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Thursday, January 17, 2013

Livro–Podemos dizer adeus mais de uma vez (David Servan-Schreiber)


David Servan SchreiberMichel de Montaigne (1533-1592): “Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento”.

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David Servan-Schreiber (21 de abril de 1961 – 24 de julho de 2011) foi um psiquiatra francês que alcançou fama mundial com a publicação do livro “Anticancer” (2008), traduzido para mais de 40 lingua, no qual relata sua passagem pelo câncer cerebral e sua estratégia de complementar o tratamento clássico – cirurgia, quimioterapia e radioterapia – com tratamentos experimentais e técnicas de modelação das defesas naturais através do controle emocional (ioga, meditação), exercícios físicos e alimentação.

Disse ele então : "Eis o que aprendi: se todos temos células cancerosas dentro de nós, temos também um corpo preparado para frustrar o processo de formação de tumores. Compete a cada um de nós utilizá-lo"

Servan-Schreiber afirmou que nós podemos estimular nossas defesas naturais contra esse mal, que "é mais uma questão de estilo de vida que de genes”.

Pois bem, em Maio de 2010 Schreiber voltou a ter alguns sintomas. Buscou seu médico e tomou conhecimento, em Junho de 2010, do resultado de uma ressonância magnética onde “As imagens mostravam uma esfera gigantesca, totalmente vascularizada, no meu lobo frontal direito, que preenchia a cavidade aberta pelas duas operações a que me submetera muitos anos antes. Meu oncologista hesitava. Não achava que se tratasse de uma recidiva do tumor. Tendia a acreditar que fosse um edema impressionante, formado tardiamente em reação a uma radioterapia anterior. Mas não estava seguro.”David Servan Schreiber

Depois veio o veredito : “ o diagnóstico era categórico : não era um edema, era uma recaída do tumor”

A partir daí Serva, reiniciou sua luta contra o maligno, porém desta vez ciente de que tudo seria mais difícil e que as chances de sucesso eram ínfimas.

“Podemos dizer adeus mais de uma vez”, narra a trajetória de Schreiber desde o novo diagnóstico até dois meses antes de sua morte, quando a doença já lhe roubara a voz e quase todos os movimentos.

Como um longo ritual de adeus, o livro traz poderosas reflexões do psiquiatra em relação a doença, escolhas e atitudes de vida, família, relacionamento amoroso, dor, medo, conforto, afeto, religiosidade, questões práticas que envolvem “o morrer”, e muito mais.

Tratando de um assunto tabu “Podemos dizer...” é, como afirmou o Paris Match “Um manual de vida estarrecedor. Para ler, reler, reler de novo, meditar e remeditar. Honesto até o fim”.


Trechos do livro :

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CALMA INTERIOR
 
David Servan SchreiberQuantas vezes ouvi meus amigos dizerem: "Cuide-se." Eles sabiam que eu corria o mundo, encadeando sem interva­los conferências, entrevistas, projetos. A preocupação deles era de que eu me sobrecarregasse.

Eu os tranquilizava, dizendo: "Tem razão, vou desacelerar." Mas não fazia isso.

Muitas vezes afirmei praticar tudo aquilo que recomendo em Anticâncer. É verdade de modo geral, a não ser num pon­to: impondo-me um ritmo de trabalho estafante e, no todo, excessivo, não cuidei suficientemente de mim, durante muitos anos. Esse esgotamento remonta na verdade à publicação de meu livro anterior, Curar... As demonstrações de interesse e reconhecimento que recebi me deixaram tão feliz, que me en­treguei de corpo e alma à defesa daquelas ideias. Peguei o cos­tume de viajar pela França, pela Europa, mas também à Ásia, aos Estados Unidos, ao Canadá. Obriguei-me a passar por inúmeros fusos horários, cujo efeito negativo sobre o sistema imunológico todos conhecem, o que ocorre por meio da pro­dução de hormônios de estresse, como o cortisol, e por meio da perturbação dos ritmos naturais básicos.

Esse grande desregramento de meus ritmos biológicos culminou no ano passado com a recaída. O livro Anticâncer fora muito bem recebido nos Estados Unidos, e eu estava sen­do constantemente solicitado pela imprensa. A defesa daquelas concepções me deixava tão envolvido, que eu pura e sim­plesmente esqueci de me poupar. Em 2009-2010, fiz em média uma viagem por mês entre as duas costas do Atlântico, e uma ou duas viagens por semana pela França ou pela Euro­pa. Era demais. No fim do ano, eu estava literalmente esgota­do. Foi na sequência disso que o tumor reapareceu.

Com o recuo da doença, acho que fui impelido por uma vontade muito humana de esquecer a minha
condição, de me sentir "normal", de levar a vida "como todo mundo". Acho, principalmente, que me deixei levar por uma espécie de pecado do orgulho, pois cheguei a me sentir quase invulnerável. Ora, nunca se deve perder a humildade diante da doença. Ninguém tem nenhuma arma invencível contra ela, e as melhores técni­cas da medicina moderna podem ser derrotadas. É um grave erro esquecer até que ponto a biologia é determinante.

Embora precisasse continuar humilde, cometi o erro de acreditar ter encontrado a fórmula mágica que me permitiria continuar saudável mesmo me entregando de corpo e alma aos projetos que me apaixonavam.

Tive a fraqueza de acreditar que estava protegido pelo simples fato de respeitar certo nú­mero de precauções: cuidava da alimentação, andava todos os dias de bicicleta, meditava um pouco e fazia um pouco de ioga todos os dias. Acreditei que isso me daria licença para ignorar necessidades fundamentais do meu organismo, como o sono, ritmos regulares e repouso.

Capa Podemos dizer adeus mais uma vez.inddEm retrospectiva, o erro me salta aos olhos. Embora eu não represente uma "experiência científica" única, acredito que é possível extrair, legitimamente, algumas lições da minha desventura: não devemos nos esgotar, não devemos nos sobre­carregar. Uma das proteções mais importantes contra o câncer consiste em encontrar certa calma interior. Não ignoro que para todos aqueles que exercem profissões difíceis, que traba­lham à noite, por turnos de oito horas, esse conselho não é facilmente aplicável. Assim como não o é para os que têm fi­lhos pequenos ou adolescentes, ou então para os que precisam viajar muito.

Pessoalmente, não consegui encontrar essa calma, e hoje me arrependo. Não soube ficar perto da natureza e dos ritmos naturais. Estou intimamente convencido de que frequentar bosques, montanhas, rios é uma prática que possibilita recarre­gar incrivelmente as baterias, talvez por permitir que a gente se baseie no ritmo das estações, o que deve contribuir para o equi­líbrio e a cura do organismo. Não conheço estudos científicos que respaldem essa intuição. Mas a ideia de que a harmonia com a natureza é um dos meios de alimentar a saúde do corpo é coerente com toda uma série de verdades estabelecidas.

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CONSEGUIR REALIZAR A TRAVESSIA

A terceira questão que se apresenta para mim hoje em dia é a da morte. Há vinte anos vivo com essa “Espada de Dâmo­cles" sobre minha cabeça e tive várias oportunidades de pensar no assunto.
  • Nota : * Dâmocles era um cortesão que invejava o poder dos tiranos. Para fazê-lo entender os perigos desse poder, Dionísio (tirano de Siracusa) ordenou que, durante um banquete, ficasse suspensa sobre a sua cabeça uma espada pesadíssima, presa a uma simples crina de cavalo. Essa imagem é usada para indicar os grandes perigos que ameaçam cair sobre nós a qualquer momento.
Evidentemente, enquanto investia muito nas ati­vidades que me davam satisfações profundas, minha atenção era em grande medida desviada das questões supremas. Mas nunca deixei de me perguntar: "Quando a coisa voltar, será que eu vou ter tanto medo como da primeira vez? Ou será que as novas prioridades da minha vida, todas as lições essenciais que aprendi quando fui jogado no fogo, vão me ajudar a en­frentar essa prova com calma?"
David Servan SchreiberHoje, que estou mais perto desse acontecimento do que nunca, percebo que reajo no conjunto como vários pacientes que tratei como psiquiatra, doentes de câncer ou de outras patologias, que deviam enfrentar a perspectiva da morte. Como muitos deles, tenho medo de sofrer, não tenho medo de morrer. O que temo é morrer no sofrimento. Esse medo é geral, parece-me, em todos os seres humanos e até mesmo nos animais.

Na outra noite, estava na cama, deitado do lado esquer­do, ou seja, o lado atualmente prejudicado pela progressão do câncer. Queria me virar e não conseguia. Sentia uma espécie de entorpecimento que tomava conta de meu corpo. De re­pente, tive medo de que aquele entorpecimento progredisse, de que atacasse meus músculos torácicos e acabasse por impe­dir minha respiração. Pensei: se não conseguir respirar, vou morrer. Vou morrer aqui, agora, nesta noite, desse jeito, sem ninguém por perto, sem ninguém que saiba o que está aconte­cendo. Então tive muito medo.

Depois, rapidamente, eu me disse que, afinal, aquele en­torpecimento não era de todo desconfortável. Comparado com as dores violentas que eu sofrera nos dias anteriores, era uma sensação amena, envolvente, progressiva, como quando estamos fora e faz muito frio. Se eu tivesse de morrer daquela maneira, e não um ano depois de passar por provações infer­nais, no fundo não seria ruim. Aquele pensamento me apazi­guou tanto, que adormeci. Ao acordar na manhã seguinte, evidentemente estava respirando... E, sobretudo, aprendera que podia viver aqueles instantes a salvo do terror.

Muitas vezes assisti meus pacientes no momento em que a esperança de cura ou de alívio dos sintomas se transmuda em outra realidade, a realidade da morte iminente. Tive o privilé­gio de observar como então eles entram em outro tipo de es­perança, o de "morrer bem". E uma questão extremamente importante e um objetivo muito legítimo. Afinal de contas, a trajetória da vida leva à morte, desemboca na morte, e gosto de pensar, como muitos filósofos, que a vida é uma longa preparação para esse instante soberano.

Depois que a gente desis­te de lutar contra a doença, resta ainda um combate para tra­var, o combate para morrer bem: ter a capacidade de dizer até logo às pessoas a quem precisamos dizer até logo, de perdoar as pessoas que precisamos perdoar, de pedir perdão às pessoas pelas quais precisamos ser perdoados. Deixar mensagens, arru­mar as coisas. E partir com um sentimento de paz e "conexão".
David Servan Schreiber
Ter a possibilidade de preparar a partida é, na verdade, um grande privilégio. Os noticiários de televisão, com o seu grande número de acidentes e catástrofes, nos lembram todas as noites que a morte violenta pode surgir a qualquer instante, ceifando repentinamente a vida de suas vítimas e privando seus parentes da etapa tão preciosa do adeus.

Podemos nos preparar para esse momento crucial com a ajuda de bons "aliados": médicos, advogados e, claro, amigos e familiares. Essa provação eu sinto como vital, e para mim é também uma fonte de esperança transpô-la com sucesso. De­pois disso, o que acontecerá "do outro lado"?

Não sei.

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TESTAMENTO GRATIFICANTE

A tarefa mais difícil e mais temível, sem dúvida, consiste em tomar as decisões referentes ao futuro dos filhos. É preciso se sentar com o cônjuge e dizer: "Sabe, preciso falar com você sobre um assunto difícil... Não sei quanto tempo ainda vou estar por aqui. E querer tapar o sol com a peneira fazer de conta que vai correr tudo bem. Há coisas que a gente pode prever para nossos filhos. Se você concordar, fique sabendo que para mim é mais tranquilo falar disso, saber que as coisas estão em seus devidos lugares. E só você pode me ajudar a fa­zer isso." David Servan Schreiber

É uma conversa emocionante, profundamente tran­quilizadora também. Sou testemunha disso. O fato de não estar mais aqui para ver meus filhos crescer e para protegê-los é motivo de grande dor para mim. A única ideia que tem o poder de me tranquilizar é que os deixo com urna excelente mãe, que saberá amá-los e protegê-los.

Nesses instantes carregados de emoção, deve-se tentar não "exagerar na dose", evitar cair na armadilha do sofrimen­to patético. É natural pensar na dor dos que ficam, porém sentimentalismo demais pode provocar ideias pessimistas, que são inúteis e perniciosas. Concentrar-se no aspecto prá­tico, ao contrário, é muito benéfico, pois a ação concreta é sempre preferível às ruminações negativas. Pode-se falar dos funerais, do lugar onde se quer ser enterrado, do testamento.
Essas questões geram muito menos angústia do que se pensa.

Fiquei muito surpreso ao descobrir até que ponto a reda­ção de um testamento pode ser gratificante. Ela cria um senti­mento de domínio total e, ao mesmo tempo, de generosidade, doação, transmissão. Também me lembro de uma conversa recente com meu irmão Edouard, em que demos muita risada enquanto fazíamos uma lista das músicas e canções que seriam tocadas enquanto — não tenho pressa... — eu estivesse agonizando.

Confesso que me ocorre com frequência pensar no meu enterro, mas não de um modo mórbido. Se ousasse, quase es­creveria o roteiro de meus funerais. Com todos aqueles parti­cipantes que estarão de ótimo humor e dirão tantas palavras gentis a meu respeito, com uma atmosfera transbordando de benevolência.

Nada de polêmica agressiva, nada de ataques gratuitos. Esse será como que o ponto culminante de minha vida, uma espécie de apoteose. Que pena ser o único que não assistirá a tal evento! Mas até agora resisti à tentação e me abs­tive de ditar essas instruções. Será que estou realmente na me­lhor posição para cuidar desses detalhes?

Minha longa experiência na assistência a moribundos talvez me tenha endurecido um pouco diante do terror da morte. No entanto, não esqueço que se pode perder toda a bela serenidade na hora H. Embora tenha visto muita gente apagar-se tranquilamente, às vezes vi algumas pessoas, às quais não faltava coragem, morrerem em meio à angústia. Não está excluída a possibilidade de isso me acontecer também. Vou evitar ser arrogante nesse ponto. E peço aos meus entes queri­dos que não me queiram muito mal se perceberem que senti medo às portas da morte.

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LUZ BRANCA
 
David Servan Schreiber

Avistando seus entes queridos já falecidos na auréola da luz de amor, os "viajantes" dessas experiências de quase morte só tinham uma vontade: ficar "do outro lado". Explicavam que, nos dias e nas semanas anteriores, aqueles seres amados tinham começado a aparecer em seus sonhos ou a fazer-lhes visitas como "fantasmas" amistosos, ou então a insinuar-se em seus pensamentos involuntários.

Era como se quisessem prepará-los para a grande passagem. E, chegado o dia, aqueles avós, pais, irmãos ou esposos falecidos estavam ali, no fim do túnel, para acolhê-los. Meus pacientes ficavam tão contentes por reencon­trá-los! Mas alguém dissera: "Você não está pronto, precisa vol­tar para a terra." E eles tinham acordado na cama do hospital, com a impressão terrível de terem sido expulsos do paraíso.

Embora espantado, sobretudo no início, com essas histó­rias de além-túmulo, sempre me abstive de considerar que aqueles pacientes estavam "loucos". Em psiquiatria, o concei­to de "loucura" é bem preciso. Refere-se a crenças e comporta­mentos que 1) não são necessários ao funcionamento da pes­soa e 2) causam-lhe prejuízo. Portanto, não basta que alguém demonstre ter crenças e comportamentos inabituais para me­recer o qualificativo de "louco". Pode tratar-se de alguém que esteja um pouco "à margem" de sua época (um excêntrico, um artista etc.), ou mesmo "à frente" dela (um visionário).

Tomemos o caso de Jesus — ou de Sáo Paulo, Maomé e de uma infinidade de outros profetas. Um psiquiatra um tanto limitado diria que Jesus era esquizofrênico, porque tinha vi­sões e ouvia vozes; ou que era bipolar ou maníaco-depressivo porque alternava episódios de exaltação e períodos de abati­mento. Então, caberá achar que Jesus era um psicótico? A questão parece pertinente principalmente porque suas ideias e ações lhe valeram um fim pouco desejável, o que corresponde ao segundo critério de definição da loucura.

Na minha humilde opinião, seria melhor abandonar es­sas concepções estreitas e redutoras, e ver em Jesus um grande espírito muito à frente de seu tempo e talvez de todos os tem­pos. Quanto às pessoas que "atravessam a morte", estas voltam às vezes com crenças que as tornam mais fortes. Disso eu não concluiria por certo que é lícito acreditar em qualquer balela, desde que ela nos dê ilusão de força. Mas deixar de ser aterro­rizado pela morte já é algo apreciável! Essas experiências, no mínimo pelo recurso que oferecem contra a angústia, já mere­cem ser estudadas. Para um cientista, aliás, elas constituem os únicos dados disponíveis sobre uma realidade fundamental e difícil de discernir.

Num plano mais íntimo e mais modesto, posso dizer que, na etapa desconfortável em que me encontro hoje, esses testemunhos me parecem mais preciosos que nunca. Aceito sua inevitável dimensão misteriosa ou "mística". Em compen­sação, nelas não encontro nenhum argumento a favor deste ou daquele dogma religioso.

No fundo, o que essas ideias têm de tão satisfatório para mim é que oferecem uma visão da morte compatível com mi­nha profunda e eterna necessidade "relacional". Estar ligado a pessoas sempre foi de importância capital para o meu modo de ser. Quando fiquei sem isso, mesmo que transitoriamente, mergulhei rapidamente na tristeza e senti que minha energia vital evaporava. A morte, se for vista como um rompimento de todas as relações, para mim se torna uma visão de pesadelo: ao perder a vida, eu perderia todo e qualquer elo com o húmus que me alimenta, estaria condenado à solidão absoluta... Tam­bém não ignoro a suposição de que os mortos não sentem nada. Mas a ideia da escuridão deserta e isenta de amor me petrifica.

Ao contrário, a perspectiva de me reunir ao conjunto das almas humanas e animais num universo banhado de luz, in­tercâmbio e amor tem tudo para me deixar feliz. Evidente­mente, nada prova que as visões que ocorrem nesse tipo de experiência sejam reflexo de uma "realidade" qualquer. Pode muito bem ocorrer que nada mais sejam senão a atividade alu­cinada de um punhado de neurônios anarquizados pelo co- quetel químico do óbito. Mas, no ponto em que estou, prefiro Ímàgímr que minha morte se parecerá com o famoso túnel que desemboca na luz branca. Seria maravilhoso ser acolhido pelas ondas luminosas de amor e por todas as pessoas que tan­to amei e que morreram antes de mim, meu pai, minha avó e aquele avô que eu adorava.

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DO AMOR

David Servan SchreiberDesde que o braço e a perna do lado esquerdo ficaram paralisados, e os sintomas não parecem querer ceder, eu me digo que o câncer pode acelerar a qualquer momento. Portanto, está na hora de fazer um balanço da minha vida. O que fiz de bom e de menos bom? No que tive sucesso, no que fracassei?
O campo em que tive menos sucesso, devo confessar, foi o do amor. Por alguma razão misteriosa, não soube amar as mulheres como gostaria de ter amado. É como se eu tivesse ficado tempo demais na superfície — nem sempre, de todo modo. É um de meus maiores pesares.

Quando eu era muito jovem, tinha a cabeça cheia de ideias imbecis sobre o assunto. Para mim, amor era coisa que o homem impunha à mulher, pois ela era por essência recalci­trante. O único modo de agir era subjugá-la. Uma história de amor era em primeiro lugar uma história de conquista, depois uma história de ocupação. Pura relação de força, na qual o homem tinha interesse em se manter na posição dominante. Nem pensar em "deixar-se levar", mesmo depois de ela se ren­der. Como a dominação era ilegítima, ele devia "vigiar" cons­tantemente sua conquista, devia mantê-la sob sua influência, se quisesse evitar que ela se rebelasse. Impossível imaginar uma ralação harmoniosa, uma relação baseada na troca ou numa igualdade qualquer dos parceiros.

Ainda me pergunto de onde me vinham aquelas ideias idiotas que deterioraram minhas histórias de amor até por vol­ta dos meus 30 anos. Com aquela concepção imperialista na cabeça, eu me esforçava por me comportar como potência ocupante. Minha busca amorosa se resumia à procura de um território para conquistar. Resultado: eu amava, às vezes lou­camente, mas não era amado. Ou melhor, mesmo quando era amado — isso às vezes acontecia —, eu não me autorizava a me sentir amado. Porque nesse caso precisaria depor as armas e concordar em deixar de ser o mandachuva.

As histórias que vivi naquela época de grande imbecili­dade me deixaram um tremendo gosto de frustração.
Por exemplo, eu tinha a íntima convicção de que as mulheres são feitas de tal modo que não se interessam absolutamente pelo amor físico. Mas não havia só o sexo. Achava que elas na rea­lidade não se interessam por nada. Que só medianamente sentem gosto por sair para passear, assistir a um filme ou jan­tar num restaurante simpático. Quanto a mim, ao contrário, era capaz de sentir verdadeiro prazer em sair para namorar, jantar fora...

Está claro que alguma mulher podia ficar felicíssima em compartilhar essas coisas comigo e até ter muita vontade de fazer amor. Mas eu mantinha o rumo imperialista inflexivel­mente. Nem pensar em me deixar comover, muito menos influenciar.

Que tristeza ter perdido unto tempo e tantas oportuni­dades de felicidade! Vinte anos depois, ainda resta alguma coi­sa: minha mulher muitas vezes se queixa de que eu não sei me deixar amar... Felizmente, acabei me desvencilhando daquelas ideias grotescas. Por volta dos 30 anos, dei um salto quântico que me projetou a anos-luz, num universo encantado em que as mulheres são dotadas de inteligência e conseguem compar­tilhar comigo uma infinidade de interesses comuns. Parei de medir a mulher amada com o padrão de um modelo ideal pelo qual ela só podia sair perdendo. Entendi que o melhor, em amor e em tudo, é inimigo do bom, e que a procura da perfei­ção é danosa.

Finalmente fui capaz de viver verdadeiras histórias de amor com mulheres que eram iguais a mim, humana e intelec­tualmente. Consegui abandonar o frustrante papel de "tutor". Aprendi que há muito mais prazer em dar e receber do que em dominar ou impor-se pela sedução. Em suma, eu me tornei bastante aceitável em amor. Se bem que ainda me resta a im­pressão de às vezes estar perdido num território desconhecido cujos pontos de referência não conheço bem e cujos sinais nem sempre sei decifrar direito.

A descoberta metafísica do que pode ser uma relação amorosa mais autêntica trouxe-me uma recompensa inespera­da: por incrível que pareça, o espírito de igualdade no casal estendeu-se à minha relação com os meus pacientes. Comecei a ter com eles não digo uma relação de amor, mas em todo caso uma ligação afetiva e baseada no respeito. Que descoberta extraordinária para o médico jovem e arrogante que eu era! Já não precisava me obrigar a uma atitude de controle ou domi­nação. A relação podia ocorrer em mão dupla, e eu podia me enriquecer com toda a humanidade de meus pacientes...

Essa transmutação ocorreu paralelamente às tremendas provações pelas quais passei quando o tumor foi diagnostica­do. Descobrir-me frágil, mortal, sofrendo e apavorado foi algo que me abriu os olhos para o infinito tesouro da vida e do amor. Todas as minhas prioridades foram subvertidas, até a tonalidade emocional da minha existência. O fato é que me senti muito mais feliz depois do que antes, o que, de qualquer modo, é inesperado.

Senti também uma espécie de nascimento espiritual. Eu, que era o cientista típico, racionalista e ateu, Piquei de algum modo "em estado de graça". A provação me aproximara de Deus e tinha se tornado tão crucial para mim, que, quando eu fazia os exercícios de meditação, me surpreendia tentando fa­lar com Deus, comunicar-me com ele. Pedia-lhe que me man­tivesse naquele estado extraordinário de felicidade e abertura. Agradecia pela graça que a doença me trouxera. E prometia que utilizaria aquela luz para ajudar os outros na medida de meus meios.

Vivi aquela vida que se tornara incandescente e depois, inexplicavelmente, a perdi. Mais tarde, alguns místicos com quem discuti o assunto disseram que esse é um fenômeno bem comum: encontrar "a graça" e perdê-la. Alguns dedicam o res­to da vida tentando reencontrá-la...

Sou feliz por ter conhecido essa maravilha, mesmo que por pouco tempo. Quando penso no modo como minha vida foi transfigurada por ela, desejo que todos possam um dia co­nhecer essa experiência -— de preferência sem operar o cére­bro. No fundo, é o objetivo da psicoterapia, e é isso o que ela realiza quando "funciona". As pessoas que foram ajudadas por métodos eficazes como o EMDR (terapia baseada nos movi­mentos dos olhos), nas TCC (terapias cognitivo-comporta- mentais) ou na meditação, vivenciam algo da ordem de uma manifestação repentina, de um renascimento.

Estou convenci­do também de que esse objetivo pode ser igualmente atingido quando se adota um modo de vida respeitoso da ecologia glo­bal (a da natureza e a das relações humanas), modo de vida que chamo de "anticâncer". Expressei esse desejo no fim de meu livro: se evitarmos tudo o que estraga a vida e, ao contrá­rio, favorecermos tudo o que a alimenta, poderemos desenvol­ver os maravilhosos recursos ocultos no fundo de nós.

Tere­mos um olhar novo para o que nos cerca: a natureza, nossos filhos, nosso trabalho. Descobriremos nossa capacidade de dar com generosidade e de receber com gratidão. Tudo isso, que é fundamental, não está reservado só para as pessoas afetadas pelo câncer ou por outras doenças graves.

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