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Hino do Blog : " ...e todas as vozes da minha cabeça, agora ... juntas. Não pára não - até o chão - elas estão descontroladas..."
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Saturday, January 31, 2009

Eu e Cida Moreira














Assisti o primeiríssimo show que Cida apresentou em Porto Alegre. Acho que era na primeira década dos 80´s e foi anunciado no jornal Zero Hora que uma cantora paulista estaria fazendo show com músicas da Janis Joplin naquele mesmo dia no Instituto Cultural Brasileira, “de grátis”. E só. Ninguém sabia mais nada sobre ela.


Eu e meu irmão, como fãs incondicionais da Janis, resolvemos arriscar e ver se a coisa rendia. O show foi tipo umas 18 horas e por incrível que pareça a pequena sala do cultural ficou cheia de curiosos. De repente me entra no palco uma figura –uma garota- tri esquisita com umas plumas na cabeça, uma roupa psicodélica, um cabelão acho que puxando pro vermelho. Bem freak mesmo, bem na linha Janis. Pois a tal moça era a cantora obviamente pois dirigiu-se ao piano (único instrumento em cena) e sentou-se. Ninguém aplaudiu; afinal ninguém a conhecia, ninguém nunca a tinha ouvido. A desconhecida, visivelmente nervosa, acomodou-se do jeito que pôde, sorriu, suspirou, atacou as teclas e começou a mandar o repertório.


E que repertório! Só pérolas. Coisas de Billie Hollyday (My man), Jards Macale (Vapor Barato), Beatles (Shes leaving home), e Janis obviamente (Kozmic Blues, Summertime, etc). E a medida em que ela desfiava estas e outras pérolas a magia acontecia naquela pequena sala. Ali, diante de nossos olhos, uma desconhecida transmutava-se. Tal qual uma Kali, uma Lilith, uma Morgana, o que se via era uma bruxa, uma feiticeira, uma sacerdotisa, mexendo no seu caldeirão e oferecendo sua poção sedutora a todos. E quanto mais bebíamos mais tínhamos sede daquele sortilégio. E ela abria sua boca e nos saciava diretamente com sua saliva, com sua baba, com seu grito, com sua língua, com seu som. No final estávamos rendidos, os espíritos capturados, o pacto estabelecido e a comunhão realizada.


Nem é preciso dizer que viramos fãs. E ela também gostou de Porto Alegre pois começou a vir muito pra cá. E a cada destas vezes, eu e meu irmão estávamos lá. Assistimos a vários shows, compramos os long-plays (vejam só que coisa mais arcaica) e nos interessávamos em acompanhar tudo o que surgia dela. Depois de alguns anos meu irmão morreu e eu meio que a abandonei. Obviamente vê-la me lembrava ele e eu procurava evitar maiores dores.


O engraçado é que depois de algum anos eu a vaiei em cena aberta no teatro da UFRGS. Calma, explico : o que ocorreu foi que fomos assistir a um “grande espetáculo” da famosíssima Denise Stoklos que seria o “grande encerramento” de uma edições do festival de teatro Porto Alegre em Cena, e este tal “espetáculo” teria a participação da Cida. Não me lembro o nome de tal peça (fiz questão absoluta de esquecer), mas me lembro que foi uma das coisas mais horrendas já apresentadas nos palcos dos pampas. Denise, certamente coadunada com seu ego absoluto, juntou de modo absolutamente amador e medíocre uma colagem estrambólica de referências que não levava a nada. Uma coisa totalmente patética. De repente estourou uma vaia estrondosa que imediatamente incorporamos. Gritávamos coisa do tipo “Fecha o pano!” e outras amenidades. Denise, muito atriz, muito “forte”, veio à boca de cena e agradeceu o xingamento. Cida estava no palco e quando Denise a apontou, a vaia tornou-se numa ovação (até que rimou). Ou seja, jogávamos pedra na cabeça de pinto (muito loura e espiaçada) e flores na diva Cida....


E o tempo passa, e muita coisa muda.


Chegamos ao novo século e ontem a noite eu e meu companheiro fomos ao Studio Clio para assistir o show "A dama indigna", com músicas de clima de cabaré. Chegamos lá e não tinha mais ingresso. A casa já estava lotada e o que tinha era uma lista de espera de 26 pessoas. Desistimos é claro. Porém a Amanda, secretária do Studio, nos disse que possivelmente a Cida faria um show extra e pegou nosso telefone para nos avisar caso isto acontecesse.


Voltamos para casa e quando estávamos na garagem a Amanda nos liga para informar que tinha conseguido dois ingressos para a aquela noite naquele momento. Voltamos correndo ao Studio. Os tais ingressos eram para um local de onde só poderia se ver o piano e nem sombra da Diva. Decidimos sentar nas escadas – de onde teríamos uma visão melhor – e por fim a incrível Amanda nos conseguiu dois lugares legais.


Depois de um atraso de uns 30 minutos Cida entra em cena. Que maravilha ! Agora totalmente consagrada, aplaudida, bajulada. E ela, muito deusa, senta-se ao piano (novamente o único instrumento) e larga o vozeirão. E a fascinação continua, a bruxaria permanece. O povo gritava e ela sorria. Em um determinado momento a diva comenta que o povo da platéia baixa estava aplaudindo mais. E eu gritei que não, que o povo da platéia de cima também estava gritando. Ela pára o show e pergunta quem tinha dito isto, e eu respondo “Iuri”. E ela pergunta de onde eu falo, e eu respondo “do poleiro”. Ela ri e ergue um brinde a minha pessoa. Que máximo!.


E a função continua.Eu não conhecia várias das músicas, mas ela – ciente da sua missão- apresenta cada canção, conta histórias dos autores, aproximando a platéia de cada detalhe do show.


Numa das sequencias ela começa a cantar mais uma do Tom Waits - que nunca foi um artista que tenha me interessado em particular -. Mais uma para mim desconhecida, porém bela como todas as demais. Mas esta trazia na letra as seguintes frases : “In a land there's a town / And in that town there's a house /And in that house there's a woman / And in that woman there's a heart I love / I'm gonna take it with me when I go”. O que ?! Estou ouvindo bem ! Jesus do céu, que maravilha! As lágrimas explodiram nos meus olhos. E a Cida, implacável, fez questão de lamber cada uma destas frases. Agarrei a mão do meu companheiro e meu coração se encheu de amor (que coisa mais cafona e piegas, mas fazer o que ??). - Depois descobri que a música chama-se "Take it with me".


E o evento avança. Lá no final – depois de uma versão arrasadora do Back do Black da fenomenal Amy – ela ataca de Summertime. Aí eu desabei geral. O tempo, o agora, o futuro e o ontem sumiram e eu estava novamente com meu irmão na pequena sala do Cultural assistindo ao primeiro show dela em Porto Alegre. Então eu senti a presença dele ali comigo revivendo aquele momento único nas nossas vidas. A cada nota emitida meu espírito voava, dissolvia-se num céu de lembranças de dor e alegrias.Cida nos aproximou novamente. Através dela uma memória de melancolia, de resgate, aflorou embaralhando meus sentimentos. A água agora escorria bochecha abaixo (ainda bem que tudo na maior discrição) e eu nem conseguia ver mais a cantante. Que coisa maluca.Certamente só arte pode fazer isto.


No bis, para arrematar minha destruição, a dama indigna encerrou com “Vapor Barato”.

E o que fazer depois disto? ...


Só me restou ir para casa e encher a cara de vinho.


Salve Cida !

Monday, January 12, 2009

Slumdog Millionaire

























Slumdog Millionaire foi o grande vencedor do Globo de Ouro ontem à noite.


Mericidíssimo.


Este filme de Danny Boyle ("Trainspotting") - com um elenco totalmente desconhecido -, é uma fábula poderosa passada nos mais sórdidos ambientes de uma Índia decadente.


Slumdog conta a intensa história de três crianças párias – a camada dos “intocáveis” - , os irmãos Salim e Jamal e a garota Latika, todos abandonados à propria sorte desde a infância numa Índia tomada pela corrupção, podridão e violência.


Quando o filme começa, as imagens de Jamal alternam-se entre sua participação em um game televisivo tipo “O show do milhão” - no qual ele vai acumulando pontuação e dinheiro por responder corretamente às perguntas – e cenas dele sendo torturado pela polícia para confessar que meios utilizou para fraudar o programa, uma vez que ele sendo um pária –um burro, um ser inferior, portanto- seria incapaz do desempenho apresentado.


Afinal, como um garoto – que tem como profissão servir chá a operadores de telemarketing – pôde responder corretamente às perguntas difíceis do programa.? E porque ele está neste programa, qual a sua intenção? Tudo é misterioso e motivo de desconfiança.


A medida em que Jamal vai revelando como sabia cada resposta vamos ficando cada vez mais perplexos. Cada explicação é um soco na cara do espectador (vai desde o hilário ao absolutamente trágico, ao horror).


Para não estragar as surpresas, não vou revelar mais do enredo – que é um primor de originalidade. Só dá pra dizer que este é um dos filmes mais inteligentes dos últimos tempos.


Feito com garra e segurança , Slamdog Millionaire é uma obra engenhosa, completa, emocional, coroada com um final apoteótico e belíssimo que fica ecoando nos corações e mentes de todos.


Bravo !


A mulher sem cabeça




O cotidiano pode ser um poço de horror.

No filme “La Mujer sin cabeza” da argentina Lucrecia Martel, este horror é mostrado (ou não) a partir da história de Verónica (María Onetto – numa interpretação absurda de boa), que atropela algo” (um cachorro ou um ser humano ?), escapa do local, e, agulhada pela culpa, mergulha numa espécie de depressão.

Só que este processo não é mostrado diretamente, não vemos a protagonista em desespero, pedindo ajuda e arrancando os cabelos.

Muito ao contrario, o filme opta por registrar, após o acontecido, o cotidiano de Veronica, sempre cercada de muitas pessoas que, totalmente indiferentes aos seus sinais “doentios”, só falam banalidades, totalmente ausentes umas das outras. E a película é isto mesmo : uma fila de trivialidades insossas, com conversas soltas, irrelevantes, numa morosidade atroz.

O que vemos então é Veronica apatetada (num estado semi comatoso, catatônico) assombrada por fantasmas, pelo desespero contido, pela falta de diálogo, pela falta de aproximação, imersa num mundo completamente superficial sem âncora alguma.

Ela está sempre rodeada de gente (pacientes, amigas, familia, empregados, amante, etc) - sempre sendo beijada, abraçada, solicitada - , porém absolutamente solitária no seu pesadelo.

Quando decide revelar seus receios ao marido e ao primo (que vem a ser seu amante), eles investigam o acontecido, e, com a evolução das descobertas, “tomam conta” da situação deixando-a de lado.

Usando a influência das elites, de alguma forma – que também não é mostrada - apagam as evidências, os traços que poderiam comprometê-la de forma a livrá-la de qualquer acusação.
Estão assim protegendo-a e a eles tambem.

Lá no final ela sente que algo está acontecendo por detrás dos panos, mas porta-se como uma marionete perdida neste mundo vazio; não responde, não questiona nada, apenas se deixa levar pelo trivial.

Colocando tambem em discussão a diferença de classes sociais, o filme apresenta várias cenas de relacionamento entre patrões e serviçais de diversos tipos e de diversas formas – de qualquer maneira sempre separados pela realidade do abismo economico – cultural – social. Neste sentido, Veronica aparentemente se sente “culpada” pela morte de um pária desconhecido (um ninguém) e busca "aproximar-se dos inferiores" para expiar seu pecado. A tentativa mais idiota é quando ela tenta “seduzir” um garoto que a ajuda a carregar umas plantas, com sanduíches, refrigerante e camisetas velhas. Nesta sequência a personagem se apresenta fraca, ridícula, lamentável.

Produzido por, entre outros, Pedro Almodovar, “La Mujer sin cabeza” é um filme ousado que opta pelo não dito, pela lentidão, pela absoluta falta de emoção, pelos diálogos vazios.

É dificil de assistir e requer a chamada “paciência” (o filme foi vaiado em Cannes). Mas definitivamente vale a pena.

O final é fantástico onde, através de uma porta de vidro, vemos Veronica desfocada, irreal, distante, - num bar totalmente cercada pelos seus afins - , num simbolo de completa perda de identidade, inteiramente tragada e aprisionada pela maré das aparências.