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Hino do Blog : " ...e todas as vozes da minha cabeça, agora ... juntas. Não pára não - até o chão - elas estão descontroladas..."
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Saturday, December 17, 2005

O Doce Veneno do Escorpião

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O que dizer do livro da Bruna Surfistinha, “O doce veneno do escorpião (O diário de uma garota de programa)”?

Seria uma nova forma de literatura oriunda da velocidade dos blogs? Um texto altamente descartável produto desta era da Internet? Um diário confessional com complexas revelações psicológicas? Um registro de encontros e fantasias eróticas ousadas? Um veículo de auto-promoção?

Impossível classificar.

Acredito que para a maioria dos que leram o livro a tendência é logo começar a jogar pedra e taxar a obra de lixo e sub-literatura (emprestei para dois amigos e ambos retornaram com este tipo de comentário. Mas, atenção, leram até o fim!).

De qualquer forma é inegável que olhar a intimidade do outro é sedutor. Até mesmo para sabermos que alguém, muitas vezes, realiza na prática muito do que fantasiamos ou sonhamos.

Mas Bruna não se restringe só a contar suas peripécias sexuais com coragem ímpar (o que sem dúvida é o grande chamariz para os leitores). Com a mesma coragem ela se assume como uma menina, e depois adolescente, extremamente problemática que, a despeito de ter acesso a uma vida de elite, acaba por desenvolver comportamentos cada vez mais comprometedores como mentira compulsiva, roubo e tendências suicidas.

De certa forma fica claro que o fato gerador de toda sua saga foi ela ter descoberto ter sido adotada. A partir daí ela “pira”, sente-se rejeitada, não se reconhece mais na família; olha para seus pais e irmãs e não encontra identificação. Seu comportamento muda. Perdida, com uma auto-imagem negativa, busca a aceitação dos outros pelo inverso (ingenuamente ela quer parecer “adulta” através do fumo e da bebida).

Isto sem falar na sua libido intensa, sua excitação que a leva a vários contatos íntimos (quentes mas sem penetração) com meninos da sua faixa etária nas baladas e na escola . Fica evidente que o que ela encontra com estes meninos é a emoção de ser querida que lhe faz falta. O afeto, o carinho e a aceitação são encontrados através da sensualidade (talvez ela mesma não tenha percebido isto).

Infelizmente suas atitudes cada vez mais desregradas a levam a uma situação limite junto à familia onde, no final, só lhe resta buscar seguir sua vida longe de todos. E ela vai em busca da sua independência, do seu destino através da prostituição.

Sobre sua experiência como artesã do sexo (uma “prima”, conforme ela registra) ela fala sobre suas expectativas (até ingênuas antes de conhecer a verdadeira face o trabalho); seus temores (alguns infundados e outros concretizados); seu aprendizado prático como profissional (experiências que vão do nojo até o gozo real); seu aprendizado sobre o ser humano (ela torna-se uma expert ao ouvir as histórias e conhecer a intimidade dos clientes).

Ela também fala sobre sua descoberta do prazer com mulheres, sobre disputas e intrigas no meio, sobre suas fantasias eróticas, sobre suas regras de comportamento, valores de programas, etc.

É interessante também conhecer suas reflexões sobre os motivos que levam os homens a buscar garotas de programa (a imensa maioria casados ou comprometidos) e também suas dicas para um sexo feliz.

Paralelamente ela relata sua luta para livrar-se do vício da cocaína e como, a partir daí, projetou um caminho para abandonar a dita “vida fácil” . O que ela quer para seu futuro : estabilidade financeira, parceiro, filhos, uma nova profissão e também ser esquecida por todos.

Bem, diante disto parece que estamos diante de uma obra que traz “uma densa história de vida”. Não é nada disto. O livro é rápido, rasteiro, superficial e sem foco, afinal a autora tem apenas 21 anos (não que isto seja um determinante de incapacidade, mas para quem quer registrar uma biografia -ou algo parecido- é). Isto deve ficar bem claro para os possíveis leitores.

Por isto mesmo, voltando ao início, reafirmo que a tendência é achar o livro um lixo. Mas eu diria que, despindo-se de preconceitos, da tendência de julgar o comportamento alheio e de rotular o certo e o errado, o leitor que se aventurar por este "veneno" encontrará, no mínimo, um interessante relato sobre a trajetória incompleta de uma garota interrompida.

Thursday, December 15, 2005

Encontrando Deus através do sexo

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A idéia de transcendência espiritual, da experiência mística através do sexo é antiga. De imediato podemos lembrar a antiguíssima tradição Tantrica que prega o auto-conhecimento o desenvolvimento da consciência, da sensibilidade, da aceitação, da naturalidade, da totalidade do ser através de técnicas de energia corporal.

Toni Bentley é uma mulher que alcançou esta transcêndencia através da prática do sexo anal. No livro “A entrega – Memórias Eróticas” Tony relata sua trajetória nesta viagem pelo caminho da descoberta da espiritualidade através da carne.

Vinda de uma família que a registrou como “agnóstica” na certidão de nascimento, -isto sem falar nas formas de violência emocional a que foi submetida pelos pais, exemplificada cruamente numa passagem envolvendo uma banana- Toni cresceu sentindo-se uma diferente, uma estranha num mundo onde parecia que todos tinham uma religião de onde tiravam, na visão da garota, um sentimento de comunidade, de inclusão o qual ela nunca iria alcançar. Para ela as demais pessoas encontravam na religião todas as respostas para suas necessidades de conforto e até para os dissabores. E ela tinha o que para confortá-la sendo rotulada desde bebê como “agnóstica” ?

Esta falta de sentimento místico tornou-a uma estranha no ninho, a fez sentir-se excluída. Cresceu nela um sentimento de falta, de ôco, de vazio existencial. Sentindo-se culpada e raivosa, sem saber ao certo porque, torna-se uma bailarina extremamente exigente e rigorosa consigo mesma, o que a faz buscar a superação através da dor dos exercícios físicos e na abstinência alimentar. O sofrimento provocado pelo uso das duras sapatilhas a reconforta.

Depois, já adulta, transfere esta raiva para os homens. Nos seus encontros sexuais assume o papel de dominadora. Quer ter sua vagina adorada, exige submissão dos parceiros. Consegue isto, mas seus encontros, seus orgasmos, suas experiências a frustram. A troca de parceiros, namorados e até um casamento não a completam, não a realizam.

Após a separação torna-se quase que uma predadora sexual exigindo cada vez mais dos parceiros e em contrapartida frustrando-se cada vez mais.

Até que encontra o Homem-A que com o qual experimenta o sexo anal. É uma revelação. Neste momento seu mundo gira, inverte-se. De dominadora passa a dominada. Neste ato, a experiência da necessidade de expandir a conexão íntima com seu próprio corpo para proporcionar uma entrega ao parceiro a transforma. Através da âmago da experiência carnal seu espírito cresce, sua mente liberta-se, as amarras se rompem e ela sente-se livre. Agora, sentindo-se dominada, nâo existe mais a exigência, a reclamação, a insatisfação. Não existe mais a dualidade. Agora ela pode relaxar e sentir uma profunda união física, emocional e espiritual com o outro.

A prática da sodomia -baseada intimamente na confiança, na transmutação da dor e no encontro de um novo prazer- proporciona a ela o desapego de traumas, tabus, ódios, ressentimentos e tudo o que representa obstáculo para a “entrega”. Sem pai nem mãe mais a ditar conceitos e preconceitos na sua cabeça, sem bloqueios, longe da noção pecado, sujeira, certo ou errado, ela liberta seu físico, mente e coração. O fluxo, a energia vital toma sua totalidade, a preenche, não deixando mais espaço para dúvidas ou inquietações. Toni sente-se renascida, renovada. Sua alma levita. A entrega, a doação irrestrita do seu ser emocional e físico a conecta com o Superior. Através da penetração anal ela encontra seu caminho para Deus.

Mas a experiência não termina aí. Como todo aquele que busca o caminho espiritual sabe, após encontrá-lo e trilhá-lo (com suas alegrias, dificuldades e sofrimentos), deve-se deixá-lo pois, de outra forma, corre-se o risco de apaixonar-se pelo caminho e, assim, prender-se a ele como num labirinto. Como uma legítima peregrina Toni também relata seu processo de ruptura, de afastamento daquilo que ela amava. Isto, apesar de destruí-la emocionalmente, a leva à descoberta de uma nova mulher em si. Uma mulher plena, senhora dos seus desejos e de sua vida.

Realmente um livro ousado, inteligente e religioso.


Para os juízes, preconceituoso e horrorizados de plantão registro abaixo uma passagem do livro “Espiritualidade “ do Leonardo Boff com a qual concordo integralmente :

“O universo é um grande sacramento. A matéria é sagrada. A natureza é espiritual. Por que? Porque é o templo de Deus. Deus está em tudo e tudo está em Deus. .. (...)... a fé deve ser vigorosa para poder ver Deus, realmente, em todas as coisas, mesmo nas mais contraditórias...”

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Mais informações sobre o livro nos links abaixo

http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=1744

http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT1053076-1655,00.html

http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT1052878-1661,00.html



Monday, December 12, 2005

Vingança, vingança, vingança

Engraçado, neste final de semana acabei assistindo quatro filmes que falam sobre vingança. Não tive nenhuma intenção em selecionar este tema mas fiquei surpreso ao perceber que todos eles tratavam deste sentimento, desta energia das mais variadas maneiras. Seria alguma coisa subconsciente? Algo que me ronda? Algo que preciso executar? Uma mensagem? .. Sei lá...

Seguem os comentários.

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Jogos Mortais 2

Jigwaw, o assassino canceroso e jogador, está de volta para dar mais uma lição aos humanos. A motivação de Jigsaw é : “o ser humano só dá valor a vida quando confrontado com sua própria morte iminente”. Para provocar isto ele coloca algumas pessoas frente a frente em situações limites onde ou elas unem-se para lutar por suas vidas ou acabam matando-se umas as outras para salvar, cada uma, a sua própria pele. É claro que se tratando de um filme de horror os personagens imbecis acabam optanto por brigar uns com os outros. E o que se vê é um festival de mortes horrenda com sofisticados requintes de crueldade. A exemplo do primeiro “Jogos Mortais”, o final é surpreendente e causa uma reviravolta interessante na história (que sem dúvida terá continuação). A vingança aqui é o centro e grande motivadora desta reviravolta. Mas o filme não passa de um terror barato para assustar e impressionar os sádicos de plantão.

Curiosidade : o ator que interpreta (bem) o policial é Donnie Wahlberg (foto abaixo), que iniciou carreira artística cantando no grupo teen “New Kids on the Block”. Depois Donnie passou para o cinema onde destacou-se em “Sexto Sentido”, fazendo o pequeno mas fundamental papel do assassino do personagem do Bruce Willis. Também fez o papel de ET no horrendo “O apanhador de sonhos”. Donnie é irmão de Mark Wahlberg, também cantor e ator, casualmente o protagonista do próximo filme comentado.

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Quatro Irmãos


O diretor John Singleton volta ao seu universo bem conhecido de gangues, violência e hip hop. Aqui temos a história de quatro irmãos adotivos (dois brancos e dois negros) que têm sua mãe assassinada aparentemente num assalto “comum”. Logo a polícia incrimina genericamente “alguns garotos negros” mas os irmãos, não convencidos, partem para investigar e fazer justiças com as próprias mãos. Eles acabam entrando num universo de poder, violência e corrupção que os leva a perceber que apenas a força bruta (e alguns assassinatos) não os livrarão das implicações relacionadas com a morte da gentil senhora. Daí partem para um plano de vingança supreendente e bem fechado.

Uma obra acima da média que serve para passar o tempo.

Curiosidade : Mark Wahlberg (o protagonista - foto abaixo), também começou carreira como cantor. Seu grupo Marky Mark and the Funky Bunch foi fundado com a ajuda do seu irmão Donnie (veja filme acima) e chegou a excursionar com o NKOTB (New kids on the block). Mark alcançou sucesso tanto como cantor quanto como modelo principalmente pela campanha de cuecas que fez para Calvin Klein.

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Pirataria : fui procurar este filme para comprar nas banca de camelô aqui em Porto Alegre. Chegava e dizia que queria o DVD “Quatro irmãos”. Ninguém tinha, ninguém conhecia. Exceto um : o rapaz olhou bem para mim e pediu para aguardar. Foi até um companheiro, conversou um pouco e voltou. Cheio de razão, sério, me disse : “Olha moço, este filme que o senhor quer não existe. O filme que o senhor quer é “Os dois filhos de Francisco” e não “Quatro irmãos””

...pano rápído

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Marcas da Violência

O bizarro diretor David Cronemberg volta em uma obra mais convencional, bem diferente das loucuras tipo “Videodrome” e “Scanners”.

Baseado numa graphic novell, o filme conta a história de uma pacata família numa pequena cidade do interior dos EUA que tem sua vida transformada quando o pai, Tom Stall (interpretado por Viggo Mortensen – o inesquecível Aragorn do “Senhor dos Anéis”), vira uma celebridade ao matar dois ladrões e assassinos que tentam assaltar sua lanchonete.

Com a divulgação da sua foto na mída nacional logo surgem na cidade alguns gangsters que afirmam que o herói na verdade é um frio assassino que tem contas a pagar com seu passado. Um destes gangsters apresenta um olho destruído o qual, afirma, é resultado da violência inerente ao pacato cidadão. É claro que Tom afirma não ser a pessoa em questão, porém pouco a pouco a verdade vem à tona desequilibrando totalmente aquela típica família americana.

Daí para diante o filme vira uma fábula sobre vingança, mentiras, resgate do passado, eliminação dos fantasmas, mudanças, traição, redenção e possibilidade de uma nova vida.

Um filme adulto com duas boas cenas eróticas : uma no início quando a esposa se traveste de lider de torcida e rola uma sequência de sexo oral bem realista e outra, já quando as mentiras vieram à tona, onde o casal transa violentamente numa escada.

Vale a pena.

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Oldboy

Fantástico. Inesquecível. Neste filme a palavra “vingança” atinge sua plenitude, sua glória, seu sucesso. Oldboy conta a história de Daesu (vivido pelo excelente ator Choi Min-sik) que, sem motivo aparente, fica preso durante 15 anos numa cela que parece mais um hotel de quinta categoria. Subitamente ele é solto e, completamente perdido, raivoso, com ódio do mundo, parte para vingar-se daqueles que prenderam. Nas suas andanças acaba se envolvendo com Mido uma jovem garçonete que o acolhe e torna-se sua amante.

Também Daesu logo descobre quem foi o mandante do seu infortúnio : trata-se de Lee Woo-jin, um magnata que não deixa claro imediatamente qual foi a causa da sua prisão. Isto faz com que Daesu o poupe de início.

Propositalmente o filme vai seguindo meio confuso e sem coerência, alternando passagens de lutas bem coreografadas, cenas de tortura explícita (sem falar na famosa cena onde um polvo vivo é devorado por Choi Min-sik) com outras bem mornas, principalmente aquelas que envolvem o casal de namorados.

Deste modo a saga segue com o infeliz ex-prisioneiro perdido (e o público também) numa busca de vingança aparentemente desfocada e sem objetivos.

Porém, inesperadamente, a história toma um caminho totalmente novo que vai levar o protagonista ao encontro do maior pesadelo da sua vida. O que acontece é um soco da cara do público, é de cair o queixo. A cena onde Daesu finalmente compreende o porque de ter passado pelo inferno é absolutamente fantástica onde o personagem mescla incredulidade, horror, súplica, humilhação e ódio. Fiquei chocado.

Oldboy mostra um círculo onde uma vingança alimenta a outra, onde os personagens definem suas vidas por este sentimento, por esta energia que os motiva e destrói.

Depois de tudo, o belíssimo final levanta mais questões do que soluções. Assim, fica a cargo do público julgar se o destino proposto ao personagem representa uma benção e sua salvação ou o definitivo empurrão para o abismo.

Thursday, December 08, 2005

Depois da Vitória vem o Destino

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Há alguns dias eu estava escutando uma música do ABBA (sim, aquele grupo pop-cult da década de 70 e 80) e ouvi a seguinte frase “beyond the victory lies the destiny” (trad : além –depois- da vitória existe o destino). Fiquei pasmo, achei genial. Fui procurar a letra para confirmar. Que decepção !..tinha entendido errado. A letra diz : “beside the victory that’s her destiny” ( trad: junto à vitória está seu destino – ou algo que o valha). Mas o meu entender errado não tirou da minha cabeça o sentido que me fascinou.

Me peguei a pensar sobre isto.

Muitas vezes buscamos a vitória, buscamos um objetivo e para alcançá-lo nos empenhamos, investimos energia, sangue, suor e lágrimas. Traçamos um caminho e perseveramos nele. Alcançamos o sucesso, atingimos a meta. Comemoramos, sentimos felicidade. Vibramos com a realização, a concretização de um sonho. Saboreamos o final da jornada. Recebemos a recompensa.

Sim, mas e daí? O que vem depois do “felizes para sempre”? O que vem depois do beijo final? O que vem depois do “the end” triunfante? O que vem depois da vitória?

Conforme “entendi” o Abba, vem o “destino”. E este determinante, este destino muitas vezes pode nos mostrar que a vitória anterior nada mais era do que o início de um caminho que nos levou a grandes sofrimentos.

Isto é bem típico observar em relacionamentos amorosos. Nestes, é investida toda uma energia para a conquista, para a sedução, para o estabelecimento de laços e a prática da convivência. Pronto! Agora eu tenho alguém! Tenho um relacionamento! Tenho um amor! Mas e o dia seguinte? E o outro? E depois? Como manter a felicidade da vitória?.. do êxito?

O tempo é inexorável com nossas conquistas. Não existe vitória imutável, não existe a perpetuação do gozo. Isto gera angústia, gera mêdo pois gostaríamos que as felicidades fossem perenes, que pudéssemos nos despreocupar, que pudéssemos relaxar. É claro que com uma observação atenta, com um cuidado cotidiano, podemos agir para que muitas das coisas que nos agradam perdurem.

Porém muitas vezes nos vemos incapazes de atuar sobre todas as variáveis e situações que fazem a roda da vida girar e que acabam deslocando os elementos antes bem conhecidos. Assim, novos cenários surgem, novas paisagens se revelam. Novos desafios e dramas nos são impostos. Surgem finais e outros recomeços. Para enfrentá-los necessitamos de novas ferramentas, de novas energias, de novos objetivos. Vamos em frente, traçamos caminhos. Lutamos. Perseveramos na jornada, na busca de renovados êxitos.

Encontramos novamente o sucesso. Alcançamos a vitória. Novo sabor, nova alegria.

O tempo volta ... e conhecemos novos destinos...

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obs : a música em questão é “The winner takes it all”

Monday, December 05, 2005

Vanessa da Mata, Exorcismo, Bas-Fond e Eletrônica

REGISTROS DO FINAL DE SEMANA

SHOW - VANESSA DA MATA : Dentro do Programa de Circuito Cultural do Banco do Brasil (Identidade Brasileira), foi apresentado neste final de semana o show de Vanessa da Mata, no Salão de Atos da UFRGS. Com ingresso a R$ 5,00 o teatro estava lotado. Pontualmente às 21 horas as cortinas foram abertas e iniciou o show de abertura com o compositor local Mario Falcão. Um show absolutamente morno que quase me fez dormir. Show de abertura encerrado, novamente fecham-se as cortinas. Por volta das 22 horas é anunciada a atração principal. As cortinas se abrem e o teatro é invadido por um sons belíssimos onde se destacam os lamentos do acordeão. Fora de cena Vanessa começa a cantar “Vem” do seu último CD (Esta boneca tem manual). Logo ela entra, exuberante, com um vestido longo, leve e rústico. Os cabelos crespos domados com laços e um belo e discreto adereço. O cenário simples, decorado apenas com alguns panos pintados tem o acompanhamento ideal de uma iluminação corretíssima e alguns efeitos de fumaça. O efeito cênico é perfeito. Assim, no início, nota-se que sua voz ainda está fria além de um certo nervosismo ou insegurança em cena. Mas logo ela ataca com “Esta boneca tem manual” seguida o grande hit “Não me deixe só”. É o bastante para a festa, para a entrega começar. De ambas as partes. A platéia responde com gritos, assovios e palmas entusiasmadas. No palco, Vanessa responde com um crescimento vigoroso. Sua voz, seu corpo, seu gestual, sua emoção passam a dominar o teatro. Ela agarra o publico de modo certeiro e não irá largar mais até o final. O espetáculo segue com “Ainda bem”, sem dúvida uma das mais belas canções românticas da MPB, que tem a capacidade de provocar lágrimas em todos os apaixonados presentes. Logo depois vêm “Case-se comigo” ( também emocionante), “Música” e outras. Algumas canções do show me marcaram de modo especial. Antes de cantar “A Força que nunca seca”, Vanessa relembra que fez a letra –musicada pelo Chico César- para a avó. A música foi gravada pela Maria Bethania quando Vanessa tinha 21 anos e ela deixa claro que a partir daí as coisas começaram a acontecer na sua vida. Esta canção traz, na minha opinião, uma das imagens mais fortes da MPB quando descreve a força física, o sacrifício que as mulheres são obrigadas a fazer para equilibrarem latas dágua na cabeça. Diz a letra em determinado trecho : “...a lata não mostra / o corpo que entorta / pra lata ficar reta...” (lágrimas novante). Adiante ela canta “História de uma gata” da obra “Os Saltimbancos” do Chico Buarque. É impressionante! Inacreditável! Sua voz desdobra-se, reinventa-se. Sua “interpretação” da gata que troca o apartamento pela vida na rua é espetacular. Impossível aplaudir sentado. Ao final da música todo o teatro levanta e ela é ovacionada. O show segue perfeito até o final – com destaques para “Eu sou neguinha” do Caetano Veloso e “Joãozinho” (hilária). No bis, a grande surpresa da noite : sentada no chão, diretamente em frente ao público, totalmente despojada e acompanhada apenas por uma discreta guitarra, Vanessa simplesmente arrasa com uma interpretação dilacerante de “Tempos perdidos” da Legião Urbana. Os presentes babam de emoção. Após, a grande noite encerra-se com o repeteco de “Não me deixe só”. Todo o teatro em pé, dança e canta junto com Vanessa. O show acaba, fecham-se as cortinas.Clima de felicidade absoluta. A noite estava ganha.

FILME - CIDADE BAIXA : Um triângulo amoroso formado por dois semi-marginais e uma prostituta. Passado no bas-fond de Salvador, este filme apresenta personagens que gradativamente submergem num labirinto de perturbações com as quais não conseguem lidar e que acabam por enredá-los em uma teia de sentimentos desencontrados. Atração, repulsão, amor, ódio, raiva, ciúme, vingança, tristeza, solidão e desamparo, tudo regado a muito sexo, formam o universo de emoções onde as figuras debatem-se perdidas. Wagner Moura, Lázaro Ramos e Alice Braga estão ótimos, mas o destaque sem dúvida fica com Wagner. Confesso que tinha um grande preconceito por achá-lo um galãzinho global, mas ele arrebenta na interpretação. Um filme intenso, corajoso, com um final aberto (assim como a vida). Ao sair do cinema leva-se a sensação de ter assistido um dos melhores filmes nacionais recentes.

FILME - O EXORCISMO DE EMILY ROSE : Ridículo, patético, imbecil. Uma piada com pretensa aura de terror. Dito baseado em uma história real, o filme apresenta o julgamento de um padre acusado de negligência por ter tratado de uma garota doente (que teria um diagnóstico de epilepsia e psicose) com água-benta e Bíblia, deixando de lado o tratamento médico convencional. A garota, sem os remédios corretos, teria entrando num processo de anemia profunda além de apresentar surtos de auto-mutilação e coisas do gênero. É claro que o filme se propõe a levantar questões importantes, que no caso seria : a garota realmente estava possuída pelo Invertido –e neste caso surge toda uma discussão “profunda” a respeito de fé e religiosidade- ou era uma louca varrida que deveria ser internada? Equilibrando-se sobre este mote o filme apresenta cenas “fortes”
da tal garota se contorcendo e gritando igual a um porco no matadouro. Haja ouvido !! No final, a resolução, a “mensagem” é ridícula. Ou melhor, nem é tão ridícula; o problema é como, de uma hora para outra, o filme sai da linha terror e vira uma coisa religiosa, na linha “aparição da virgem”. Realmente não dá para aguentar. Fujam.

CD – CANSEI DE SER SEXY : Comprei ontem o cd desta banda paulista que está causando um certo buchicho no meio musical e que tem uma trajetória curiosa. Vinda da cena independente, a CSS (sigla da banda) começou a ser conhecida em outros pagos através da divulgação de suas músicas na internet. Daí, só cresceu o interesse pelo seu trabalho e que agora foi coroado com o lançamento de um CD pela gravadora Trama. Um pop-rock despretensioso, com largas cargas de eletrônica, letras “modernas” e alguma distorção. Me lembrou em algums momentos a banda Le Tigre (só que eletrônica) e a TATU. O curioso é que o CD é sem dúvida muito bem produzido, só que, para mim, algumas músicas soavam melhor nos arranjos antigos, como por exemplo “Meeting Paris Hilton”. De qualquer forma o álbum é muito bom e vale a pena.

Tuesday, November 22, 2005

Como estás ?

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“Como estás? “...


uma pergunta destas significa exatamente o que? Se ouvirmos esta indagação de alguém isto significa que o outro realmente está interessado em nós? Mostra que o outro está disposto a nos escutar, a nos ouvir, está aberto aos nossos comentários? Pelo que tenho observado, isto pode ser muito relativo.


Explico : conheço algumas pessoas que usam esta pequena pergunta no início de um encontro, no início de uma conversa apenas para, digamos, “quebrar o gelo”, apenas como um preâmbulo para criar um espaço que elas querem utilizar para compartilhar conosco um discurso que já têm programado.

Várias vezes passei por esta situação : o outro, chega e pergunta sobre sobre nossa situação –aparentemente interessado-, porém, à medida em que falamos sobre nossos assuntos, percebemos nele uma certa inquietação, um certo nervosismo que demonstra claramente sua impaciência para que acabemos logo com nossa lenga lenga e abramos a oportunidade para ele iniciar a sua. Ás vezes esta demonstração de urgência é tão explícita que o outro corta nossa fala com comentários desviantes demonstrando claramente que não está sintonizado na “conversa”.

Como agir numa situação destas? Conhecendo já como a ação ocorre em algumas pessoas, procuro responder com um rápido “tudo bem” e devolver a pergunta : “E tu como estás? “... Assim se abre o portal da alegria. A “deixa” é agarrada na hora e passamos a ouvir todo o discurso entalado na garganta alheia. Uso esta estratégia em vários momentos e se quero falar alguma coisa minha deixo o outro esgotar totalmente sua fala até ficar sem assunto; daí calmamente procuro iniciar o meu de forma mais tranquila.

Mas esta estratégia nem sempre funciona pois existem pessoas que realmente não conseguem ouvir e logo se lembram de outro assunto urgente que nos interessa muito.

Daí só o silêncio e a concordância podem ser nossas respostas.

Monday, November 14, 2005

Curtas MIX BRASIL

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O portal http://www.portacurtas.com.br está apresentando alguns curta-metragens do Festival da Diversidade Mix Brasil 2005 . São filmes que apresentam, nas mais diversas abordagens, questões da sexualidade. Comento abaixo alguns dos que vi (clique nos links para acesso aos curtas)

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Medo de quê?

Diretor : Reginaldo Bianco

Uma obra-prima. Animação pura, direta, simples que conta a história de um garoto que se descobre gay. O curta mostra os diversos conflitos pelos quais um gay passa até assumir sua identidade : problemas com a família, sexualidade, preconceitos, perda de amigos, descoberta da violência, resistência, dores, etc. Realmente vale a pena. Este filme deveria passar em horário nobre e ser adotado em todas as escolas do país. A mensagem final é belíssima.

Textículos de Mary e Outras Histórias
Diretora :Flávia da Rosa Borges

Justiça feita à única banda de punk-rock-homocore da história da MPB. Infelizmente o grupo já acabou mas fica este registro da sua trajetória, da sua arte verdadeiramente vibrante, transgressiva e chocante. A Texticulos nasceu, cresceu e morreu maldita. Dificil de gostar, esta banda agradou mais os rockeiros radicais do que a própria comunidade gay –diziam que vários gays ficaram chocados com as performances e letras explícita do grupo-. Eu, como fã, fiquei emocionado ao ver este filme. Obrigatório.

Mais sobre o Texticulos de Mary e sobre a Musica Gay Brasileira pode ser encontrado no link abaixo

Se você é o cara que flertava comigo no ponto de ônibus, veja esse filme

Diretor : Thiago Alcântara

Dois rapazes flertam um com outro numa parada de ônibus todos os dias mas não se falam. Um dia um deles não aparece mais e o outro, Bernardo, arrepende-se de não ter provocado um encontro. No desespero Bernardo parte para uma solução radical : escrever uma mensagem em notas de dinheiro juntamente com seu número de telefone na esperança de encontrar o tal rapaz da parada. Porém o que acontece é que, com a circulação das notas, várias pessoas acabam ligando para ele e deixando na sua secretária eletrônica os mais variados comentários e conselhos sobre sua busca. O final é genial.


Salete

Diretor : Camilo Cassoli

Na verdade uma entrevista com a Drag Salete Campari, uma paraibana que sonha em ganhar o Oscar da Academia de Hollywood. O curta mostra ela se preparando para um show enquanto recorda sua infância, seu fascínio em descobrir o mundo dos transformistas através da televisão, sua chegada a São Paulo, sua trajetória artística, relação com a família, etc. O curta tem um quê de inocência misturado com falta de noção que acaba fascinando. Acaba sendo curioso acreditar nos sonhos da Salete de conquistar o mundo. No final ela até improvisa um discurso de agradecimento para o momento em que receber o Oscar.

Outros :

Homofobia : bom. Meio pretensioso mas interessante.

Masturbação : muito bom. Rápido, rasteiro e eficaz.

Travecastein : engraçadinho. Um pouco acima da média

Sexo Explícito : bom. Técnica de stop-motion só com roupas.

Jogos : sem noção. Vai do curioso ao ridículo e acaba em nada (mas as cenas de lesbianismo são muito boas)

O Amor no Tempo da Cólera : sem noção dois. Um cara domina o outro e acabam transando. Nada vezes nada com resultado pífio.

15:35 for fun : absolutamente ridículo. Sexo explícito verdadeiro desprovido de sentido. Inacreditável que alguém faça um filme destes.

Monday, November 07, 2005

No meu tempo...

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“Um dos problemas de uma longa vida é perder a perspectiva de seus contemporâneos e começar a ver tudo em termos de história. Todos passam por isto, embora nem sempre a clareza deste dilema lhes ocorra. Ter vivido mais do que nossos contemporâneos nos coloca tão fora da turma como quando éramos a aluna nova no novo colégio, no terrível e crucial pátio de recreio. Não contamos mais o tempo no ritmo que queremos, mas no do que lembramos, prefaciando cada lembrança com o fatal “no meu tempo...”, como se o tempo fosse de alguém e como se fosse mais seu então do que agora”.

Com este parágrafo suscinto e verdadeiro a excelente jornalista Ana Maria Bahiana inicia a resenha do novo disco de Paul McCartney (Chaos and creation in the backyard) publicada no último número da revista Bizz.

Conforme ela afirma, realmente esta questão (perder o link com o contemporâneo) é um processo pelo qual todos passamos com maior ou menor consciência. A medida em que avançamos na idade surgem outros interesses, outras necessidades, outras responsabilidades que, muitas vezes, vão nos afastando ou transformando muitas das motivações das nossa vida.

Isto está errado? É um problema?

Penso que a questão, a discussão se faz em cima do quanto isto nos incomoda.

O SAUDOSISTA

Para muitos de nós pode ser tranquilo, natural, assumir um comportamento saudosista com o qual nos identificamos. Deste modo podemos passar a adotar comentários do tipo “no meu tempo...” ou “na minha época..”. Particularmente não acho errado isto, nem um pouco. O que apenas me incomoda é quando este tipo de fala é acrescida de “.. é que era bom...”, ou seja, completando : “... no meu tempo é que era bom..”. Não concordo com este tipo de frase de maneira alguma; me soa pretensiosa, superior. Acho um desrespeito com as novas gerações.

O INCOMODADO

Por outro lado, para muitos outros esta perda de link com o contemporâneo pode incomodar. Pode trazer a sensação, conforme descrita pela Ana, de estar num colégio novo como aluna nova que não sabe como se encaixar numa turma que vive num universo com regras, jogos, falas e comportamentos diferentes. Esta é a sensação de parecer anacrônico, fora de moda, ultrapassado....antigo ou velho enfim. Acredito que este grupo de pessoas sofre mais pois sente realmente o crescer da distância, da separação.

O RENOVADO

Poderíamos dizer que existe uma terceiro universo de pessoas mantem o interesse no que está rolando, nas novidades. Procuram se informar, se atualizar. Tentam acompanhar o ritmo e a dinâmica dos acontecimentos, das idéias. Tudo isto independentemente de querer provar alguma coisa, de querer parecer “moderno” ou “atual”. A motivação aqui é manter a mente aberta à novidade, ao aprendizado, ao conhecimento. Mas este também é um processo difícil pois requer uma constante renovação, um constante repensar, um constante rever conceitos. Requer a prática de um exercício árduo de difícil realização; muitas vezes de luta com a própria acomodação da mente....E não é todo mundo que está disposto a praticá-lo.

Thursday, November 03, 2005

Falso cais ( para John Fowles)

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Oculta tesão, oculto desejo
Mar de ressaca no olhar
A busca do outro
Encontro ilusório

Engano de gozo
Vazio da pele
Mentiras transversas
Nova partida

Falsa viagem
Falso cais
Falsa ilha
Falsa chegada

Caminhos inúteis
Revelação de monstros
Teias de perdição
Sem redenção

Wednesday, November 02, 2005

Autor ou Obra ?

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O que vale mais, o autor ou sua obra? Pode-se dizer que a obra exprime o autor ou um está desassociado do outro? Onde começa um e termina outro? O quanto podemos ou devemos separar um do outro? Estive fazendo estas indagações ao ler o extraordinário livro "Viagem ao fim da noite" de Louis-Ferdinand Celine, um dos maiores escritores do século passado e também, de certo modo, um monstro genocida.

Celine alcançou os píncaros da gloria em 1932 ao publicar "Viagem ao fim da noite" , uma obra-prima que quebrou, inverteu a lingua francesa. Foi um um escândalo. Diante da novidade os críticos não conseguiram enquadrar o livro em qualquer estilo até então conhecido. Celine ocasionou uma revolução literária e obteve fama e reconhecimento instantâneos.

Porém, com a ascenção do nazismo na Europa e a consequente invasão da França, Celine tornou-se um vil e ativo colaboracionista. Durante a ocupação francesa, escreveu e publicou três furiosos manifestos anti-semitas que pregavam o extermínio dos judeus de forma irrestrita. Quem os leu, diz que os conteúdos eram mais terríveis que os discursos do próprio Hitler
(estão até hoje proibidos de circular). Com o final da guerra Celine se tornou um pária e acabou seus dias maldizendo a humanidade.

Mas voltando a questão inicial, podemos ou devemos separar o autor da obra? O caso de Celine é exemplar : pode-se ler sua magnifica obra sem pensar que existe um monstro por trás?

Não tenho esta resposta mas o exercício de pensá-la é interessante.

Monday, October 24, 2005

Falando Merda

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O que é “falar merda”? Qual a diferença entre mentir e “falar merda”? O filósofo e professor da Universidade de Princeton, Harry Frankfurt se propôs a estudar o assunto.

Para ele a mentira está associada diretamente à ocultação de fatos, de acontecimentos. O mentiroso tem noção de que está deliberadamente negando a verdade acontecida e conhecida por ele. Já o falador de merda não está nem aí para a verdade; o que realmente lhe interessa é projetar um imagem, é tentar convencer o outro com argumentos soltos, argumentos sem ligação com suas próprias convicções.

Um exemplo prático de falação de merda pelo qual passei neste mês : eu estava em um grupo de convivência onde foi colocado o tema “a paz” para discussão. O primeiro companheiro a se manifestar discorreu lindamente e utopicamente sobre a beleza de se viver numa sociedade harmoniosa, de se viver num mundo de fraternidade e amor. Disse que, como forma de contribuir para construção deste Éden terrestre, a ação dele só se pautava pela tolerância, pela não violência, pela não reação, pelo perdão. Que preferia ser agredido a agredir, morrer a matar. Foi de encher os olhos d´agua. Fui ficando cada vez mai puto enquanto o ouvia.

Logo que ele acabou sua “mensagem”, pedi a palavra e, assumidamente, reconheci que, apesar de ter achado o discurso muito bonito, não concordava. Disse que para mim, quando provocado ou incitado, a natureza do homem o impele à reação, ao revide. É claro que o desenvolvimento da sabedoria, da razão e outros objetos nobres da personalidade podem amenizar estes instintos primários mas nunca eliminá-los totalmente.

Após me ouvir (e mais outras manifestações semelhantes) o companheiro-Gandhi voltou a pedir a palavra e, num surto de lucidez, disse que na juventude participara de violentas brigas de gangue e que até hoje tem ganas de matar um determinado rival. Que quando vê tal figura na rua tem ímpetos homicidas (veja só...). Além disto, acrescentou que tem uma filha de dois anos e que para ele é um exercício para se acalmar toda a vez que a criança demanda atenção ou faz birra. A partir deste momento comecei a gostar dele pois senti que agora a verdade fluía.

Este é um exemplo de falação de merda, ou seja aquelas falas vagas, formatadas em generalidades e desassociadas de certezas, desassociadas de experiências reais próprias. São expressões ôcas, vazias, incondizentes com as ações de quem as profere. São discursos onde a crença e a verdade são mascaradas, maquiadas através de belos filtros construídos para enganar os incautos.

Eu fora...

Segue abaixo duas resenhas sobre o livro “Sobre Falar Merda” do Harry Frankfurt e que está sendo lançado agora no Brasil

"Sobre Falar Merda" chega ao Brasil em tempos de CPIs

Camila Marques (da Folha Online)

Em tempos de CPIs e tantos discursos políticos exaltados transmitidos ao vivo do Congresso Nacional (deputados e senadores, algumas vezes, mais querem aparecer do que questionar depoentes e testemunhas), chega ao Brasil o livro "Sobre Falar Merda" (ed. Intrínseca, R$ 19,90 - 68 págs), escrito pelo mais celebrado filósofo moral da Universidade de Princeton (EUA), Harry G. Frakfurt.

O título original é "On Bullshit", expressão em inglês usada para desqualificar algum tipo de fala ou declaração. Nos Estados Unidos, a obra já está na décima edição --se tornou o primeiro livro editado por uma universidade a liderar o ranking dos mais vendidos do jornal "The New York Times". Se depender do título, deve fazer o mesmo sucesso por aqui.

O pequeno tratado, já que são apenas 68 páginas, tenta definir o que é, de fato, falar merda. "Um dos traços mais notáveis de nossa cultura é que se fala tanta merda. Todos sabem disso. Cada um de nós contribui com sua parte. Mas tendemos a não perceber esta situação", começa Frankfurt.

Aos poucos, de modo até certo ponto acadêmico --afinal, Harry Frankfurt é filósofo e professor--, ele cita outros estudiosos do tema e discute definições de dicionários e livros para termos como falação, impostura, conversa fiada, lorota, charlatanice e, claro, merda. Importante ressaltar que, mesmo acadêmico, o texto é de fácil compreensão.

Uma das questões centrais do livrete é diferenciar os atos "falar merda" e "mentir". Com exemplos concretos e interessantes, Frankfurt detalha que o falador de merda quer apenas passar uma impressão diferente sobre si mesmo, não sendo esta necessariamente falsa ou mentirosa. Ao fazer isso, diz o filósofo, a pessoa não está nem aí para verdade e os fatos.

O mentiroso, porém, esconde fatos que conhece. Inventa deliberadamente sua história, mas respeita a verdade, mesmo fugindo dela. Justamente por conta do desrespeito pela verdade é que o falador de merda, para Frankfurt, é mais perigoso que aquele que mente.

Um dos exemplos de Frankfurt remete a um orador do Quatro de Julho, data da independência americana --um correspondente brasileiro seria facilmente encontrado. Em um inflamado discurso, o homem dirá: "Somos um grande e abençoado país, cujos fundadores, sob orientação divina. criaram um novo começo para a humanidade!"

Segundo Frankfurt, o orador não está mentindo, porque não tem a intenção de provocar na platéia crenças que considere falsas. Mas também não se importa com o que a platéia pensa sobre os fundadores do país e o papel da divindade na história dos EUA. "A opinião dos outros sobre ele é o que o preocupa. Ele quer ser considerado um patriota", explica Frankfurt.

O filósofo continua a divagação dizendo que, atualmente, parece "inevitável" não falar merda. Por quê? A teoria dele: "É inevitável falar merda toda vez que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está dizendo". E nos dias de hoje, em que todo mundo precisa ter opinião sobre tudo (é quase um dever cívico, polemiza Frankfurt), se fala a primeira coisa que se vem à cabeça, seja ela coerente ou não com a verdade e os fatos.

E não é exatamente essa a postura de tantos políticos, publicitários, comerciais, artigos etc.? "Dane-se o conteúdo, o que vale é falar bonito" ou "dane-se se é verdade, o que importa é vender bem". "Sobre Falar Merda" diz que sim.

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O Globo

Um filósofo americano explica por que esta crise não cheira bem

"Sobre falar merda", de Harry G. Frankfurt. Tradução de Ricardo Gomes Quintana. Editora Intrínseca, 68 páginas. R$ 19,90

RIO - Numa carta datada de 4 de abril de 1654, o padre António Vieira faz esta advertência a D. João IV, Rei de Portugal: "Me manda V. M. diga meu parecer sobre a conveniência de haver neste estado ou dois capitães-mores ou um só governador. Eu, Senhor, razões políticas nunca as soube, e hoje as sei muito menos; mas por obedecer direi toscamente o que me parece. Digo que menos mal será um ladrão que dois; e que mais dificultoso serão de achar dois homens de bem que um".

O trecho, de uma previdência e concisão admiráveis, torna ainda mais deprimentes, se é que isso é possível, pelo menos dois aspectos da atual crise política: os sinais de que a corrupção continua sendo uma prática rotineira nos altos postos do Estado brasileiro, por um lado, e a retórica pobre e vazia daqueles que se dizem dedicados a combatê-la, por outro.

Quem acompanha as investigações sabe que o palavrório dos interrogadores pode ser mais enervante do que as negativas dos interrogados. No entanto, enquanto depoentes recorrem à Justiça para não serem obrigados a falar a verdade, ninguém precisa ir ao STF para garantir o direito de fazer discursos entediantes em vez de perguntas. Todos concordamos, afinal, que falar besteira cansa, mas não é nem de longe uma falta tão grave quanto mentir.

Pois Harry G. Frankfurt discorda. Ele é o autor de "Sobre falar merda", ensaio que procura definir o significado preciso de um fenômeno tão disseminado (é uma "ubiqüidade impublicável", nos dizeres do New York Times) quanto pouco estudado: "bullshit", no original em inglês, ou o falar merda na tradução. Filósofo e professor da Universidade de Princeton, Frankfurt escreveu o ensaio em 1985, para apresentá-lo num grupo de estudos. O texto foi publicado em 1988 numa reunião de ensaios e em algum momento começou a circular na internet. Só no início do ano, por sugestão de seu editor, Frankfurt concordou em lançá-lo num volume único, embora o achasse muito curto para isso.

O livrinho foi um sucesso. Chegou ao primeiro lugar na lista de mais vendidos do NYT e há planos para traduzi-lo em mais de dez idiomas - o que demonstra a amplitude do fenômeno estudado: "Um dos traços mais evidentes de nossa cultura é que se fale tanta merda. Todos sabem disso. Cada um de nós contribui com sua parte", como constata o autor. Mas os méritos de "Sobre falar merda" não se resumem à pertinência do tema. Sua maior qualidade é demonstrar que é possível escrever com graça e clareza sem abrir mão do rigor intelectual (atributos raros tanto em trabalhos acadêmicos quanto, num outro extremo, no trabalho de autores mais interessados em vender a filosofia do que praticá-la).

Frankfurt procura definir o falar merda através de uma comparação com outras formas de desonestidade: a mentira, o blefe, a dissimulação. Sua conclusão é que ele não apenas é um fenômeno distinto de todos esses, como também é, de todos, o mais danoso à verdade, porque sua essência é uma "falta de preocupação com a verdade", ou "indiferença em relação ao modo como as coisas realmente são" (uma distinção importante para o leitor brasileiro é a que Frankfurt faz entre falar merda e o que ele chama - o tradutor, na verdade - de falação: uma conversa descompromissada, em que os envolvidos sabem que ninguém está necessariamente convicto do que diz; definição próxima ao significado comumente atribuído à expressão "falar merda" no Brasil).

Friday, October 14, 2005

Antes de ser uma mulher, sou um menino...

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Um dia eu vou crescer, serei uma bela mulher
Um dia eu vou crescer, serei uma bela garota...
....
Mas por enquanto sou uma criança, por enquanto sou um menino
Por enquanto sou uma criança, por enquanto sou um menino...
...
Um dia eu vou crescer, sinto o poder em mim
Um dia eu vou crescer, tenho certeza
Um dia eu vou crescer, sei de um útero dentro de mim
Um dia eu vou crescer, sinto isto pleno e puro
...
Mas por enquanto sou uma criança, por enquanto sou um menino
Por enquanto sou uma criança, por enquanto sou um menino
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Este é um trecho da música “Por enquanto sou um menino (For today I am a boy)" , cantada e tocada com toda a carga de emoção que caracteriza a banda Antony and the Jonhsons.

A primeira vista é uma letra chocante que tanto pode falar de um transexual, um travesti, um esquizofrênico ou qualquer coisa associada a “patologias de identidade”.

Sim, pode-se ter esta leitura óbvia e imediata. Mas para mim esta é uma belíssima letra que fala da serenidade da certeza. Fala da quietude certa, da convicção do espírito que surge depois que findamos seja qual for a luta que travamos com os fantasmas das nossa mente.

E o final deste embate nos leva a um local onde nossa alma pode repousar já distante da dúvida, da hesitação. Onde o conjunto se fecha e o universo se encontra; onde a natureza aflora, os caminhos são claros, o sonho encontra seu destino.

Mas esta não é uma conquista sem dor, sem sofrimento, sem solidão. É o resultado de uma luta interior; é o resultado da nossa coragem de olharmos para nós mesmos, de buscarmos nossa essência, nossa força ativa.

E, como diz a letra, muitas vezes este encontro com nossa verdade faz com que nos recolhamos, faz com que escondamos esta luz de liberdade em um “útero” até que o nascimento se faça.

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FOR TODAY I AM A BOY (From the album “I Am a Bird Now”)

One day I’ll grow up, I’ll be a beautiful woman
One day I’ll grow up, I’ll be a beautiful girl
One day I’ll grow up, I’ll be a beautiful woman
One day I’ll grow up, I’ll be a beautiful girl

But for today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy

One day I’ll grow up, I’ll feel the power in me
One day I’ll grow up, of this I’m sure
One day I’ll grow up, I know a womb within me
One day I’ll grow up, feel it full and pure

But for today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy

For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy
For today I am a child, for today I am a boy

Thursday, October 06, 2005

Desejo, necessidade, vontade...

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Semana passada eu transportei um cadáver no meu carro. Não, isto não é uma figura de linguagem, metáfora ou qualquer coisa assim. È verdade. Uma grande amiga tinha que fazer o translado dos restos mortais de um familiar de um cemitério para outro e eu me ofereci para realizar o transporte. Foi uma experiência digamos “intensa”, tanto para mim quanto para ela. Sem entrar no mérito da ação, o que posso dizer é que tanto eu quanto ela saímos diferentes da situação, nossas emoções ficaram diferentes e isto é o que importa no meu ponto de vista.

Isto me fez lembrar de várias outras situações onde me senti motivado a provar “o novo”, a sair da casca, a arriscar. Por exemplo, em outra ocasião fui conhecer um clube de swing (troca de casais), com uma outra amiga enlouquecida. Morríamos de mêdo do que poderia acontecer, mas, no final, achamos legal, curioso e acabamos nos divertindo (vejam bem, no sentido familiar do termo...).

Também já passei um carnaval inteiro num congresso de ufologia vendo filmes e slides de ets, ouvindo diversas teorias da conspiração e batendo fotos com abduzidos.

De outra feita eu e meu companheiro viajamos até outra cidade para conhecer um grupo de cristãos gays (sim, isto existe) que realizam um excelente trabalho social (educacional, prevenção a aids, inclusão, apoio emocional, etc). Fomos bem recebidos e acabamos criando bons laços de amizade.

Também já transitei por serviços voluntários, religiões, grupos políticos e sociais, terapias alternativas ...e por algumas áreas bem menos ortodoxas...

O que eu quero dizer com tudo isto?

No meu entender não adianta ficarmos esperando que a novidade, o inusitado, algo que instigue bata a nossa porta. Não adianta querermos viver o novo, enriquecer nossa biografia, querermos passar por experiencias diferentes, querermos que as coisas aconteçam sem que antes façamos um movimento em direção ao risco, ao inusitado para nossa mente.

Todos temos desejos, curiosidades, fantasias (em vários níveis : emocional, cultural, social, religioso, sexual, etc). Isto é natural. Porém, o que fazemos em relação a isto? O que nos impede de arriscarmos? Palavras como “estranho”, “excêntrico” e “diferente”, relacionadas com alguma vontade nossa, tornam-se mansas quando nos permitimos.

Nossa mente nos aprisiona : pudores, preconceitos, preocupação com opiniões alheias, falta de coragem ou companhia muitas vezes nos impedem de buscar algo que nos interessa, algo que provoque nosso conhecer, que nos introduza no desconhecido. Esta prisão nos engessa, nos tranca e faz com que entremos cada vez mais num processo de lamentação a respeito da rotina, da falta do novo. Ou então passamos a cultivar sonhos e esperanças de que algum dia ocorra uma mudança e o inesperado faça com que as coisas comecem a acontecer tirando-nos da letargia.

Limites existem – é aquela velha história : nossa liberdade acaba quando inicia a do outro-; mas onde existe intenção, espaço e respeito, tudo pode acontecer.

A vida é ampla. As coisas estão aí, as possibilidades existem, as experiências nos aguardam.. Neste universo cabe a nós decidirmos o que fazer com aquilo que intensifica nossa vontade, que aguça nossa curiosidade. Porém o certo é que não há como gerar transformação, evolução e realização sem ação, sem força, sem coragem, sem disposição ao movimento.

Qual é nossa escolha?

Saturday, October 01, 2005

Robôs fúteis

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Há alguns dias me vi numa situação inesperada de saia-justa. Estava eu em um
cinema aguardando para entrar na sala de projeção quando me vi frente a frente com uma colega da academia de ginástica que frequento, famosa por seu estrelismo e culto ao corpo.

Nas aulas de Power Jump e Jump Fit trocamos algumas palavras mas não temos intimidade e muito menos amizade, pois –confesso meu preconceito- a acho um tanto ôca. Pois bem, nos cumprimentamos e ela fez um convite para sentar-me junto a ela e uma amiga.

Eu, sendo educado, aceitei. Mas,ao mesmo tempo, surgiu em mim um certo pânico. Pensei : " o que vou conversar?... que tipo de assunto discutiremos até que a sessão comece?". Confesso que não achei resposta. Assim, em meio a uma certa angústia, num momento de indecisão, solicitei licença e fui ao banheiro. Lá, enquanto lavava as mãos, fez-se a luz : "regime ! malhação!!”.. "é isto!!"... "vou falar sobre cuidados com o corpo!!".

Assim, tranquilo por ter achado o caminho do link temporário, voltei para junto delas. Como faltavam alguns minutos para o inicio do filme, fomos tomar um café. Sentamos e logo puxei o assunto : "e aí como está o regime? ... nas aulas percebo que vc está ótima !" ... Pronto! Foi a deixa! O santo baixou!

Dali para diante tudo rolou tranquilo. Ouvi um tratado completo sobre alimentação, remédios emagrecedores, lipoaspiração, lipoescultura, botox, dietas, melhores tênis, melhores roupas, freqüencia, intensidade, repetições, etc. Fiquei em silêncio durante todo o tempo dos expressos. Eventualmente comentava alguma coisa do tipo "ah, é?", .. "ãh,ãh",... "que bom", .. "veja só".

Logo chegou o horario da sessão, assistimos ao filme e no final nos despedimos com beijinhos. Tudo rápido e indolor.

Depois, voltando para casa, me lembrei de Gustavo Corção em seu "Lições de Abismo" quando ele fala sobre frivolidade, sobre a futilidade, quando ele fala sobre os autômatos, os robôs humanos cheios de botões pré-programados os quais podemos acionar ao nosso bel prazer. Percebi que foi o que fiz com a tal colega. Sabendo, sendo conhecedor da sua programação "sou fanática por regime" , foi só acionar o botão correspondente para que ela agisse de acordo com o formatado, de acordo com o programado.

Agi certo ou errado? .. não tenho o juízo.

Com a palavra Corção ("Lições de Abismo"), onde o narrador relata ao amigo Miguel uma conversa que teve com uma outra amiga (D. Alice) sobre seus problemas com a esposa (Eunice) :

"D. Alice puxou conversa sobre Eunice... Foi uma conversa penosíssima, em que me defendi, para não dizer a milésima parte de nosso segredo. D. Alice, com muita delicadeza , perseguiu-me, cercou-me, querendo convencer-me que a maior falta é a minha, porque não procurei adaptar-me. E terminou a sua defesa dizendo que Eunice "só é um pouco fútil".

Eis aí, Miguel, o que d. Alice acha pouco (a futilidade). E você? Sabe você o que é isso, qual é a realidade dessa monstruosa deformação que merece sorrisos de complacência e rápido perdão?....

Não ignoro que tenho contra mim o quase unânime consenso. A moça bonita, quando sorri à toa, quando faz trejeitos de faceirice e fala sem propósito, parece uma flor da humanidade, um espetáculo estimulante, uma fonte de alegria. Na verdade, porém, a futilidade é uma coisa lúgubre. Não sei se você já viu essas chagas medonhas que roem o nariz, que abrem um buraco no rosto. Vistas sem levar em conta o rosto, o nariz, a boca, a expressão humana enfim, essas chagas têm um luxo de cores a que não recusaríamos uma certa beleza exótica. Postas no homem são um horror. Pois assim é a frivolidade.

O que existe na frivolidade é mais doença do que saúde; mais fixação do que mobilidade; mais morte do que vida. Eu disse fixação. Explico-me melhor : todos nós sofremos na vida certos golpes psicológicos, um susto, uma surpresa maravilhada, uma descoberta dolorosa, que deixam em nós um resíduo. Ora, tudo em nossa vida vai depender da possibilidade de assimiliação desses resíduos. Se conseguirmos dissolvê-los na substância de nossa pessoa, então esses sinais de nossas experiências serão fecundos. Haverá uma experiência propriamente humana, um lucro. Se eu transformar em sangue, em alma, as pedras de meu caminho, terei doravante antenas sensíveis que antes não possuía, serei capaz de intuições que antes me faltavam. Farei versos, descobrirei novos planetas, ou terei simplesmente um harmonioso equilíbrio que me permitirá a dilatação da vida.

O frívolo, ao contrário, é aquele em que o resíduo das experiências encaroçou. Tem pontos sensíveis, botões, teclas de comando, e são movidos de fora para dentro, como os mecanismos. Aperta-se um botão e ele diz "bom dia" encarquilhando os músculos da face. Aperta-se outro botão e ele faz um discurso, se é um ministro, ou atira os cabelos para trás, se é uma moça de vinte e cinco anos...

Conheci uma pobre moça que passou toda a vida e muitos maus pedaços escorada num leit-motiv que viera provavelmente da adolescência. Alguém, certo dia, em certa conjunção favorável de astros, dissera : "Que bom gênio tem Fabrícia!" e desse dia em diante, com a constância de uma vestal, Fabrícia guardara acesa essa divisa. Fez questão de ser fiel a esse compromisso de acaso, conseguindo mesmo um certas situações mais difíceis, um verdadeiro heroísmo na defesa do bom humor sistemático e de empréstimo. Lembro-me que fui vê-la no dia em que o filho morreu atropelado. Chorava como toda boa mãe, mas creio não me enganar muito se disser que vi, por detrás das lágrimas honestas, um clarão que parecia telegrafar-me: "A vida é assim; vou reagir, e vocês verão que bom gênio tem Fabricia."
.....

Em Eunice o painel de comando é formado quase todo pelos desejos contrariados de sua adolescência pobre. Uma de suas idéias-mestras é a de ser uma pessoa decidida; outra é a de possuir uma natural distinção....E além dessas, uma infinidade de outras menores, formadas por coisas, palavras, objetos, que dentro dela ficaram como entraram e continuam a funcionar de modo a devolver as reações que as originaram. Apalpando-os, anotando-os, eu descobri um por um os botões que fazem rir ou chorar a minha boneca de corda..."

Tuesday, September 27, 2005

Somos todos palhaços uns dos outros

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Quando rimos de alguém temos consciência de que outros riem de nós? Acredito que não. Nosso orgulho, nossa auto-imagem só nos permite ver o ridiculo nos outros..

Na obra-prima "Lições de Abismo", Gustavo Corção escreve :

" O homem é ridículo. Sim, ridículo....Creio ter descoberto a causa desse ridículo : é o equívoco, o erro prático, o engano colossal que pesa sobre a condição humana. ..... No circo a gente se ri porque certos indivíduos são encarregados de errar de modo intencional, calculado, profissional, mas com um imprevisto que nos oculte momentaneamente a intenção...

O cômico, no circo, é o hábil profissional do apupo estilizado, é o personagem que vai ao encontro da vaia, da reprovação social, e a transforma em aplausos da sua arte. No circo, o palhaço descarrega o nosso permanente e opressivo desejo de censurar, de corrigir, de apostrofar, de denunciar. De vaiar...

Na vida,o que mais se vê é o erro do outro. Cada indivíduo é um espetáculo, e cada grupo uma platéia. Ás vezes se torna tão nítido que isola, como ao centro de um picadeiro improvisado, o involuntário artista. Assim é, por exemplo, o caso do pobre indivídio que bebe a água com rodela de limão que o garçom lhe traz para o ritual limpeza das pontas dos dedos. Em si mesmo, o ato não é absurdo, porque a água tanto serve para beber como para lavar; e até porque a rodela de limão sugere mais depressa a idéia de bebida do que a idéia de ablução. O ridículo reside no fato de o sujeito se enganar sobre a convenção, sobre o papel que lhe coube naquela cena.

O cômico....supõe o social, isto é, supõe a possibilidade de imaginar um picadeiro para o personagem que se singulariza e uma arquibancada para os seus juízes, que pronunciam às gargalhadas o seu curioso veredicto.

Quem será então que se ri desse generalizado espetáculo que envolve três bilhões de palhaços? Às vezes nós conseguimos a ilusão de um camarote confortável que nos permita rir dos outros. Mas de onde vem esse eco, essa ressonância de um riso muito mais poderoso do que o meu? Quem esta aí? Quem esta por aí, nessas cadeiras vazias, a rir-se de mim?

O mundo é um circo em que a arena e as arquibancadas são relativas. Três bilhões de atores mal ensaiados passam a vida a divertir-se um apontando no outro o rabo de papel. Ou a trave no olho”

Friday, September 23, 2005

Teatro - "Desassossego"

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Na contracapa do “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa, o pesquisador Richard Zenith registra os seguintes comentários a respeito da obra do grande poeta português : “ O que temos aqui não é um livro mas sua subversão e negação”; ... este é ”o livro em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o antilivro, além de qualquer literatura. O que temos nestas páginas é o gênio de Pessoa no seu auge”.... Estas palavras definem com precisão este fascinante petardo literário que pode ser definido –de uma forma simplista- como um diário íntimo de um pequeno escriturário português de nome Bernardo Soares. O diário é composto de comentários, reflexões e devaneios sobre diversos temas : vida, morte, estados da alma, estados psíquicos, exílio espiritual, fé, paixão, moral, conhecimento, desejo, sonhos, ciência, realidade, irrealidade. Como um peregrino da vida, Bernardo sofre e registra a dor, o absurdo e a angústia de ser.

Marilena Ansaldi, a primeira bailarina brasileira a integrar o Balet Bolshoi, debruçou-se sobre esta obra-prima para compor o espetáculo “Desassossego” que marca sua volta aos palcos brasileiros após 12 anos de ausência. A peça foi montada após a artista ter passado por um processo de recuperação de crises de pânico e depressão e comemora os 50 anos de carreira de Marilena. Também esta montagem celebra os 30 anos de “Isso ou Aquilo” espetáculo que a diva lançou em 1975 e que marcou um momento de efetiva renovação na dança brasileira.

Disto isto, é claro que a união destes dois grandes nomes da arte imediatamente sugere um espetáculo primoroso. Fui conferir “Desassossego”, nesta edição do Porto Alegre em Cena, cheio de expectativas.

As luzes se apagam. As cortinas se abrem e um som de metálico e incomodativo enche o teatro. Aos poucos diviza-se um vulto negro, encarnado por Marilena, segurando um grande guarda-chuva e que se movimenta vagarosamento no mesmo lugar sobre um mecanismo que produz aquele som quebrado. Lentamente este vulto-criatura se agacha deformando sua imagem. O efeito plástico é belíssimo. Com movimentos sutis a artista desce do mecanismo, deixa o guarda-chuva e inicia o texto. A partir daí começamos a acompanhar as dores existencias, as vicissitudes da alma daquele(a) personagem limítrofe.

A promessa é grande, porém, infelizmente, logo surgem alguns problemas que permanecem durante quase toda a duração do espetáculo. Primeiro, a potência vocal da atriz não é suficiente para preencher todo o teatro; em vários momentos é impossível ouvir o que está sendo dito no palco. Também a maioria do texto é expresso de uma forma excessivamente dramática (quase no limite do melodrama). Os fragmentos da obra de Pessoa são soterrados sob uma mascara de tragédia exagerada, que mais causa estranheza do que arrebatamento. As frases perdem a sutileza, a agudez, presas numa moldura de dor inútil (vejo Fernando Pessoa muito mais fino, mais impalpável do que "over"). Isto sem falar na lentidão quase que exasperante com que as palavras são proferidas. Os movimentos da atriz, também vagarosos, auxiliam para acentuar o clima de morosidade da montagem. E assim a peça prossegue num ritmo arrastado de tédio geral.

Para compensar, tenho que admitir, surgem cenas belíssimas e plasticamente muito bem resolvidas com a diva mostrando perfeito dominio corporal, o que faz sua figura metamorfosear-se, difundir-se em formas sobre-humanas. Para isto contribui a iluminação perfeita que sublinha toda a encenação. Também a breve sequência de dança comprova estarmos diante de uma grande artista que sem dúvida merece todo o reconhecimento e todo mérito que lhe são atribuídos.

Porém, infelizmente, o resultado do espetáculo é negativo. Ficou o sentimento de expectativas frustradas. Como não podia deixar de ser, no final, mais uma vez a platéia porto-alegrense ovacinou. Eu aplaudi, é claro... mas sentado.

Monday, September 19, 2005

Primeiro Seminário de Lideranças de Grupos Cristãos GLTTB do Cone Sul.

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Abertura do Seminario

Realizou-se no final de semana passado, na cidade de São Leopoldo – RS, o Primeiro Seminário de Lideranças de Grupos Cristãos GLTTB (Gays, Lésbicas, Travestis, Transgêneros e Bissexuais) do Cone Sul. A proposta do evento foi reunir lideranças cristãs do Brasil e do exterior comprometidas em criar e promover grupos religiosos nos quais os participantes podem praticar sua fé livres de preconceitos quanto a sua sexualidade ou outras características individuais.. Com representantes do Brasil, Uruguai, Argentina, EUA, Chile e outros, o encontro proporcionou a troca de experiências entre os guias e definiu ações voltadas para a continuidade da construção e divulgação de movimentos religiosos inclusivos.


No discurso de abertura, o teólogo Andre Musskopf (autor dos livros "Uma brecha no armário -Proposta para uma Teologia Gay-" e "Talar Rosa -Homossexuais e o Ministério da Igreja"-) falou das dificuldades, da lutas e da coragem de homens e mulheres que, mesmo sofrendo discriminações e perseguições dentro das denonimações cristãs tradicionais em virtude da sua orientação sexual, não desistem da sua religiosidade e de expressar e vivenciar suas crenças.


Citando sua própria experiência como exemplo dentro da EST (Escola Superior de Teologia – São Leopoldo/RS), André lembrou das dificuldades pelas quais passou ao ver negada, ao final do curso, sua ordenação como pastor Luterano. Esta situação fez com que ele assumisse o desafio de buscar seus direitos como cidadão e como cristão dentro e fora da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil). Este exemplo de luta é extensivo a todos os demais líderes participantes do evento, com suas trajetórias de vida mais ou menos parecidas, os quais acabaram por construir reputações de vanguarda dentro dos movimentos religiosos nacionais e internacionais.


Neste seminário, eu, meu companheiro e uma grande amiga (Marinês) tivemos a oportunidade de conversar com diversos líderes e conhecer seus caminhos e atividades (Igreja Acalanto, Igreja Comunitária Metropolitana, Catolicos, Presbiterianos, Metodistas, Luteranos, etc). Foi enriquecedor ter contato com a diversidade de idéias e conhecer os trabalhos desenvolvidos por estes homens e mulheres que mantêm suas causas mesmo contra todos os obstáculos enfrentados.


No fim de tudo fica a certeza de que, apesar das igrejas tradicionais ainda serem fontes de muita dor e sofrimento para os GLTTB´s, a fé, a coragem e a esperança na construção de uma nova realidade persistem no coração e mentes de pessoas especiais que laboram para criar e manter espaços de reflexão espiritual onde a inclusão humana é celebrada e onde a chama do verdadeiro amor transforma em cinzas o preconceito e a discriminação.


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Andre Musskopf



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Eu, Lu e Pastor Gelson (Igreja ICM Brasil)

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Eu, Lu e Andre (lançamento dos livros)

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Eu, Marines, Dilmar e Andre

Thursday, September 15, 2005

Comendo a ausente

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Hoje fui almoçar num restaurante vegetariano. Um daqueles restaurantes pequenos e cheios de gente, sabe? Aquele tipo de local onde você é obrigado a sentar ombro a ombro com estranhos. Mas tudo bem, a comida é boa e o preço acessível. Pois bem, lá estava eu sozinho numa mesa quando sentaram ao lado três jovens e belas garotas. Ficamos muito próximos. Eu ali praticamente sentado na mesma mesa que elas.

Bem, assim tão juntos foi inevitável que eu começasse a ouvir suas conversas. De início tudo muito normal, algumas coisas familiares, televisão e coisas do gênero, mas sem muito entusiasmo. De repente uma delas começou a falar de uma pessoa que logo identifiquei que seria uma colega de serviço. Pequenas críticas quanto a postura profissional e comportamento surgiram sem muito alarde. Porém, logo as demais começaram a participar e a incentivar a conversa acrescentando outros comentários e impressões. O que era a princípio uma pequena ponderação (tive esta impressão) logo evoluiu para uma crítica generalizada. Uma fala após a outra acrescentava mais uma pitada de negatividade na imagem da fulana.

O curioso é que a medida em que a pintura do quadro da dor evoluia as garotas ficavam mais entusiasmadas, mais próximas, mais cúmplices. Não sei se era motivada pela delicia da comida mas foi lindo de ver a conexão que brotou entre elas (uma coisa tipo a Festa de Babete). Uma união invejável baseada no julgamento da pobre colega. Assim, entre uma proteína de soja, um pastel de goiabada ou um suflê de cenoura, entre uma garfada de feijão e outra elas iam devorando junto a ausente. O paladar, a saliva, os dentes delas em conjunto iam destroçando e deglutindo a inapta, a incapaz.

Elas riam, os olhos brilhavam. As lindas faces começaram a corar, os lábios abriam fáceis em alegria. A cada comentário de uma as demais assentiam, fazendo um ar grave de reconhecimento e entendimento sobre o que estava sendo dito ou respondiam com um sorriso tipo “eu sei, eu sei”.Confesso que fiquei com inveja daquela união tão explícita, tão amiga, tão sólida que nasceu assim tão espontaneamente. Um belo grupo coeso, em harmonia no ritual de dissecação.

De repente, não sei, talvez por causa da berinjela mal temperada, elas mudaram o discurso, amenizaram dizendo coisas do tipo “ela é boa pessoa...” ou “ela tem seu valor...”. Mas isto não demorou muito. Logo as três foram para a sobremesa e o doce sabor das tortas novamente ativou o fel. A crucificada deve ter ficado com as orelhas em brasa.

O julgamento sumário continou enquanto elas palitavam os dentes e retocavam o batom –tudo muito civilizado. Depois, bem nutridas e satisfeitas levantaram e encaminharam-se para a fila do pagamento. De longe tive a impressão de que o assunto continuava. Pagaram e saíram...

Fiquei só, pensei um pouco e cheguei a conclusão que no final das contas a incompetente, a inábil da colega acabou provando que tem seu valor pois proporcionou um belo momento de congraçamento, um momento de união, um encontro de almas entre as três belas garotas que sentaram hoje ao meu lado.

Tuesday, September 13, 2005

Jardim de Cimento

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Ian McEwan, um dos maiores autores britânicos da atualidade, é um escritor que navega perigosamente nos limites do doentio do ser humano. Ele mesmo diz : "Quando comecei a escrever, aos 20 anos, queria chocar, escapar da cinzenta e provinciana literatura inglesa e ir atrás de William Burroughs, Philip Roth, John Updike e Henry Miller, que pareciam estar em busca de algo mais ambicioso, mais arriscado."

Acabei de ler agora “Jardim de Cimento” um livro pequeno (132 páginas) que confirma a fama do autor. A obra, quase gótica, conta a história de quatro irmãos órfãos (dois casais) que perdem o pai e depois a mãe (cujo corpo encerram no porão). Ao se verem sozinhas, as crianças entram em viagens existenciais individualizadas onde a inocência e a perversidade se confundem. Entre eles estabelece-se um jogo complexo, um arremedo de arranjo de necessidade da continuidade da vida que acontece num cenário de absoluta liberdade de ação onde não existem figuras de autoridade. Daí, sem ninguém para guiá-los, os irmãos se desagregam e se integram, se desenlaçam e se apóiam numa mistura de atração e repulsão. É estranho, triste e sedutor acompanhar estas almas infantis abarcadas pela escuridão, para elas incompreensível. Presos à imaturidade os comportamentos se deformam e os irmãos enredam-se cada vez mais num caminho fadado ao abismo.

No fim de tudo, masturbação, mentiras, apatia, loucura,inocência, incesto, pecado e redenção são acrescentados ao caldeirão onde as crianças queimam e onde encontram sua derrota....Ou quem sabe sua vitória?

Monday, September 12, 2005

Porto Alegre em Cena - Duas X Pinter

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Começou no final de semana passado o Festival de Teatro Porto Alegre em Cena, já considerado o maior do Brasil. Fomos ontem assistir a primeira das várias peças que programamos para esta edição. Segue comentário

Duas X Pinter :

Autor : Harold Pinter
Direção : Italo Rossi

Uma peça dividida em dois textos. O primeiro "Cinzas e Cinzas" mostra um casal (Ester Jablonski e Marcelo Escorel) numa discussão sobre um pretenso ex-amante dela. De forma absolutamente não linear o texto escorrega várias vezes para assuntos ou comentários paralelos que de certa forma não têm nada a ver com o mote principal. Assim, a figura e as ações do amante são reveladas em fragmentos de recordações o que mais provoca curiosidade (mas não muita) do que certezas. Ele era um assassino de massas? Tentou realmente matar a personagem? Um sádico? As respostas não são dadas de modo explicito; são tangenciadas. A mulher desdobra-se em um exercício de omissão e necessidade de confissão. O marido (ou namorado, sei lá), tenta cercá-la com várias perguntas e ela escapa. Porém ele mesmo divaga em vários momentos e se perde. Volta, retoma a linha do interrogatório, insiste. No final, revela-se, de forma solta e inconsequente, um cenário de tragédia que pode ou não ser real. Minha avaliação é de que a obra pode ser vista como "instigante" (para uma minoria de intelectuais bem cerebrais) ou "entediante, incompreensível e chata" (para o resto de nós mortais).

O segundo texto, "Uma Espécie de Alasca" (inspirado pelo livro Awakenings, que também originou o filme Tempo de despertar, estrelado por Robin Williams e Robert De Niro), mostra o despertar de uma mulher após 29 anos de sono profundo. Joanna Fomm (em grande forma) faz esta mulher-menina perplexa diante da situação. Questiona se está viva ou morta, dormindo ou sonhando. Acredita ainda ter 15 anos, comporta-se como uma garota, lembra de si mesma como uma garota. Porém, a partir das conversas com o médico e com a irmã, aos poucos vai incorporando a realidade desperta. O interessante é perceber que esta realidade a fascina e assusta. Se por um lado ela tem curiosidade pelo atual, sobre o que aconteceu consigo mesma e com a família, ao mesmo tempo percebe-se seu medo em enfrentar um mundo totalmente diferente. O texto, muito mais acessível que o primeiro, permite algumas risadas o que sem dúvida agrada o público. Para quem viu o filme sabe como a peça termina, só que aqui a personagem volta a dormir por vontade própria..

Para mim o saldo final é regular. Não achei nada excepcional e com certeza não aplaudi em pé (o que todo o resto dos presentes fez).

Saturday, September 10, 2005

Gays em Cristo

Navegando em alguns grupos de discussões sobre religião ocidental mais uma vez me deparo com a irrelevante e estéril discussão “Gays e cristandade – devemos aceitar ou condenar?”. Como um masoquista, que já sabe o que o espera, começo a ler as intermináveis considerações, réplicas, tréplicas, xingamentos, mensagens conciliatórias, mensagens de “esclarecimentos”, mensagens “divinas”, desaforos e assim por diante, o que acaba redundando num nada generalizado.

De qualquer forma, o curioso é que nestes forums nota-se um esforço, entre os participantes que condenam o homossexualismo, de provar aos que pensam diferente que a verdade (com V) é prerrogativa deles. Para isto se apegam de forma asfixiante ou às doutrinas da sua profissão religiosa ou às escrituras bíblicas, demonstrando mais uma vez que é muito mais fácil recacarejar, de forma absolutamente superficial, pensamentos, dogmas e ensinamentos pré-formatados (e deglutidos como manjares), do que realizar um esforço próprio no sentido de questionar o que é imposto como correto. Mostram como foram bem amestrados.

Sei que a preguiça é inerente ao ser humano, tanto a física quanto a mental. É ótimo não termos que fazer ou pensar muito. Pra que? Se podemos nos preocupar pouco, ou fazer pouco, porque nos incomodar em perguntar ou procurar saber mais? Porque levantarmos da cama se desde que nascemos somos criados dentro de um mundo pronto onde os outros vão nos dizer o que está certo ou errado e a nós só cabe aceitar? Por exemplo : quando nos dizem que Deus condena os homossexuais, cabe a nós questionar? Ora se DEUS deu a procuração lavrada e assinada para os doutores da lei afirmarem isto, o que resta a nós pobres mortais?... Sim, sim, os doutores têm esta procuração. Sim, aquela que todo mundo sabe... Sim, a Bíblia..... Sim, este mesmo : o livro que brandem na nossa frente com uma baba bovina (como diria Nelson Rodrigues) quando querem provar nossa escuridão mental. Sim, a obra maior! A única luz divina da humanidade. O livro cujas páginas registram as únicas verdades admitíveis para qualquer ser racional deste planeta...... Não, não, o Alcorão, Bhagavad Gita, Vedas, e outras literaturas das outras grandes religiões não servem para nada..... São textos menores de hereges perdidos nas trevas e na ignorância. O único livro a encerrar toda a necessidade moral e espiritual do homem pertence aos cristãos...... Parênteses. Disto surge a idéia : que bom seria se todos fôssemos cristãos, não? Se pudéssemos extirpar o câncer que os pecadores representam à humanidade, e deixarmos os cristãos herdarem a terra, com certeza o mundo seria um paraíso, um lugar de amor, conciliação, paz e harmonia, não é mesmo?... Mas peraí, a cristandade não existe há séculos? A doutrina e os ensinamentos não existem há séculos? Sim, mas o que se vê estudando este histórico são, principalmente, cenários de intolerância, perseguições, guerras, tortura e morte. Então...(melhor deixar isto prá lá) . Fecha parênteses.

Mas voltando à Bíblia : é interessante perceber que as pessoas que têm o conteúdo do livro sagrado como única argumentação não possuem a mínima cultura que as esclareça como tal coletânea foi formada, sob quais regras foi composta, que interesses refletiu. E mais, falta cultura e conhecimento também no que se refere às próprias origens do cristianismo. Por exemplo: de onde sairam muitas das parábolas, dos ritos, das histórias e verdades reproduzidas hoje em qualquer templo de esquina? Com certeza estas pessoas teriam um baque enorme ao saber que muito do que é colocado como verdades cristãs nada mais são do que cópias quase que literais de religiões e tradições mais antigas (vide a própria história do nascimento milagroso, reis magos e outras). Mas saber disto, ter este conhecimento, ter esta cultura histórica, invalida o conteúdo da Bíblia? O livro passa a ser um festival de mentiras inúteis e estéreis? Perde o caráter sagrado? Para mim não, apesar de, quem sabe, ter deixado esta impressão ha pouco. Para mim, a Bíblia mantém o caráter de livro santo assim como qualquer outra obra da literatura universal que busque a reconexão do homem com o Divino - O que não pode ser aceito é que qualquer excerto destas obras antigas seja usado como prova incontestável de alguma pretensa verdade universal que pregue a discriminação e a intolerância entre os homens-

Reafirmo : a Biblia e as obras sagradas de todas as religiões e filosofias estão disponíveis para auxiliar aqueles que buscam trilhar o caminho espiritual. São fontes de conhecimento, inspiração e meditação mas não encerram em si o início, meio e fim da verdadeira transcendência,. Por isto qualquer fato histórico ou argumentação que queira desmascarar ou ratificar a Bíblia (ou qualquer outro livro santo); que queira provar que um ponto de vista é o único certo (muitas vezes baseado em textos das próprias escrituras), ou que uma religião é mais correta do que outra, se torna irrelevante quando atingimos a verdadeira religiosidade.

Falo daquela religiosidade interior desassociada de qualquer denominação, daquela religiosidade maior que une coração e mente. Que integra. Religiosidade de pensamento isento de qualquer gesso, onde o espírito manifesta o “religare” livre de conceitos ou preconceitos. Religiosidade de acolhimento, onde a convivência, ratificação e celebração das diferenças acontecem. Onde o julgar e a condenação (explícita, parcial ou velada) inexistem. Que inclui verdadeiramente o outro como ele é. A religiosidade do respeito consigo próprio e com demais, onde cada um é incensado no seu individual, na sua felicidade de ser uno, de ser íntegro (independente da sua sexualidade ou qualquer outra característica)....

O encontro com este “religare”, além das aparências e das convenções sociais, é um processo doloroso pois prevê sairmos no nosso estupor, da nossa zona de conforto pré-formatada e questionarmos, quebrarmos paradigmas, mexermos com o que nos foi servido, destruirmos “muros de verdades”. É doloroso, mas afirmo que o que resulta é uma reconstrução moral e espiritual baseada numa tranquilidade, numa serenidade de conexão com o superior que proporciona uma visão maior e onde discussões como estas passam a ser apenas objetos de contemplação e lamentação.