de ser um gesto de simpatia. Para com Satã ou outro mulato bamba qualquer. Nele não falta o duplo sentido de que Noel tanto gosta: por quem vive perseguido o valente do Salgueiro, pela polícia ou pelas mulheres? Satã não quer saber de fita nem com uma, nem com outras. E ha o fecho, dois versos sutis sugerindo certo trejeito que Mario Reis, habilmente, para não ser tão obvio, evita ao cantá-los: Ele então diz com desdém: "Quem tudo quer ... nada tem." (MÁXIMO e DIDIER,1990, pág 220)

Em “História Sexual da MPB”, João Máximo (apud FAOUR, 2006, pág 366) reafirma esta possibilidade, "Noel faz essa menção à homossexualidade com muita elegância e categoria. Dizia-se na época que o fez inspirado em Madame Satã (famoso homossexual brigão e malandro do bairro da Lapa)”.

Já João Silvério Trevisan, no livro Devassos no paraíso, registra que esta música supostamente teria sido baseada em Ismael Silva, sambista co-fundador da primeira escola de samba do Rj (Deixa Falar), um homossexual não assumido cuja condição era alvo de comentários na época. “Ismael Silva despertava suspeitas em muitos contemporâneos, com suas letras falando de uma aflição ou ‘dor moral’ que ‘me atormenta noite e dia, uma grande nostalgia’ que me ‘faz penar por ser tão pertinaz’” (2007, pág 283).

De qualquer forma, Mulato Bamba, seja lá baseada em quem for, é um pilar, uma peça histórica fundamental na historia da MPB guei.
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3.3 - Assis Valente - Os dramas de um enrustido
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Assis Valente
Sambista famoso, Assis Valente foi outro personagem que despertou comentários sobre sua sexualidade . Um dos principais compositores do repertório de Carmem Miranda, autor de clássicos como Camisa Listada, Uva de Caminhão, ...E o Mundo não se Acabou, Boas Festas, Brasil Pandeiro, Assis teve a vida marcada por altos e baixos, tanto em termos pessoais quanto musicais. 

Da euforia à depressão, do sucesso ao fracasso, sua triste trajetória foi marcada por diversas tentativas de suicídio (salto do Pão de Açúcar, corte de pulsos) que culminaram em êxito em 1958 quanto o sambista ingeriu guaraná com formicida.

Sua obra é povoada de canções de duplo sentido que faziam a alegria dos gueis de então (seja de forma mais ou menos direta ou através da personificação dos personagens femininos). Carmem Miranda se esbaldava.

Falando de Ismael Silva e de Assis Valente, Rodrigo Faour (2006, pág 366), registra :

Embora nunca confirmado oficialmente por uma série de razões, dois grandes sambistas da velha guarda tinham fama de homossexuais: Ismael Silva e Assis Valente. O primeiro não produziu sambas com muita "pinta", apenas mostrava-se atormentado, aflito, falava eventualmente de uma "dor moral­ que o atormentava noite e dia", que o fazia "penar por ser tão pertinaz". Em compensação, na obra de Assis, há sambas em que seu lado feminino grita, e sua principal intérprete, Carmen Miranda, deitou e rolou em letras deliciosamente ambíguas, como a da esfuziante Camisa listrada, em que um folião se traveste de mulher durante o Carnaval, quando tudo era permitido. E isso foi em 1937.


Camisa listrada

Assis - Camisa Listrada
Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí / Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu parati / Levava um canivete no cinto e um pandeiro na mão / E sorria quando o povo dizia: sossega leão, sossega leão / Tirou seu anel de doutor pra não dar o que falar / Saiu dizendo "Eu quero mamá, mamãe eu quero mamá, / Mamãe eu quero mamá" / (...) Levou meu saco de água quente pra fazer chupeta / E rompeu minha cortina de veludo pra fazer uma saia / Abriu o guarda-roupa e apanhou minha combinação ... (...) Agora que a batucada já vai começando / Eu não deixo e não consinto meu querido debochar de mim / Porque se ele pega as minhas coisas vai dar o que falar / Se fantasia de Antonieta e vai dançar na Bola Preta / Até o soí raiar

Clique abaixo para ouvir Camisa Listrada
 

Já em E o mundo não se acabou, pode-se ver retratado um guei que, num momento de delírio – notícia da chegada do Apocalipse -, enlouquece, sai do armário, “dá a pinta” e depois se arrepende.

E o mundo não se acabou

Anunciaram e garantiram / Que o mundo ia se acabar / Por causa disso / Minha gente lá de casa / Começou a rezar...(...) Acreditei nessa conversa mole / Pensei que o mundo ia se acabar / E fui tratando de me despedir / E sem demora fui tratando de aproveitar... Beijei a boca de quem não devia / Peguei na mão de quem não conhecia / Dancei um samba em traje de maiô / E o tal do mundo não se acabou...(...) Chamei um gajo com quem não me dava / E perdoei a sua ingratidão / E festejando o acontecimento / Gastei com ele mais de quinhentão... / Agora eu soube que o gajo anda / Dizendo coisa que não se passou / E, vai ter barulho / E vai ter confusão /Porque o mundo não se acabou...(...)

Clique abaixo para ouvir E o mundo não se acabou
 

Em “História Sexual da MPB”, Rodrigo Faour (2006, pág.367) analisa :

Outro sucesso de Assis na voz de Carmem, no ano seguinte, é a superam­bígua E o mundo não se acabou, em que fala de uma pessoa que saiu com um sujeito e "gastou com ele mais de quinhentão", e depois o cara andou dizendo "coisa que não se passou". Mais gay mais atual, impossível: ''Acreditei nessa conversa mole! Pensei que o mundo ia se acabar! (...) Beijei na boca de quem não devia! Peguei na mão de quem não conhecia! Dancei um samba em traje de maiô/ E o tal do mundo não se acabou.

E o retrato da condição do guei avança, mostrando uma prática comum até os dias de hoje (a bicha que banca financeiramente um bofe – “homem” -)

Na segunda parte fala de um assunto tão comum à comunidade, ainda mais daquela época: o do gay que banca (financeiramente) os “homens” que transavam com eles, e que nem sempre assumiam ter-se prestado a este papel. Veja se não faz sentido: "Chamei um gajo com quem não me dava! E perdoei a sua ingratidão/ E festejando o acontecimento/ Gastei com ele mais de quinhentão/ Agora eu soube que o gajo anda! Dizendo coisa que não se passou/ Ih! Vai ter barulho e vai ter confusão/ Porque o mundo não se acabou." (FAOUR,2006, pág 367)

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O interessante é que algumas letras de Assis prestam-se a leituras bem diferenciadas, dependendo do ponto de vista. É o caso de Uva de Caminhão (1939), gravada por Carmem.

Uva de Caminhão

Já me disseram que você andou pintando o sete / Andou chupando muita uva e até de caminhão / Agora anda dizendo que está de apendicite / Vai entrar no canivete, vai fazer operação / Oi que tem a Florisbela nas cadeiras dela? / Andou dizendo que ganhou a flauta de bambu / Abandonou a batucada lá da praça Onze / E foi dançar o Pirulito lá no Grajaú / Caiu o pano da cuíca em boas condições / Apareceu Branca de Neve com os sete anões / E na pensão da dona Estela foram farrear (. . .) / Você no Baile dos 40 deu o que falar / Cantando o seu Caramuru, bota o pajé pra brincar (. .. ) / Eu não te dou a chupeta, não adianta chorar

Clique abaixo para ouvir Uva de caminhão
 

Numa leitura, digamos “hetero”, o samba assume uma conotação “feminina”.

Para Ruy Castro, biógrafo de Carmen, o samba fazia referências "nada cifradas a sexo, gravidez e aborto". (apud FAOUR, 2006, pág 368)

Já sob outra ótica, o mundo guei explode :

Em contrapartida, Trevisan analisou por outro viés em seu livro as nuances desta letra. Assis, brincando com outras músicas de carnavais passados, teria enumerado diversos símbolos fálicos neste samba, como a "flauta de bambu", o "pirulito" e a "chupeta", advertindo ainda que o cara "andou chupando muita uva, até de caminhão". E foi por isso que precisou entrar no "canivete", alegando apendicite - quando muito provavelmente seria ... hemorróida (!). E ia além, em versos como "O que tem a Florisbela nas cadeiras dela?", depois cita Branca de Neve (seria apelido de bicha?) e seus sete anões, indo todos farrear na pensão da dona Estela e que no baile "deu o que falar", cantando o "Seu Caramuru". A canção terminava numa audácia debochada: "Não te dou a chupeta, não adianta chorar! Mamãe eu quero mamá." Ai, meu Deus, que chupeta será essa que esse sujeito procurava? Talvez Trevisan tenha razão ... (FAOUR, 2006, pág 368 - 369)

Dentre sua obra não gravada, há uma letra – provavelmente de um samba - que chega às raias do explícito no desejo guei. Duro com Duro já revela no título a intenção (sob um olhar “pau com pau”). E a letra é um primor do amor que não ousa dizer o nome.

Duro com Duro


Meu bem, tudo acabado, / Cada um para o seu lado / Nosso amor não nos convém. / Você o que pensa faz / Eu também não fico atrás / É sabido que há mal que vem pra bem / Em plena liberdade / Viveremos a vontade / Sem mentira e humilhação / Ser feliz, na aparência / Eu não tenho paciência / Nem devo escravizar meu coração (...) / Sei que você tem prazer / Vendo alguém padecer / Eu também sou assim / De maneira que a nossa união / Seria um horror, não me diga que não ! / Pois duro com duro / Não faz bom muro !

Se esta letra tivesse sido musicada e gravada, certamente figuraria como um dos marcos do cancioneiro bicha brasileiro.

Assis e Carmem Miranda
Infelizmente Assis foi uma vítima de seu tempo. Vivendo numa sociedade repressora, foi obrigado a abafar seus sentimentos encenando uma farsa social – inclusive casamento – que acabaram por destruí-lo.

Em “Assis Valente – A jovialidade trágica de Jose Assis Valente” – Francisco Duarte Silva e Dulcinéa Nunes Gomes (Funarte – 1988), os autores comentam a possibilidade do sambista não ter um destino trágico caso tivesse resistido até a década de 60, quando então, sob novos ares sociais, poderia ter encontrado espaço para viver melhor seus sentimentos.

A luz de uma análise mais profunda, e se tivesse tido garra para sobreviver até os anos 60, talvez ele se compreendesse melhor e se justificasse. Era um ser que nunca gozou de paz interior. Eros e Psique brigavam dentro dele. (Op. Cit., pág 217)

Referindo-se a ambigüidade emocional do sambista, os autores distinguem duas personas brigando por sua alma: Assis, a pública, a social - e José, a íntima, a privada.

Insatisfeito com seu dualismo, naquela existência Assis buscou para José uma saída : para seu jovialismo trágico e incurável só encontrou a porta da autodestruição. Assis matou José porque não gostava de sua maneira de ser, porque não se gostava como era. (...) José viveu uma vida irreal.
Há na história dos homens muitos casos semelhantes. Muitos outros seres que por impulsos interiores (até para eles inexplicáveis) buscam ser o que não podem de maneira adequada.
Na história moderna ou na antiga, os fatos são claros : Rock Hudson, Fernando Pessoa, Gore Vidal, Virginia Wolff, Prous, André Gide, Michelangelo, Petrônio, Platão (...) também subsistiram numa vida desajustada, tanto mais intolerada ou aceita em função do tempo / época / meio em que viveram.
“Os descendentes de Platão vivem o amor grego. Nossa natureza tem sede do mal, e ao bebermos, perecemos.” (William Shakespeare)....(op. Cit., pág 217 - 219)


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Trabalho apresentado na conclusão do "CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LITERATURA BRASILEIRA" da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2009.
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MPB GLS - Parte 2

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MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E OS GUEIS (gays)

Panorama Histórico – Social - Cantos e Representações

- Segunda Parte -


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Trabalho apresentado na conclusão do "CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LITERATURA BRASILEIRA" da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2009.
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4 - Retrospectiva Século XX (anos 60 e 70 – transformações culturais / sociais).
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4.1 - (Anos 60) Revolução Social / Luta pela igualdade de direitos
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Nos anos 60, o que até então era visto como certo, correto socialmente (religião, costumes, cultura, sexualidade, comportamentos, tradições), passou a ser questionado, e, novas formas de pensar e agir surgiram.

Ainda sob o efeito do movimento beatnik que desde os anos 50 interrogava a ordem social vigente -, acrescentando ao quadro o surgimento e disseminação do rock, da difusão do uso de drogas, da busca de formas alternativas de viver e pensar, nos questionamentos intelectuais, etc, - a década de 60 veio para mudar tudo. 

Life Magazine 60´s
O homem não mais se satisfazia com o herdado. As novas gerações queriam o novo, queriam radicalizar atos e pensamentos, na busca utópica da renovação alicerçada em novos conceitos

Neste processo, o movimento hippie, através do revolucionário lema “paz e amor”, avançou em todas as áreas do comportamento acirrando o atrito entre o velho e o novo. A rebeldia revelava-se como um potencial criativo, associada a um idealismo e ações concretas que propunham novas formas de viver, de atuação, de movimento, totalmente diferenciadas do que até então era tido como certo, como exato.

A valorização dos sentimentos “puros”, a busca da paz e harmonia entre os homens, criaram espaços sociais e novos modos de vida onde a igualdade e o respeito existiam – ou deveriam / pretendiam existir.

Neste contexto a busca da realização humana dos grupos marginalizados poderia embarcar no caminho da luta (ex, movimento negro americano – Martin Luther King (luta pacífica) , Malcom X, etc), e/ou a pura virada de costas a tudo que representasse “o sistema” e partir para a busca de uma vivência alternativa (comunidades hippies, cultura oriental, drogas, etc).

Diante desta realidade, negros, mulheres, gueis, países colonizados, etc, puseram-se em marcha – uns com maior sucesso, outros não – na busca de sua autonomia, direitos e liberdade.
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4.2 - (Anos 60) Movimento guei brasileiro até os anos 60
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Analisando o crescimento do movimento (cultura / sub-cultura) guei no Brasil - especificamente no Rio e em São Paulo – durante o período 1945 – 1970, James N. Green (1999) registra :

Nesses 25 anos, houve também alterações significativas na composição e no desenvolvimento das subculturas homossexuais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Novas noções de identidades sexuais e de gênero surgiram, colocando em xeque a polaridade entre homens "verdadeiros" e bichas efeminados. As opções da vida noturna ampliaram-se e bares exclusivamente para gays foram inaugurados. Os homossexuais passaram a ocupar novas áreas das maiores cidades brasileiras. Os fãs-clubes dos cantores de rádio constituíram outro meio para criar uma comunidade e integrar os homens nessa subcultura em ebulição. A participação nos concursos anuais de beleza para a escolha da "Miss Brasil" permitia demonstrações públicas do estilo e da atitude camp, além de oferecer a oportunidade de avaliar e desafiar as noções tradicionais da beleza, da moda e do glamour femininos. Apesar da oposição de certos machões, que tentaram afastar os bichas das praias, uma faixa de Copacabana tornou-se território homossexual. Os bailes de carnaval que aceitavam a participação dos gays recebiam ampla cobertura da imprensa, e travestis glamourosos surgiam desses bailes para atuar nas produções teatrais tradicionais que atraíam o grande público. Um grupo de homossexuais no Rio de Janeiro começou a fazer circular um pequeno jornal, O Snob, recheado de fofocas, humor camp e auto-afirmação. O jornal, por sua vez, inspirou trinta publicações similares por todo o país. Dentro dessas redes sociais, alguns até mesmo sonharam com uma "comunidade imaginária" de homossexuais que se uniriam num esforço de transformar a hostilidade social que havia em relação a eles.

Ou seja, o guei avançou na visibilidade, conquistando, ainda que de modo tímido, alguns espaços sociais.

4.3 - (Anos 60) – Tropicalismo

O Tropicalismo foi um movimento de vanguarda que abalou as estruturas da cultura brasileira na segunda década de 60. Num caldeirão que misturava música, artes plásticas, literatura e outras manifestações, teve como mentores, artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Mutantes, Gal Costa, Rogério Duarte, Duprat e outros.

Tropicalismo
No que se refere especificamente a MPB, o Tropicalismo representava um chute no traseiro da tendência cada vez mais politizada das canções. No clima de contestação à ditadura militar, a MPB vinha – como por exemplo nas canções de Edu Lobo, Geraldo Vandré, Sergio Ricardo, e outros – num crescente tom esquerdista, com a proposta de compromisso com composições engajadas, alinhadas com a resistência e denúncia social.

O Tropicalismo rompia com esta idéia e assumia uma mistura de influências que iam da nova ordem jovem mundial - como o rock, a psicodelia, guitarra elétrica, etc -, até a vanguarda erudita por meio dos arranjos de maestros como Rogério Duprat e Júlio Medaglia. A idéia era avançar o experimentalismo, agregando elementos do popular ao erudito, do regional ao universal, rompendo com sectarismos / preconceitos e promover uma espécie de “tudo ao mesmo tempo agora”.

No que se refere ao homoerotismo, não se pode dizer que o Tropicalismo tenha gerado alguma canção; porém, devido ao seu caráter transgressor, sem dúvida alguma influenciou corações e mentes dos gueis de então que viram ali, naquele movimento escandaloso e combativo, uma forma de expressão libertária, uma derrubada de muro, uma quebra de portas e janelas – um hino de determinação e (r)evolução.

Pode-se afirmar que a partir do impacto do Tropicalismo, artistas seminais – com forte influência homo – surgiram a partir dos 70´s, como o grupo Secos e Molhados e os transformistas Dzi Croquetes.

4.4 - (Anos 70) Desbunde, Ditadura e Abertura


Os anos 70´s no Brasil foram marcados desde a mais dura repressão militar, perseguição, cassação política, amordaçamento da cultura, censura, até, já na segunda metade da década, o início da lenta “abertura”, que previa a restituição da democracia e dos direitos civis.

Foi uma década de grandes transformações também no comportamento humano, com a consolidação do “women´s lib”, a conquista do direito ao divórcio, a dissolução da idéia formatada de família, a ocupação dos espaços sociais pelas minorias, o desenvolvimento científico, o avanço das idéias, a valorização do indivíduo, enfim, a estrutura formal social se viu frente a frente com desafios que avançavam em novos atos e comportamentos.

O início da década foi marcado pelo “desbunde”, uma espécie de “movimento punk num luau” (festa noturna de verão na praia). O desbunde seria um

[...] termo originado do verbo desbundar, que, segundo os dicionários, significa "perder o autodomínio, enlouquecer, loucura, desvario". Foi apenas isso? Quem era jovem no Brasil, teria dois bons motivos para desbundar : 1) acompanhar a possibilidade de sonhar com uma nova era, voltada a valores espirituais e pouco materialista; 2) esquecer a repressão política e o estado sem direito instaurado pela ditadura militar. Aliás, nos anos 70, a América Latina era um antro de ditaduras por todos os lados.
Sonhar com novos rumos fazia parte do pensamento libertário e da estética contracultural da época. A Guerra do Vietnam chegava ao fim, com milhões de vítimas. Richard Nixon era acuado pelo caso Watergate. Os cabelos cresciam, as barbas ficavam compridas, as idéias cada vez mais radicais, as artes plásticas se misturavam a perfomances ou instalações, o sexo virava amor livre e a humanidade até pensava que podia ser feliz.(http://www.galcosta.com.br..., 2005)

Falando do desbunde e da sua influência no mundo guei, Trevisan (2007, pág. 284) comenta :

“Alguém desbundava justamente quando mandava às favas – sob aparência freqüente de irresponsabilidade – os compromissos com a direita e a esquerda militarizada da época, para mergulhar numa liberação individual, baseada na solidariedade não-partidária e muitas vezes associada ao uso de drogas ou à homossexualidade (então recatadamente denominada “androginia”). Talvez fosse possível detectar o início deste fenômeno em três núcleos deflagradores – nas áreas de teatro e na música popular. Estou me referindo aos compositor-cantor Caetano Veloso, ao grupo teatral Dzi Croquetes e ao cantor Ney Matogrosso.

Enquanto os punks – que surgiram mais tarde - urravam “Esqueça os estúpidos e gritem !!”, os desbundados sussurravam “Esqueçam os estúpidos e compartilhem a rede...”

Dzi Croquettes


Nota : Os Dzi Croquetes foi um grupo composto exclusivamente de homens que causou furor nos palcos nacionais no início dos 70. Com o intuito de embaralhar as fronteiras dos gêneros, os Croquetes, homens de bigode e barba, apresentavam-se


[...] com vestes femininas e cílios postiços, usando meias de futebol com sapatos de salto alto e sutiãs em peitos cabeludos. Assim, nem homem nem mulheres (ou exageradamente homens e mulheres), eles dançavam em cena e contavam piadas cheias de humor ambíguo, tentando furar o cerco repressivo deste período ditatorial em que a censura e a polícia mobilizavam-se ao menor movimento que destoasse dos parâmetros permitidos. (TREVISAN, 2007, pág. 288)
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MPB GLS - Parte 3

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Panorama Histórico – Social - Cantos e Representações

- Terceira Parte -

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5 - MPB Guei - Artistas pós 60

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5.1 - O brega e as bichas
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Agnaldo Timoteo
Uma obra fundamental para o entendimento da música brasileira é "Eu não sou cachorro não - música popular cafona e ditadura militar" do jornalista e historiador Paulo César de Araújo. Neste livro, o autor dedica algumas páginas para discutir o trabalho de vários cantores considerados "bregas" que lançaram músicas falando sobre o universo homo na década de 70. Agnaldo Timóteo, Wando, Nelson Ned e Odair José são listados como artistas “bregas” que ousaram abordar o tema durante o período mais terrível de censura às artes.

Entre 1975 e 1977, Agnaldo gravou três discos que acabaram por formar a chamada Trilogia da Noite. De 1975 é A galeria do Amor, uma ode explícita à Galeria Alaska em Copacabana, um notório local de encontros guei (“pegação”) do Rio de Janeiro.

Diz a letra : “ Numa noite de insônia saí / Procurando emoções diferentes / E depois de algum tempo parei / Curioso por certo ambiente / Onde muitos tentavam encontrar / O amor numa troca de olhar / Na galeria do amor é assim / Muita gente a procura de gente / A galeria do amor é assim / Um lugar de emoções diferentes / Onde gente que é gente se entende / Onde pode se amar livremente / Numa noite de insônia saí / E encontrei o lugar que buscava / A galeria do amor me acolheu / Bem melhor do eu mesmo esperava / Hoje eu tenho pra onde fugir / Quando a insônia se apossa de mim / Na galeria do amor é assim / Muita gente a procura de gente A galeria do amor é assim / Um lugar de emoções diferentes / Onde gente que é gente se entende / Onde pode se amar livremente / Onde gente que é gente se entende / Onde pode se amar livremente"

Clique abaixo para ouvir A Galeria do Amor
 

É interessante notar o uso do termo “gente”. Para os não iniciados, “gente” é gente (gênero humano – homem, mulher, criança), porém, nos 70´s era uma gíria fortíssima para identificar os gueis. Por exemplo, quando uma biba queria identificar uma outra – ou delatá-la -, dizia “ele é gente”, referindo-se ao homossexualismo do próximo. Ou então, na aproximação clandestina entre dois homens, um poderia, a título de reconhecimento de área, perguntar : “Você é gente?”. Se o outro fosse o guei, entenderia a intenção da pergunta, se não, acreditaria estar diante de um débil.

No livro, Agnaldo conta de onde surgiu a inspiração para a música:


Eu fiz esta canção por causa de uma noite de paquera. Eu cheguei de viagem, joguei a mala de dinheiro numa gaveta do quarto, desci, peguei meu carro e fui paquerar. E chegando ali eu vi aquele ambiente, as pessoas se olhando, os coroas paquerando os menininhos (...) foi numa noite de paquera. Aquilo que eu retratei na letra foi real, absolutamente real. (ARAUJO, 2002)

Wando
Devido ao sucesso de "Galeria do Amor", Agnaldo gravou mais dois discos que traziam músicas na mesma linha (Perdido na Noite, de 1976 e Eu Pecador ,de 1977) e hoje é de se perguntar se o mundo hétero soubesse da “verdade” por trás destas obras o sucesso teria acontecido. Provavelmente não.

Em 1978 Wando, famoso cantor romântico que era alvo de calcinhas atiradas pelas fãs enlouquecidas nos shows, gravou Emoções que falava sobre a descoberta do amor entre dois adolescentes.


Emoções

Nos fizemos tão meninos livres tão vadios de tanto querer / Nós fizemos poesia pra chorar do riso pra sorrir da dor / Me entregastes teus segredos / Eu falei do medo do meu coração / Assim pisamos noite a dentro / Como dois perdidos cheios de emoção / Nas almofadas tão macias / Nos aconchegamos sufocando a paz / Tudo então se fez ternura que nas nossas juras prometemos ser / Até que a morte nos separe ou até o dia amanhecer / Nós faremos nosso mundo nós seremos tudo que devemos ser / A lua iluminou teu corpo / Moreno, bonito, pra me provocar / No teu rosto um riso lento / Misturado ao pranto vi desabrochar / Te agasalhei nos braços, pele, mãos, espaços, acariciei / Te amei suavemente, e tão docemente, eu me fiz teu rei.

Clique abaixo par ouvir Emoções 


Odair Jose
Odair José, outro ícone brega dos 70´s, o chamado “terror das empregadas”, surgiu com Forma de Sentir onde cantava : “..sei que és entendido (1) e vais entender / que eu entendo e aceito a tua forma de amor...”

Letra :
 
Sei que és entendido e vai entender / Que eu entendo e aceito a tua forma de amor / Que eu entendo e aceito a tua forma de amor... / Ame, assuma e consuma / O teu verdadeiro sentido do sentir / E nem penses que eu vou proibir... / O dobro do verso, o dobro da flor / O dobro do corpo, o dobro do amor /O beijo no beijo, o igual do igual / Trocando, entregando, buscando, chegando / Ao delírio final...Eu vi o teu verdadeiro sentido do sentir / E nem penses que eu vou proibir... / É proibido proibir...

(1) Nota : “entendido”, assim como “gente” era um termo de identificação dos gueis na época.

Clique abaixo par ouvir Forma de Sentir
 
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5.2 - Caetano Veloso e Gilberto Gil – simpatizantes
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Falar sobre a importância de Caetano na MPB é chover no molhado. Gênio, louco, poeta, visionário, egocêntrico, arrogante, ousado, imbecil, ultrapassado, são algumas das alcunhas pelas quais ele é denominado. Com uma carreira artística sólida, ele trafega entre a música, literatura (e cinema), sempre expressando de forma clara e direta suas idéias, suas vivências, seu recado. Polêmico, não foge ao debate, a controvérsia, o que atrai admiradores - mas também inimigos e detratores. “Ame-o ou deixe-o”, parece acompanhá-lo.

Desde o início da sua carreira, sua obra e ações foram marcadas pela “infração”.


Caetano Veloso apareceu como um enfant-terrible da canção brasileira, a partir de 1969. Depois de um leve namoro com as esquerdas ortodoxas, proclamou sua independência da música engajada e rompeu igualmente com a idéia de uma música popular brasileira “pura”, empregando guitarras elétricas e apresentando uma maneira de ver o mundo entre irada e erudita (...). Caetano preferiu falar de um Brasil moderno que, a duras penas, nascia dentre as pernas na eletrônica, da televisão, da mídia em geral. (TREVISAN, 2007, pág. 285)

No que se refere a algum tipo olhar ou leitura guei na arte de Caetano, João registra :


Ainda que repetisse explicitamente que não transava com homens, Caetano provocou furor quando, após voltar de Londres, na década de 1970, subiu aos palcos brasileiros de bustiê e batom nos lábios, requebrando com os trejeitos campy de Carmem Miranda. Numa entrevista, ele se referiu explicitamente ao seu desejo de ser múltiplo, confessando uma forte e consciente identificação feminina, desde pequeno. Ainda mais provocador em seus shows posteriores – verdadeiros festivais de desmunhecação -, Caetano costumava beijar insistentemente a boca de cada um dos seus músicos (...), diante do público que urrava de delírio (TREVISAN, 2007, pág. 286)

Falando de suas canções, algumas são pinçadas sob um olhar guei.

Uma é Menino do Rio onde ele diz : “Menino vadio / Dragão tatuado no braço / Calção corpo aberto no espaço/ (...) quando eu te vejo / Eu desejo o teu desejo / Menino do Rio / Calor que provoca arrepio / Toma esta canção como um beijo”. – Esta canção é uma ode à beleza masculina.

Clique abaixo para ouriv Menino do Rio
 

Outras que podem ser citadas são Ele me deu um beijo na boca e Podres poderes.
Trevisan (2007, pág. 287) comenta as duas sob uma perspectiva guei :


[...] Caetano compôs (...) “Ele me deu um beijo na boca” – em que termina dizendo : “e eu correspondi àquele beijo” (...) ... na contundente “Podres Poderes” , ele utilizava ricos malabarismos de linguagem para vociferar contra o poder burguês, e se dizia poeta afinado com o êxtase dos “índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes”, que fazem o carnaval e zelam pela alegria do mundo.

A interrogação que fica é qual é a idéia por trás da afirmação de que os padres, adolescente e índios, juntamente com as bichas, mulheres e negros “fazem o carnaval” (?!)

Ele me deu um beijo na boca


Ele me deu um beijo na boca e me disse / A vida é oca como a toca / De um bebê sem cabeça / E eu ri a beça / E ele: como uma toca de raposa bêbada / E eu disse: chega da sua conversa / De poça sem fundo / Eu sei que o mundo / É um fluxo sem leito / E e só no oco do seu peito / Que corre um rio / Mas ele concordou que a vida é boa / Embora seja apenas a coroa: / A cara é o vazio / E ele riu e riu e ria / E eu disse: Basta de filosofia / A mim me bastava que o prefeito desse um jeito / Na cidade da Bahia / Esse feito afetaria toda a gente da terra / E nós veríamos nascer uma paz quente / Os filhos da guerra fria / Seria um anticidente / Como uma rima / Desativando a trama daquela profecia / Que o vicente me contou / Segundo a Astronomia / Que em Novembro do ano que inicia / Sete astros se alinharão em escorpião / Como só no dia da bomba de Hiroshima / E ele me olhou / De cima e disse assim pra mim / Delfim, Margareth Tatcher, Menahem Begin / Política é o fim / E a crítica que não toque na poesia / O Time Magazine quer dizer que os Rolling Stones / Já não cabem no mundo do Time Magazine / Mas eu digo (Ele disse) / Que o que já não cabe é o Time Magazine / No mundo dos Rollings Stones Forever Rockin´And Rolling / Por que forjar desprezo pelo vivos / E fomentar desejos reativos / Apaches, Punks, Existencialistas, Hippies, Beatniks / De todos os Tempos Univos / E eu disse sim, mas sim, mas não nem isso / Apenas alguns santos, se tantos, nos seus cantos / E sozinhos / Mas ele me falou: Você tá triste / Porque a tua dama te abandona / E você não resiste, Quando ela surge / Ela vem e instaura o seu cosmético caótico / Você começa olhar com olho gótico / De cristão legítimo / Mas eu sou preto, meu nego / Eu sei que isso não nega e até ativa / O velho ritmo mulato / E o leão ruge / O fato é que há um istmo / Entre meus Deus / E seus Deuses / Eu sou do clã do Djavan / Você é fã do Donato / E não nos interessa a tripe cristã / De Dilan Zimerman / E ele ainda diria mais / Mas a canção tem que acabar / E eu respondi: / O Deus que você sente é o deus dos santos: / A superfície iridescente da bola oca, / Meus deuses são cabeças de bebês sem touca / Era um momento sem medo e sem desejo / Ele me deu um beijo na boca / E eu correspondi àquele beijo

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Podres poderes


Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos / E perdem os verdes / Somos uns boçais... / Queria querer gritar / Setecentas mil vezes / Como são lindos / Como são lindos os burgueses / E os japoneses / Mas tudo é muito mais... / Será que nunca faremos / Senão confirmar / A incompetência da América católica / Que sempre precisará de ridículos tiranos / Será, será, que será? Que será, que será? / Será que esta minha estúpida retórica / Terá que soar / Terá que se ouvir por mais zil anos.../ Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Índios e padres e bichas, Negros e mulheres, e adolescentes / Fazem o carnaval... /  Queria querer cantar afinado com eles / Silenciar em respeito ao seu transe num êxtase / Ser indecente / Mas tudo é muito mau... / Ou então cada paisano e cada capataz / Com sua burrice fará jorrar sangue demais / Nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais / Será que apenas os hermetismos pascoais / E os tons, os mil tons / Seus sons e seus dons geniais / Nos salvam, nos salvarão / Dessas trevas e nada mais.../ Enquanto os homens exercem / Seus podres poderes / Morrer e matar de fome / De raiva e de sede / São tantas vezes gestos naturais... / Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo / Daqueles que velam pela alegria do mundo / Indo e mais fundo / Tins e bens e tais.../ Será que nunca faremos senão confirmar / A incompetência da América católica / Que sempre precisará de ridículos tiranos / Será, será, que será? / Que será, que será? / Será que essa minha estúpida retórica / Terá que soar / Terá que se ouvir / Por mais zil anos... / Ou então cada paisano / E cada capataz / Com sua burrice fará / Jorrar sangue demais / Nos pantanais, nas cidades / Caatingas e nos gerais... /  Será que apenas / Os hermetismos pascoais / E os tons, os mil tons / Seus sons e seus dons geniais / Nos salvam, nos salvarão / Dessas trevas e nada mais... / Enquanto os homens / Exercem seus podres poderes / Morrer e matar de fome / De raiva e de sede / São tantas vezes / Gestos naturais / Eu quero aproximar / O meu cantar vagabundo / Daqueles que velam / Pela alegria do mundo... / Indo mais fundo / Tins e bens e tais!


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Em Três Travestis ele canta belamente a labuta das travas pelas esquinas.



Três Travestis

Três travestis traçam perfis na praça / Lápis e giz / Boca e nariz / Fumaça / Lótus e Liz / Drops de aniz / Cachaça / Péssima atriz/ Chão / Salto e triz / Trapaça / Quem é que diz? / Quem é feliz? / Quem passa? / A codorniz / O chamariz / A caça / Três travestis / Três colibris de raça / Deixam o país e enchem Paris de graça

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Em “Multishow - Cê ao Vivo”, surge talvez a melhor música guei do bardo, é a Amor mais que discreto.


Amor mais que discreto.

Talvez haja entre nós o mais total interdito / Mas você é bonito o bastante / Complexo o bastante / Bom o bastante / Pra tornar-se ao menos por um instante / O amante do amante / Que antes de te conhecer / Eu não cheguei a ser / Eu sou um velho / Mas somos dois meninos / Nossos destinos são mutuamente interessantes / Um instante, alguns instantes / O grande espelho / E aí a minha vida ia fazer mais sentido / E a sua talvez mais que a minha, / Talvez bem mais que a minha / Os livros, filmes, filhos / Ganhariam colorido / Se um dia afinal / Eu chegasse a ver que você vinha / E isso é tanto que pinta no meu canto / Mas pode dispensar a fantasia / O sonho em branco e preto / Amor mais que discreto / Que é já uma alegria / Até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo / O seu agora, seu antes, seu depois / Sem ser remotamente / Se quer imaginado / Se quer / Por qualquer de nós dois.

Clique abaixo para ouvir Ilusão a toa & Amor mais que discreto

Em notícia publicada no site “A Capa” Caetano comenta esta canção e aproveita para polemizar (o que era esperado).


[...] Preciso dizer nos shows que a letra é gay. A palavra gay surgiu nos Estados Unidos para explicar alegria. Infelizmente, hoje a palavra chegou com esse ego malévolo", disse Caetano. E para causar ainda mais polêmica, o cantor usou um de seus expedientes favoritos, a ambigüidade: "Não sei se é certo a pessoa ser gay ou não. Só sei que é uma possibilidade". (http://www.acapa.com.br..., 2007)

Numa outra reflexão, violando o erudito através de um olhar maravilhosamente transgressor, Caetano, na canção “Língua”, celebra nosso vernáculo num viés guei : “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões..”. Perfeito.

Gilberto Gil, genial compositor, contemporâneo, amigo, parceiro de Caetano também apresenta em sua obra algumas canções que roçam (ou não) o tema. Uma é Pai e Mãe.


Pai e Mãe.

Eu passei muito tempo aprendendo a beijar outros homens / Como beijo o meu pai (...) Meu pai, como vai? / Diga a ele que não se aborreça comigo / Quando me vir beijar outro homem qualquer / Diga a ele que eu quando beijo um amigo / Estou certo de ser alguém como ele é / Alguém com sua força pra me proteger / Alguém com seu carinho pra me confortar / Alguém com olhos e coração bem abertos / Para me compreender

Clique abaixo para ouvir Pai e Mãe
 

Outra é Super-Homem (a canção)


Super-Homem (A Canção)

Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria / Que o mundo masculino tudo me daria / Do que eu quisesse ter / Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora / É o que me faz viver (...)

Clique abaixo par ouvir Super-Homem (A Canção)
 
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5.3 - Chico Buarque de Hollanda – Luz e Poesia
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Chico Buarque 
Chico Buarque de Hollanda é um iluminado que com sua grandeza artística contribuiu com canções definitivas para o universo musical guei brasileiro.

Hoje é impossível falar no assunto sem lembrar de pelo menos três de suas canções : Bárbara, Geni e o Zeppelin, e Mar e Lua.

Bárbara, foi composta, juntamente com Ruy Guerra, para a peça Calabar – O elogio da traição (1972) e mostra o amor entre duas mulheres (Ana e Bárbara)


Bárbara

Bárbara, Bárbara / Nunca é tarde, nunca é demais / Onde estou, onde estás / Meu amor, vem me buscar / O meu destino é caminhar assim / Desesperada e nua / Sabendo que no fim da noite serei tua / Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva / Acumulando de prazeres teu leito de viúva (...) / Vamos ceder enfim à tentação / Das nossas bocas cruas / E mergulhar no poço escuro de nós duas / Vamos viver agonizando uma paixão vadia / Maravilhosa e transbordante, como uma hemorragia (...)

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Geni e o Zeppelim, composta para a peça “A ópera do Malandro”, mostra a triste condição de uma travesti que é “aceita” pela comunidade quando esta se vê em perigo de ser bombardeada e Geni pode ser a única pessoa a evitar tal catástrofe: “...Você pode nos salvar / Você vai nos redimir / Você dá pra qualquer um Bendita Geni” e que, após o perigo sumir, é escorraçada tendo que voltar a sua condição de lixo humano: “Joga pedra na Geni / Joga bosta na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni!”

Num exemplo de apropriação indébita , na época do sucesso da canção – segunda metade dos 70´s -o termo Geni foi utilizado para designar negativamente as travestis.

Geni e o Zeppelim
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De tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto / Ela já foi namorada / O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes / É de quem não tem mais nada / Dá-se assim desde menina / Das lésbicas concumbina / Dos pederastas amázio / É a rainha dos detentos / Das loucas, dos lazarentos / Dos moleques do internato / E também vai amiúde / Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem porvir / Ela é um poço de bondade / E é por isso que a cidade / Vive sempre a repetir / Joga pedra na Geni / Joga pedra na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni / Um dia surgiu, brilhante / Entre as nuvens, flutuante / Um enorme zepelim / Pairou sobre os edifícios / Abriu dois mil orifícios / Com dois mil canhões assim / A cidade apavorada / Se quedou paralisada / Pronta pra virar geléia / Mas do zepelim gigante / Desceu o seu comandante / Dizendo – Mudei de idéia / – Quando vi nesta cidade / – Tanto horror e iniqüidade / – Resolvi tudo explodir / – Mas posso evitar o drama / – Se aquela formosa dama / – Esta noite me servir / Essa dama era Geni / Mas não pode ser Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni / Mas de fato, logo ela / Tão coitada e tão singela / Cativara o forasteiro / O guerreiro tão vistoso / Tão temido e poderoso / Era dela, prisioneiro / Acontece que a donzela / – e isso era segredo dela / Também tinha seus caprichos / E a deitar com homem tão nobre / Tão cheirando a brilho e a cobre / Preferia amar com os bichos / Ao ouvir tal heresia / A cidade em romaria / Foi beijar a sua mão / O prefeito de joelhos / O bispo de olhos vermelhos / E o banqueiro com um milhão / Vai com ele, vai Geni / Vai com ele, vai Geni / Você pode nos salvar / Você vai nos redimir / Você dá pra qualquer um / Bendita Geni / Foram tantos os pedidos / Tão sinceros, tão sentidos / Que ela dominou seu asco / Nessa noite lancinante / Entregou-se a tal amante / Como quem dá-se ao carrasco / Ele fez tanta sujeira / Lambuzou-se a noite inteira / Até ficar saciado / E nem bem amanhecia / Partiu numa nuvem fria / Com seu zepelim prateado / Num suspiro aliviado / Ela se virou de lado / E tentou até sorrir / Mas logo raiou o dia / E a cidade em cantoria / Não deixou ela dormir / Joga pedra na Geni / Joga bosta na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni
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Clique abaixo para ouvir Geni e o Zeppelim
 

Mar e Lua é uma belíssima poesia que relata o amor suicida entre duas mulheres.


Mar e Lua

Amaram o amor urgente / As bocas salgadas pela maresia / As costas lanhadas pela tempestade / Naquela cidade distante do mar / Amaram o amor serenado / Das noturnas praias / Levantavam as saias / E se enluaravam de felicidade /Naquela cidade que não tem luar / Amavam o amor proibido / Pois hoje é sabido / Todo mundo conta / Que uma andava tonta / Grávida de lua /E outra andava nua / Ávida de mar / E foram ficando marcadas / Ouvindo risadas, sentindo arrepio / Olhando pro rio tão cheio de lua E que continua / Correndo pro mar / E foram correnteza abaixo / Rolando no leito / Engolindo água / Rolando com as algas / Arrastando folhas / Carregando flores / E a se desmanchar / E foram virando peixes / Virando conchas / Virando seixos / Virando areia / Prateada areia / Com lua cheia E à beira-mar

Clique abaixo para ouvir Mar e Lua
 

Bela e emocionante.
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5.4 - Nei Matogrosso – ambigüidade no seu auge.
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Ney Matogrosso
Nei Matogrosso, cantor ícone, está definitivamente ligado a historicidade guei da MPB. Sua aparição, como vocalista da banda “Secos e Molhados” em 1973, provocou um choque estético contundente. 

Com o rosto escondido sob uma pesada máscara de maquiagem, o corpo peludo e seminu - adornado com saias, penas, palha, tapa-sexo, chifres, couro, e outros elementos de mesmo tom -, compunha uma figura indefinível, sui generis que encantou boa parcela da população (desde crianças até os mais velhos), angariou uma multidão de fãs, assustou a mídia e criou desafetos. 

Sua imagem era inclassificável.


Homem? Mulher? Viado? Sua voz feminina – na verdade um raro registro de contratenor, sem qualquer falsete – contrastava com seu corpo másculo e peito cabeludo. A ambigüidade dos Dzi Croquetes chegava nele a um verdadeiro paroxismo (....) Desde Carmem Miranda, talvez, o Brasil não via surgir um ídolo de música popular tão fascinante e exótico. (TREVISAN, 2007, pág.289)

A música de Nei Matogrosso não está, sabiamente, vinculada a uma causa ou bandeira guei – o que certamente a diminuiria – porém algumas de suas gravações jogam com o tema, como por exemplo em O vira (1973), que


(...) brincava com a dança portuguesa do “vira”, lançando um dúbio e escandaloso convite : “Vira , vira, vira homem / Vira, vira lobisomem”. O lobisomem, no caso, referia-se ironicamente a esses anônimos habitantes da grande cidade, que após a meia-noite deixam seu cansativo papel de abóboras para se transformar em atrevidas cinderelas; nas boates gueis, esse sentido ficou evidente : a canção se tornou quase um debochado hino dos homossexuais de então. (TREVISAN, 2007, pág.289)
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O vira
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O gato preto cruzou a estrada / Passou por debaixo da escada. / E lá no fundo azul / na noite da floresta. / A lua iluminou / a dança, a roda, a festa. / Vira, vira, vira / Vira, vira, vira homem, vira, vira / Vira, vira, lobisomen / Vira, vira, vira / Vira, vira, vira homem, vira, vira / Bailam corujas e pirilampos / Entre os sacis e as fadas. / E lá no fundo azul / na noite da floresta. / A lua iluminou / a dança, a roda, a festa.

Clique abaixo para ouvir O Vira
 

Outro marco é a gravação, numa parceria com a banda “João Penca e seus Miquinhos Amestrados”, da versão de Tell me once again (do grupo Light Reflections), que na paródia ficou Telma eu não sou gay e que conta o drama de hetero que, diante da namorada, jura que está sendo caluniado ao ser chamado de guei.

Calunias (Telma eu não sou gay)
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Diz que vai dar, meu bem / Seu coração pra mim / Eu deixei aquela vida de lado / E não sou mais um transviado /  Telma, eu não sou gay/ O que falam de mim são calúnias, meu bem / Eu parei . . . . ./ Não me maltrate assim não posso mais sofrer / Vamos ser um casal moderno / Você de bobs e eu de terno / Eu sou introvertido até no futebol / Isso tudo não faz sentido / E não é meu esse baby doll  / Telma, ô Telminha, não faz assim comigo / Não me puna por essas manchas no meu passado / Já passou, esses rapazes são apenas meus amigos / Agora eu sou somente seu, meu amor
Clique abaixo para ouvir Calunias (Telma eu não sou gay)
 

Em Napoleão a ambigüidade ocorre nas reticências.


Napoleão
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Napoleão com seus cem soldados (3x) / Napoleão viveu com seus cem soldados / Napoleão comeu com seus cem soldados / Napoleão dormiu com seus cem soldados / Napoleão brigou com seus cem soldados / Napoleão venceu com seus cem soldados / Napoleão morreu com seus cem soldados / Napoleão com seus cem soldados / Um morreu de frente o outro morreu de lado / Um morreu deitado e o outro morreu sorridente / Um era soldado o outro era presidente / Ah, um era meu avô o outro era filho meu / Um morreu decapitado e outro morreu soluçando / Um até morreu gritando, cada qual mais diferente / Ai, ai, ai, quedê, ai ai ai quedê quede / Quedê quedê quedê quedê quedê quedê / Mas quem é que sabe o nome desses cem soldados / Napoleão com seus cem soldados / Quem é que sabe o sobrenome desses cem soldados / Napoleão com seus cem soldados / Cem soldados sem velório, cem guerreiros sem história / Napoleão com seus cem soldados / Cem minutos sem memória, sem certo e sem errado / Napoleão com seus cem soldados / E quem sabe me dizer se eram cem soldados / Eu quero ver pra acreditar, eu quero ver, eu quero ver / Napoleão... com seus cem soldados, oh, yeah!
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Clique abaixo para ouvir Napoleao
 
A canção vai listando tipos de relações de Napoleão com seus soldados (viveu, comeu, dormiu, morreu), mas no final o registro é substituído pelo silêncio, que deve ser preenchido pela imaginação do ouvinte – e é óbvio que qualquer coisa inominável pode surgir. Também quando diz “Napoleão ‘morreu’ com seus cem soldados”, a possibilidade de ‘morrer’ ser ‘trepou’ aparece, pois na seqüência vem ‘Um morreu de frente, o outro morreu de lado’ / (...) / Um morreu deitado, outro morreu sorridente...”. Associando esta idéia à expressão “petite mort” (“pequena morte”, termo francês para a sensação de inconsciente pós-orgasmo), a leitura homo-erótica intensifica-se.
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5.5 - Leci Brandão - Samba contra o preconceito
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Leci Brandao
Dentro do seu notório espírito combativo, a sambista Leci Brandão lançou em 1978, de forma explícita, a triste canção Ombro Amigo que retratava brilhantemente a dificuldade da condição gay da época (não que hoje seja muito melhor).

A letra inicia afirmando a condição do amor marginal associado ao medo e ao preconceito , “Você vive se escondendo / Sempre respondendo com certo temor / Eu sei que as pessoas lhe agridem / E até mesmo proíbem sua forma de amor..”

E segue trazendo uma certa esperança, uma utopia, um sonho. Porém, até que isto aconteça, o guei deve se manter na clandestinidade, na mentira. “Num dia , sem tal covardia, você poderá com seu amor sair / Agora ainda não é hora de você, amigo, poder assumir”

E finaliza “E você tem vir pra boate / Pra bater um papo ou desabafar / E quando a saudade lhe bate / Surge um ombro amigo prá você chorar”.

Ou seja, a música mostra que, nos 70´s, o guei só encontrava nos guetos (tipo boate) o espaço acolhedor para poder expressar seus sentimentos. Isto era - e ainda é - uma verdade para muitos gueis.

Já em Essa tal Criatura ela grita o rompimento das amarras, a derrubada da vergonha, o assumir-se..


Leci
Essa tal Criatura

Tire essa bota / Pisa na terra / Rasgue essa roupa / Mostra teu corpo / Limpa esse rosto / Coma poeira / Suja essa cara / Sinta meu gosto / Morda uma fruta madura / Lamba esse dedo melado / Transa na mais linda loucura, deixa a vergonha de lado /Corra no campo / Leva um tombo / Rala o joelho / Mata esta sede / Durma na rede / Sonha com a lua / Grita na praça / Picha as paredes / Ama na maior liberdade... / Abra, escancara esse peito / Clama! Só é linda a verdade, nua sem ser preconceito / Tire essa fruta / Lamba essa terra / Pisa as paredes / Sinta esse tombo / Rala esse rosto / Transa com a lua / Morda essa cara / Linda, tão nua... / Faça da vergonha, loucura... / Abra, escancara a verdade / E ama essa tal criatura que envergonhou a cidade

Recentemente ela regravou estas duas músicas em conjunto (“numa só”), iniciando por Ombro amigo, o que deu um belo efeito de transição da opressão para a libertação.

Ombro amigo
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Você vive se escondendo / Sempre respondendo / Com certo temor / Eu sei que as pessoas lhe agridem / E até mesmo proíbem / Sua forma de amor / E você tem que ir pra boate / Pra bater um papo / Ou desabafar /  E quando a saudade lhe bate /  Surge um ombro amigo / Pra você chorar / Num dia sem tal covardia / Você poderá com seu amor sair / Agora ainda não é hora / De você, amigo, poder assumir / Por isso tem que vir pra boate ...

Clique abaixo para ouvir Ombro Amigo & Essa tal Criatura

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Trabalho apresentado na conclusão do "CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LITERATURA BRASILEIRA" da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2009.
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A publicação deste trabalho no Blog foi dividida em 5 partes
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Para acessar a Primeira Parte, tecle AQUI.
Para acessar a Segunda Parte, tecle AQUI.
Para acessar a Quarta Parte, tecle AQUI.
Para acessar a Quinta Parte, tecle AQUI
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