Hino do Blog - Clique para ouvir

Hino do Blog : " ...e todas as vozes da minha cabeça, agora ... juntas. Não pára não - até o chão - elas estão descontroladas..."
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Tuesday, September 27, 2005

Somos todos palhaços uns dos outros

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Quando rimos de alguém temos consciência de que outros riem de nós? Acredito que não. Nosso orgulho, nossa auto-imagem só nos permite ver o ridiculo nos outros..

Na obra-prima "Lições de Abismo", Gustavo Corção escreve :

" O homem é ridículo. Sim, ridículo....Creio ter descoberto a causa desse ridículo : é o equívoco, o erro prático, o engano colossal que pesa sobre a condição humana. ..... No circo a gente se ri porque certos indivíduos são encarregados de errar de modo intencional, calculado, profissional, mas com um imprevisto que nos oculte momentaneamente a intenção...

O cômico, no circo, é o hábil profissional do apupo estilizado, é o personagem que vai ao encontro da vaia, da reprovação social, e a transforma em aplausos da sua arte. No circo, o palhaço descarrega o nosso permanente e opressivo desejo de censurar, de corrigir, de apostrofar, de denunciar. De vaiar...

Na vida,o que mais se vê é o erro do outro. Cada indivíduo é um espetáculo, e cada grupo uma platéia. Ás vezes se torna tão nítido que isola, como ao centro de um picadeiro improvisado, o involuntário artista. Assim é, por exemplo, o caso do pobre indivídio que bebe a água com rodela de limão que o garçom lhe traz para o ritual limpeza das pontas dos dedos. Em si mesmo, o ato não é absurdo, porque a água tanto serve para beber como para lavar; e até porque a rodela de limão sugere mais depressa a idéia de bebida do que a idéia de ablução. O ridículo reside no fato de o sujeito se enganar sobre a convenção, sobre o papel que lhe coube naquela cena.

O cômico....supõe o social, isto é, supõe a possibilidade de imaginar um picadeiro para o personagem que se singulariza e uma arquibancada para os seus juízes, que pronunciam às gargalhadas o seu curioso veredicto.

Quem será então que se ri desse generalizado espetáculo que envolve três bilhões de palhaços? Às vezes nós conseguimos a ilusão de um camarote confortável que nos permita rir dos outros. Mas de onde vem esse eco, essa ressonância de um riso muito mais poderoso do que o meu? Quem esta aí? Quem esta por aí, nessas cadeiras vazias, a rir-se de mim?

O mundo é um circo em que a arena e as arquibancadas são relativas. Três bilhões de atores mal ensaiados passam a vida a divertir-se um apontando no outro o rabo de papel. Ou a trave no olho”

Friday, September 23, 2005

Teatro - "Desassossego"

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Na contracapa do “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa, o pesquisador Richard Zenith registra os seguintes comentários a respeito da obra do grande poeta português : “ O que temos aqui não é um livro mas sua subversão e negação”; ... este é ”o livro em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o antilivro, além de qualquer literatura. O que temos nestas páginas é o gênio de Pessoa no seu auge”.... Estas palavras definem com precisão este fascinante petardo literário que pode ser definido –de uma forma simplista- como um diário íntimo de um pequeno escriturário português de nome Bernardo Soares. O diário é composto de comentários, reflexões e devaneios sobre diversos temas : vida, morte, estados da alma, estados psíquicos, exílio espiritual, fé, paixão, moral, conhecimento, desejo, sonhos, ciência, realidade, irrealidade. Como um peregrino da vida, Bernardo sofre e registra a dor, o absurdo e a angústia de ser.

Marilena Ansaldi, a primeira bailarina brasileira a integrar o Balet Bolshoi, debruçou-se sobre esta obra-prima para compor o espetáculo “Desassossego” que marca sua volta aos palcos brasileiros após 12 anos de ausência. A peça foi montada após a artista ter passado por um processo de recuperação de crises de pânico e depressão e comemora os 50 anos de carreira de Marilena. Também esta montagem celebra os 30 anos de “Isso ou Aquilo” espetáculo que a diva lançou em 1975 e que marcou um momento de efetiva renovação na dança brasileira.

Disto isto, é claro que a união destes dois grandes nomes da arte imediatamente sugere um espetáculo primoroso. Fui conferir “Desassossego”, nesta edição do Porto Alegre em Cena, cheio de expectativas.

As luzes se apagam. As cortinas se abrem e um som de metálico e incomodativo enche o teatro. Aos poucos diviza-se um vulto negro, encarnado por Marilena, segurando um grande guarda-chuva e que se movimenta vagarosamento no mesmo lugar sobre um mecanismo que produz aquele som quebrado. Lentamente este vulto-criatura se agacha deformando sua imagem. O efeito plástico é belíssimo. Com movimentos sutis a artista desce do mecanismo, deixa o guarda-chuva e inicia o texto. A partir daí começamos a acompanhar as dores existencias, as vicissitudes da alma daquele(a) personagem limítrofe.

A promessa é grande, porém, infelizmente, logo surgem alguns problemas que permanecem durante quase toda a duração do espetáculo. Primeiro, a potência vocal da atriz não é suficiente para preencher todo o teatro; em vários momentos é impossível ouvir o que está sendo dito no palco. Também a maioria do texto é expresso de uma forma excessivamente dramática (quase no limite do melodrama). Os fragmentos da obra de Pessoa são soterrados sob uma mascara de tragédia exagerada, que mais causa estranheza do que arrebatamento. As frases perdem a sutileza, a agudez, presas numa moldura de dor inútil (vejo Fernando Pessoa muito mais fino, mais impalpável do que "over"). Isto sem falar na lentidão quase que exasperante com que as palavras são proferidas. Os movimentos da atriz, também vagarosos, auxiliam para acentuar o clima de morosidade da montagem. E assim a peça prossegue num ritmo arrastado de tédio geral.

Para compensar, tenho que admitir, surgem cenas belíssimas e plasticamente muito bem resolvidas com a diva mostrando perfeito dominio corporal, o que faz sua figura metamorfosear-se, difundir-se em formas sobre-humanas. Para isto contribui a iluminação perfeita que sublinha toda a encenação. Também a breve sequência de dança comprova estarmos diante de uma grande artista que sem dúvida merece todo o reconhecimento e todo mérito que lhe são atribuídos.

Porém, infelizmente, o resultado do espetáculo é negativo. Ficou o sentimento de expectativas frustradas. Como não podia deixar de ser, no final, mais uma vez a platéia porto-alegrense ovacinou. Eu aplaudi, é claro... mas sentado.

Monday, September 19, 2005

Primeiro Seminário de Lideranças de Grupos Cristãos GLTTB do Cone Sul.

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Abertura do Seminario

Realizou-se no final de semana passado, na cidade de São Leopoldo – RS, o Primeiro Seminário de Lideranças de Grupos Cristãos GLTTB (Gays, Lésbicas, Travestis, Transgêneros e Bissexuais) do Cone Sul. A proposta do evento foi reunir lideranças cristãs do Brasil e do exterior comprometidas em criar e promover grupos religiosos nos quais os participantes podem praticar sua fé livres de preconceitos quanto a sua sexualidade ou outras características individuais.. Com representantes do Brasil, Uruguai, Argentina, EUA, Chile e outros, o encontro proporcionou a troca de experiências entre os guias e definiu ações voltadas para a continuidade da construção e divulgação de movimentos religiosos inclusivos.


No discurso de abertura, o teólogo Andre Musskopf (autor dos livros "Uma brecha no armário -Proposta para uma Teologia Gay-" e "Talar Rosa -Homossexuais e o Ministério da Igreja"-) falou das dificuldades, da lutas e da coragem de homens e mulheres que, mesmo sofrendo discriminações e perseguições dentro das denonimações cristãs tradicionais em virtude da sua orientação sexual, não desistem da sua religiosidade e de expressar e vivenciar suas crenças.


Citando sua própria experiência como exemplo dentro da EST (Escola Superior de Teologia – São Leopoldo/RS), André lembrou das dificuldades pelas quais passou ao ver negada, ao final do curso, sua ordenação como pastor Luterano. Esta situação fez com que ele assumisse o desafio de buscar seus direitos como cidadão e como cristão dentro e fora da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil). Este exemplo de luta é extensivo a todos os demais líderes participantes do evento, com suas trajetórias de vida mais ou menos parecidas, os quais acabaram por construir reputações de vanguarda dentro dos movimentos religiosos nacionais e internacionais.


Neste seminário, eu, meu companheiro e uma grande amiga (Marinês) tivemos a oportunidade de conversar com diversos líderes e conhecer seus caminhos e atividades (Igreja Acalanto, Igreja Comunitária Metropolitana, Catolicos, Presbiterianos, Metodistas, Luteranos, etc). Foi enriquecedor ter contato com a diversidade de idéias e conhecer os trabalhos desenvolvidos por estes homens e mulheres que mantêm suas causas mesmo contra todos os obstáculos enfrentados.


No fim de tudo fica a certeza de que, apesar das igrejas tradicionais ainda serem fontes de muita dor e sofrimento para os GLTTB´s, a fé, a coragem e a esperança na construção de uma nova realidade persistem no coração e mentes de pessoas especiais que laboram para criar e manter espaços de reflexão espiritual onde a inclusão humana é celebrada e onde a chama do verdadeiro amor transforma em cinzas o preconceito e a discriminação.


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Andre Musskopf



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Eu, Lu e Pastor Gelson (Igreja ICM Brasil)

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Eu, Lu e Andre (lançamento dos livros)

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Eu, Marines, Dilmar e Andre

Thursday, September 15, 2005

Comendo a ausente

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Hoje fui almoçar num restaurante vegetariano. Um daqueles restaurantes pequenos e cheios de gente, sabe? Aquele tipo de local onde você é obrigado a sentar ombro a ombro com estranhos. Mas tudo bem, a comida é boa e o preço acessível. Pois bem, lá estava eu sozinho numa mesa quando sentaram ao lado três jovens e belas garotas. Ficamos muito próximos. Eu ali praticamente sentado na mesma mesa que elas.

Bem, assim tão juntos foi inevitável que eu começasse a ouvir suas conversas. De início tudo muito normal, algumas coisas familiares, televisão e coisas do gênero, mas sem muito entusiasmo. De repente uma delas começou a falar de uma pessoa que logo identifiquei que seria uma colega de serviço. Pequenas críticas quanto a postura profissional e comportamento surgiram sem muito alarde. Porém, logo as demais começaram a participar e a incentivar a conversa acrescentando outros comentários e impressões. O que era a princípio uma pequena ponderação (tive esta impressão) logo evoluiu para uma crítica generalizada. Uma fala após a outra acrescentava mais uma pitada de negatividade na imagem da fulana.

O curioso é que a medida em que a pintura do quadro da dor evoluia as garotas ficavam mais entusiasmadas, mais próximas, mais cúmplices. Não sei se era motivada pela delicia da comida mas foi lindo de ver a conexão que brotou entre elas (uma coisa tipo a Festa de Babete). Uma união invejável baseada no julgamento da pobre colega. Assim, entre uma proteína de soja, um pastel de goiabada ou um suflê de cenoura, entre uma garfada de feijão e outra elas iam devorando junto a ausente. O paladar, a saliva, os dentes delas em conjunto iam destroçando e deglutindo a inapta, a incapaz.

Elas riam, os olhos brilhavam. As lindas faces começaram a corar, os lábios abriam fáceis em alegria. A cada comentário de uma as demais assentiam, fazendo um ar grave de reconhecimento e entendimento sobre o que estava sendo dito ou respondiam com um sorriso tipo “eu sei, eu sei”.Confesso que fiquei com inveja daquela união tão explícita, tão amiga, tão sólida que nasceu assim tão espontaneamente. Um belo grupo coeso, em harmonia no ritual de dissecação.

De repente, não sei, talvez por causa da berinjela mal temperada, elas mudaram o discurso, amenizaram dizendo coisas do tipo “ela é boa pessoa...” ou “ela tem seu valor...”. Mas isto não demorou muito. Logo as três foram para a sobremesa e o doce sabor das tortas novamente ativou o fel. A crucificada deve ter ficado com as orelhas em brasa.

O julgamento sumário continou enquanto elas palitavam os dentes e retocavam o batom –tudo muito civilizado. Depois, bem nutridas e satisfeitas levantaram e encaminharam-se para a fila do pagamento. De longe tive a impressão de que o assunto continuava. Pagaram e saíram...

Fiquei só, pensei um pouco e cheguei a conclusão que no final das contas a incompetente, a inábil da colega acabou provando que tem seu valor pois proporcionou um belo momento de congraçamento, um momento de união, um encontro de almas entre as três belas garotas que sentaram hoje ao meu lado.

Tuesday, September 13, 2005

Jardim de Cimento

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Ian McEwan, um dos maiores autores britânicos da atualidade, é um escritor que navega perigosamente nos limites do doentio do ser humano. Ele mesmo diz : "Quando comecei a escrever, aos 20 anos, queria chocar, escapar da cinzenta e provinciana literatura inglesa e ir atrás de William Burroughs, Philip Roth, John Updike e Henry Miller, que pareciam estar em busca de algo mais ambicioso, mais arriscado."

Acabei de ler agora “Jardim de Cimento” um livro pequeno (132 páginas) que confirma a fama do autor. A obra, quase gótica, conta a história de quatro irmãos órfãos (dois casais) que perdem o pai e depois a mãe (cujo corpo encerram no porão). Ao se verem sozinhas, as crianças entram em viagens existenciais individualizadas onde a inocência e a perversidade se confundem. Entre eles estabelece-se um jogo complexo, um arremedo de arranjo de necessidade da continuidade da vida que acontece num cenário de absoluta liberdade de ação onde não existem figuras de autoridade. Daí, sem ninguém para guiá-los, os irmãos se desagregam e se integram, se desenlaçam e se apóiam numa mistura de atração e repulsão. É estranho, triste e sedutor acompanhar estas almas infantis abarcadas pela escuridão, para elas incompreensível. Presos à imaturidade os comportamentos se deformam e os irmãos enredam-se cada vez mais num caminho fadado ao abismo.

No fim de tudo, masturbação, mentiras, apatia, loucura,inocência, incesto, pecado e redenção são acrescentados ao caldeirão onde as crianças queimam e onde encontram sua derrota....Ou quem sabe sua vitória?

Monday, September 12, 2005

Porto Alegre em Cena - Duas X Pinter

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Começou no final de semana passado o Festival de Teatro Porto Alegre em Cena, já considerado o maior do Brasil. Fomos ontem assistir a primeira das várias peças que programamos para esta edição. Segue comentário

Duas X Pinter :

Autor : Harold Pinter
Direção : Italo Rossi

Uma peça dividida em dois textos. O primeiro "Cinzas e Cinzas" mostra um casal (Ester Jablonski e Marcelo Escorel) numa discussão sobre um pretenso ex-amante dela. De forma absolutamente não linear o texto escorrega várias vezes para assuntos ou comentários paralelos que de certa forma não têm nada a ver com o mote principal. Assim, a figura e as ações do amante são reveladas em fragmentos de recordações o que mais provoca curiosidade (mas não muita) do que certezas. Ele era um assassino de massas? Tentou realmente matar a personagem? Um sádico? As respostas não são dadas de modo explicito; são tangenciadas. A mulher desdobra-se em um exercício de omissão e necessidade de confissão. O marido (ou namorado, sei lá), tenta cercá-la com várias perguntas e ela escapa. Porém ele mesmo divaga em vários momentos e se perde. Volta, retoma a linha do interrogatório, insiste. No final, revela-se, de forma solta e inconsequente, um cenário de tragédia que pode ou não ser real. Minha avaliação é de que a obra pode ser vista como "instigante" (para uma minoria de intelectuais bem cerebrais) ou "entediante, incompreensível e chata" (para o resto de nós mortais).

O segundo texto, "Uma Espécie de Alasca" (inspirado pelo livro Awakenings, que também originou o filme Tempo de despertar, estrelado por Robin Williams e Robert De Niro), mostra o despertar de uma mulher após 29 anos de sono profundo. Joanna Fomm (em grande forma) faz esta mulher-menina perplexa diante da situação. Questiona se está viva ou morta, dormindo ou sonhando. Acredita ainda ter 15 anos, comporta-se como uma garota, lembra de si mesma como uma garota. Porém, a partir das conversas com o médico e com a irmã, aos poucos vai incorporando a realidade desperta. O interessante é perceber que esta realidade a fascina e assusta. Se por um lado ela tem curiosidade pelo atual, sobre o que aconteceu consigo mesma e com a família, ao mesmo tempo percebe-se seu medo em enfrentar um mundo totalmente diferente. O texto, muito mais acessível que o primeiro, permite algumas risadas o que sem dúvida agrada o público. Para quem viu o filme sabe como a peça termina, só que aqui a personagem volta a dormir por vontade própria..

Para mim o saldo final é regular. Não achei nada excepcional e com certeza não aplaudi em pé (o que todo o resto dos presentes fez).

Saturday, September 10, 2005

Gays em Cristo

Navegando em alguns grupos de discussões sobre religião ocidental mais uma vez me deparo com a irrelevante e estéril discussão “Gays e cristandade – devemos aceitar ou condenar?”. Como um masoquista, que já sabe o que o espera, começo a ler as intermináveis considerações, réplicas, tréplicas, xingamentos, mensagens conciliatórias, mensagens de “esclarecimentos”, mensagens “divinas”, desaforos e assim por diante, o que acaba redundando num nada generalizado.

De qualquer forma, o curioso é que nestes forums nota-se um esforço, entre os participantes que condenam o homossexualismo, de provar aos que pensam diferente que a verdade (com V) é prerrogativa deles. Para isto se apegam de forma asfixiante ou às doutrinas da sua profissão religiosa ou às escrituras bíblicas, demonstrando mais uma vez que é muito mais fácil recacarejar, de forma absolutamente superficial, pensamentos, dogmas e ensinamentos pré-formatados (e deglutidos como manjares), do que realizar um esforço próprio no sentido de questionar o que é imposto como correto. Mostram como foram bem amestrados.

Sei que a preguiça é inerente ao ser humano, tanto a física quanto a mental. É ótimo não termos que fazer ou pensar muito. Pra que? Se podemos nos preocupar pouco, ou fazer pouco, porque nos incomodar em perguntar ou procurar saber mais? Porque levantarmos da cama se desde que nascemos somos criados dentro de um mundo pronto onde os outros vão nos dizer o que está certo ou errado e a nós só cabe aceitar? Por exemplo : quando nos dizem que Deus condena os homossexuais, cabe a nós questionar? Ora se DEUS deu a procuração lavrada e assinada para os doutores da lei afirmarem isto, o que resta a nós pobres mortais?... Sim, sim, os doutores têm esta procuração. Sim, aquela que todo mundo sabe... Sim, a Bíblia..... Sim, este mesmo : o livro que brandem na nossa frente com uma baba bovina (como diria Nelson Rodrigues) quando querem provar nossa escuridão mental. Sim, a obra maior! A única luz divina da humanidade. O livro cujas páginas registram as únicas verdades admitíveis para qualquer ser racional deste planeta...... Não, não, o Alcorão, Bhagavad Gita, Vedas, e outras literaturas das outras grandes religiões não servem para nada..... São textos menores de hereges perdidos nas trevas e na ignorância. O único livro a encerrar toda a necessidade moral e espiritual do homem pertence aos cristãos...... Parênteses. Disto surge a idéia : que bom seria se todos fôssemos cristãos, não? Se pudéssemos extirpar o câncer que os pecadores representam à humanidade, e deixarmos os cristãos herdarem a terra, com certeza o mundo seria um paraíso, um lugar de amor, conciliação, paz e harmonia, não é mesmo?... Mas peraí, a cristandade não existe há séculos? A doutrina e os ensinamentos não existem há séculos? Sim, mas o que se vê estudando este histórico são, principalmente, cenários de intolerância, perseguições, guerras, tortura e morte. Então...(melhor deixar isto prá lá) . Fecha parênteses.

Mas voltando à Bíblia : é interessante perceber que as pessoas que têm o conteúdo do livro sagrado como única argumentação não possuem a mínima cultura que as esclareça como tal coletânea foi formada, sob quais regras foi composta, que interesses refletiu. E mais, falta cultura e conhecimento também no que se refere às próprias origens do cristianismo. Por exemplo: de onde sairam muitas das parábolas, dos ritos, das histórias e verdades reproduzidas hoje em qualquer templo de esquina? Com certeza estas pessoas teriam um baque enorme ao saber que muito do que é colocado como verdades cristãs nada mais são do que cópias quase que literais de religiões e tradições mais antigas (vide a própria história do nascimento milagroso, reis magos e outras). Mas saber disto, ter este conhecimento, ter esta cultura histórica, invalida o conteúdo da Bíblia? O livro passa a ser um festival de mentiras inúteis e estéreis? Perde o caráter sagrado? Para mim não, apesar de, quem sabe, ter deixado esta impressão ha pouco. Para mim, a Bíblia mantém o caráter de livro santo assim como qualquer outra obra da literatura universal que busque a reconexão do homem com o Divino - O que não pode ser aceito é que qualquer excerto destas obras antigas seja usado como prova incontestável de alguma pretensa verdade universal que pregue a discriminação e a intolerância entre os homens-

Reafirmo : a Biblia e as obras sagradas de todas as religiões e filosofias estão disponíveis para auxiliar aqueles que buscam trilhar o caminho espiritual. São fontes de conhecimento, inspiração e meditação mas não encerram em si o início, meio e fim da verdadeira transcendência,. Por isto qualquer fato histórico ou argumentação que queira desmascarar ou ratificar a Bíblia (ou qualquer outro livro santo); que queira provar que um ponto de vista é o único certo (muitas vezes baseado em textos das próprias escrituras), ou que uma religião é mais correta do que outra, se torna irrelevante quando atingimos a verdadeira religiosidade.

Falo daquela religiosidade interior desassociada de qualquer denominação, daquela religiosidade maior que une coração e mente. Que integra. Religiosidade de pensamento isento de qualquer gesso, onde o espírito manifesta o “religare” livre de conceitos ou preconceitos. Religiosidade de acolhimento, onde a convivência, ratificação e celebração das diferenças acontecem. Onde o julgar e a condenação (explícita, parcial ou velada) inexistem. Que inclui verdadeiramente o outro como ele é. A religiosidade do respeito consigo próprio e com demais, onde cada um é incensado no seu individual, na sua felicidade de ser uno, de ser íntegro (independente da sua sexualidade ou qualquer outra característica)....

O encontro com este “religare”, além das aparências e das convenções sociais, é um processo doloroso pois prevê sairmos no nosso estupor, da nossa zona de conforto pré-formatada e questionarmos, quebrarmos paradigmas, mexermos com o que nos foi servido, destruirmos “muros de verdades”. É doloroso, mas afirmo que o que resulta é uma reconstrução moral e espiritual baseada numa tranquilidade, numa serenidade de conexão com o superior que proporciona uma visão maior e onde discussões como estas passam a ser apenas objetos de contemplação e lamentação.