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Saturday, March 10, 2012

A Ausência que seremos - Hector Abad

Hector Abad
(... Este livro é a tentativa de deixar um testemunho dessa dor, um testemunho ao mesmo tempo inútil e necessário. Inútil, porque o tempo não volta atrás, nem os fatos se modificam; mas necessário, pelo menos para mim, porque minha vida e meu ofício perderiam o sentido se eu não escrevesse o que sinto que devo escrever, e que, em quase vinte anos de tentativas, não fui capaz de escrever, até agora..."  Hector Abad - A Ausência que seremos )

Acabei de Ler “A ausência que seremos” , de Héctor Abad, que conta a bela história de vida e a trágica morte de seu pai, Abad Gomez, renomado médico sanitarista, humanista , pensador liberal colombiano, assassinado por sicários a mando de um conjunto de forças políticas, militares, paramilitares, religiosas e elitistas (ou teve seu “cérebro eliminado”, conforme diria Carlos Castano, chefe das Autodefesas Unidas da Colombia – perseguidor e assassino confesso daqueles que eram considerados como “perigo para a sociedade).

Abad desde sempre acreditou que muitas das causas das mazelas da sociedade (violência, doenças, subdesevolvimento, ignorância, atrasos, etc) tinham raízes nas condições miseráveis na qual boa parte da parcela da população colombiana vivia. E para lutar contra isto, dedicou muito da sua vida a desenvolver projetos e campanhas para implementação de saneamento básico, acesso à saúde e educação para populações carentes.

Porém, por esta militância pelas causas dos direitos humanos (de forma liberal e independente), Abad passou a ser mal visto e alvo de perseguição, calúnia e difamação tanto da direita, como da esquerda e de religiosos.

Tudo culmina com sua morte em 1987 que vem a ser mais uma numa cadeia assustadora de assassinatos de intelectuais cometidas naquele período terrível.

Mas o livro não tem “apenas” este caráter político e, o que realmente fascina é a dimensão humana de Abad como pai.

Hector diz que o “A ausência...” é o anti “Carta ao Pai” do Kafka. Tudo aquilo que Kafka registra como uma criação recheada de desamor, indiferença, tortura e sofrimento – num contundente acerto de contas paterno -, Hector traduz em seu pai como amor, dedicação e aceitação incondicional da natureza dos filhos.

“A ausência...” é uma escrita que proporciona conhecimento histórico e social da Colombia, mas também, principalmente, a oportunidade de termos contato com a sabedoria deste homem especial e iluminado que foi Abad Gomez.

É difícil destacar algumas partes deste livro único, mas selecionei algumas que transcrevo abaixo :

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Aceitação incondicional dos filhos, Natureza Humana e Dissimulação da Personalidade 
( acredito que poucos pais pensam assim)

Antes Hector fala sobre sua adolescência na qual ele estava bem perdido em relação a várias questões, inclusive sexuais.

“ O que eu sentia com mais força era que meu pai confiava em mim fizesse o que eu fizesse, e também que depositava em mim grandes esperanças (sempre apressando-se a dizer que eu não precisava conseguir nada na vida, que minha simples existência bastava para sua felicidade, minha existência feliz, fosse como fosse).


Isso significava, por um lado, certa carga de responsabilidade (para não trair essas esperanças nem frustrar essa confiança), certo peso, mas era um peso suave, não uma carga excessiva, pois qualquer resultado, por menor e mais ridículo que fosse, sempre lhe agradava.


Em matéria sexual foi sempre muito aberto, como no episódio da masturbação e em outros que não vou contar, porque não há nada mais incômodo que misturar o sexo com os pais. Imaginamos nossos pais sempre assexuados, e, como diz um amigo meu, achamos que "as mães nem sequer fazem xixi".


(...)


Eu podia falar com meu pai sobre todos esses assuntos íntimos, e consultá-lo diretamente, porque ele sempre me escutava, sem se escandalizar, com calma, e respondia num tom amoroso e didático, nunca de censura.


No meio da minha adolescência, na escola masculina onde eu estudava, começou a me acontecer uma coisa que achei muito estranha e que me atormentaria por anos a fio. A visão dos genitais de meus colegas, e seus jogos eróticos, me excitava, e cheguei a pensar angustiado que era maricas.


Contei essa minha preocupação ao meu pai, cheio de medo e de vergonha, e ele me respondeu, sorrindo, muito tranquilo, que ainda era cedo para saber definitivamente, que era preciso esperar até ter mais experiência do mundo e das coisas, que na adolescência estamos tão carregados de hormônios, que tudo pode ser motivo de excitação, uma galinha, uma burra, umas salamandras ou uns cachorros copulando, mas que isso não queria dizer que eu fosse homossexual.


Mas acima de tudo deixou claro que, se assim fosse, também não teria a menor importân¬cia, desde que eu escolhesse o que me fizesse feliz, o que minhas inclinações mais profundas me indicassem, porque não devemos contrariar a natureza com que nascemos, seja ela qual for, e ser homossexual ou heterossexual era como ser destro ou canhoto, só que os canhotos eram um pouco menos numerosos que os destros, e que o único problema que eu poderia ter, caso me definisse como homossexual, não era nada de insuportável, apenas uma certa discriminação social, num meio tão obtuso como o nosso, que também poderia ser contornada com doses iguais de indiferença e de orgulho, de discrição e de escândalo, e principalmente com senso de humor, porque a pior coisa na vida é não ser o que se é, e disse essas palavras com uma ênfase e uma firmeza que vinham do fundo mais profundo da sua consciência, e advertindo-me de que, em todo caso, o mais grave, sempre, o mais devastador para a personalidade, eram a simulação ou a dissimulação, esses males simétricos que consistem em aparentar o que não somos ou esconder o que somos, receitas infalíveis para a infelicidade, e também para o mau gosto.


Em todo caso, disse, com uma sabedoria e uma generosidade que até hoje lhe agradeço, e com uma calma que ainda agora me acalma, que eu devia esperar um pouco para ter mais contato com as mulheres e ver se com elas não sentia a mesma coisa, ou mais e melhor”

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Abad Gomez fala sobre injustiça social, o comportamento das elites que querem manter o estado das coisas, a inconsciência dos prejudicados e a luta das pessoas eticamente superiores.

"Uma sociedade humana que aspira a ser justa tem de oferecer as mesmas oportunidades de ambiente físico, cultural e social a todos os seus membros. Se não o fizer, estará criando desigualdades artificiais. São muito diferentes os ambientes físicos, culturais e sociais em que vivem, por exemplo, os filhos dos ricos e os filhos dos pobres na Colômbia.


Hector e familiares estarrecidos
diante do corpo morto do pai
Uns nascem em casas limpas, com bons serviços, com bibliotecas, recreação e música. Outros nascem em barracos, ou em casas sem serviços sanitários, em bairros sem brinquedos, nem escolas, nem assistência médica.


Uns frequentam luxuosos consultórios particulares; outros, abarrotados postos de saúde. Uns vão a escolas excelentes. Outros, a escolas miseráveis.


São-lhes oferecidas assim as mesmas oportunidades? Muito pelo contrário. Desde o nascimento, vivem em injusta desvantagem.


(...)


Essas são verdades irrefutáveis e evidentes, que ninguém pode negar. Por que nos empenhamos, então — negando essa realidade —, em conservar o estado de coisas?


 Porque o egoísmo e a indiferença são características dos cegos às evidências e dos satis¬feitos com suas próprias vantagens, que negam a desvantagem dos demais.


Não querem ver o que está à vista de todos, para assim manterem seus privilégios em todos os campos.


O que fazer diante dessa situação? A quem cabe agir?


E claro que quem deveria agir são os prejudicados. Mas eles, em meio às suas necessidades, angústias e tragédias, dificilmente têm consciência dessa situação objetiva, não a interiorizam, não a tornam subjetiva.


Por mais paradoxal que pareça — mas a história mostra que tem sido assim —, cabe a alguns daqueles que a vida pôs em melhores condições despertar os oprimidos e explorados para que reajam e tentem mudar as injustas condições que os prejudicam.


Foi assim que ocorreram as mais importantes mudanças nas condições de vida dos habitantes de muitos países, e estamos sem dúvida vivendo uma etapa histórica em que, por todo o mundo, há grupos de pessoas eticamente superiores que não aceitam como um fato natural a perpetuação da desigualdade e da injustiça.


Sua luta contra o establishment é uma luta dura e arriscada. Têm de enfrentar a resistência e a ira dos grupos poli tica e economicamente mais poderosos. Têm de enfrentar consequências, com o prejuízo de sua própria tranquilidade com seus interesses individuais, abdicando de alcançar o chamado 'sucesso' na sociedade estabelecida."

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Hector reflete sobre a escrita do seu próprio livro.


Capa da edição nacional
"É possível que tudo isto não sirva de nada; nenhuma palavra poderá ressuscitá-lo, a história de sua vida e de sua morte não dará novo alento a seus ossos, não trará de volta suas gargalhadas, nem sua imensa coragem, nem sua fala convincente e vigorosa, mas mesmo assim eu preciso contá-la.


Seus assassinos continuam livres, a cada dia são mais e mais poderosos, e minhas mãos não podem combatê-los.


Somente meus dedos, afundando tecla após tecla, podem dizer a verdade e declarar a injustiça.


Uso a mesma arma que ele: as palavras.


Para quê?


Para nada; ou para a mais simples e essencial das coisas: para que saibam."

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Poema de Borges, transcrito a mão por Abad e encontrado no seu bolso no dia da sua morte.


Capa da edição em ingles.
Mostra Hector e o pai
"Já somos a ausência que seremos.
O pó elementar que nos ignora, que foi o rubro Adão,
e que é agora todos os homens, e que não veremos.
Já somos sobre a campa as duas datas do início e do fim.
O ataúde, a obscena corrupção que nos desnude,
o pranto, e da morte suas bravatas.
Não sou o insensato que se aferra ao som encantatório do seu nome.
Penso com esperança em certo homem
que não há de saber o que eu fui na terra.
Sob o cruel azul do firmamento consolo encontro neste pensamento."





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