O padre francês Jean Meslier (1664 – 1729) deixou para a posteridade escritos que revelavam seu ateísmo e seu ódio aos poderosos de todos os tipos.
Sua filosofia da revolta era oriunda do seu testemunho e
vivência numa sociedade na qual o povo era explorado e ludibriado através de
“verdades” pregadas e impostas pelas autoridades dominantes (estado e
religião).
O livro “Ateísmo e
Revolta – Os Manuscritos do Padre Jean Meslier”, de Paulo Jonas de Lima
Piva, traça, de modo relativamente acessível, um panorama sobre a vida e ideias
de Meslier, o que nos permite ter contato com a filosofia deste homem extraordinário.
Em “Ateísmo e Revolta” Paulo
Jonas revela a verdadeira origem da frase "O homem só será livre quando
o último rei for enforcado nas tripas do último padre", erroneamente
atribuída a Diderot ou ao próprio Meslier.
Reproduzo aqui trecho do Capítulo III, “Deicídio e Materialismo : o Ser segundo Jean Meslier”, do livro de
Lima Piva, que dá uma geral na filosofia do padre e apresenta o verdadeiro
autor da famosa frase (na verdade uma corruptela da frase original), com alguns comentários meus, assinalados com **
No final do texto publico alguns
links para quem quiser saber mais sobre Meslier e mais algumas fontes
Jean Meslier |
“Deicídio e
Materialismo : o Ser segundo Jean Meslier”,
“Crer em Deus é
acreditar em Papai Noel, mas na enésima potência, ou antes, na potência
infinita.
André Comte-Sponville,
Apresentação da filosofia.
Com base sobretudo na crítica ao dualismo metafísico do
século XVII e no combate aos principais dogmas da escolástica e do
cristianismo, Jean Meslier e os demais pensadores da primeira geração francesa
dos escritores clandestinos das Luzes ( ** anteriormente no livro, Lima Piva
traça um histórico dos textos clandestinos anteriores ao Iluminismo) elaboraram
uma importante filosofia pessoal, não menos ambiciosa, aliás, do que as
doutrinas tradicionais e consagradas.
[...]
(** a seguir Piva apresenta todos os textos legado por
Meslier)
Paulo Jonas de Lima Piva - Doutor Filosofia USP |
Como vimos, as reflexões de Meslier que chegaram até nós
encontram- se reunidas nas Oeuvres
complètes, a qual compreende a Memória
dos pensamentos e dos sentimentos de Jean Meslier, as Cartas aos curas da
vizinhança, e o conjunto de notas de leitura referentes à Demonstração da existência de Deus, de
Fénelon, e às Reflexões sobre o
ateísmo, do padre Tournemine, intitulado posteriormente de Anti-Fénelon.
Nesses textos, o autor registrou o que poderíamos chamar
seguramente de sua filosofia, valendo-se de sua experiência existencial e das
ponderações resultantes das suas leituras [...].
O propósito deste capítulo é expor finalmente os argumentos
mais relevantes do materialismo ateu e anticristão de Meslier desenvolvidos ao
longo de sua obra, esta, de acordo com Maria das Graças de Souza "um conjunto de textos de conteúdo muito
radical, e, embora escrito com pouca elegância e nem sempre com rigor, procura
efetuar a crítica de toda a tradição metafísica dualista, de todas as
religiões, sobretudo o cristianismo, e manifesta um ateísmo cujas fontes são
heterogêneas [...].
Isto posto, adotaremos como ponto de partida um exame
minucioso da Memória (ou Testamento), obviamente o seu texto mais
denso e expressivo.
[...]
MEMÓRIA DOS PENSAMENTOS E DOS SENTIMENTOS DE JEAN MESLIER
O título completo da "Memória"
é bastante elucidativo em seu excesso de extensão, esta, aliás, uma
característica comum aos tratados da época.
Trata-se, na verdade, de um título que é ao mesmo tempo um
abstract, no qual são anunciados os escopos do autor, e, por isso, vale ser
ressaltado:
"Memória dos
pensamentos e dos sentimentos de Jean Meslier, padre, cura de Etrépigny e de
Balaives, sobre uma parte dos erros e dos abusos da conduta e do governo dos
homens, onde se vê demonstrações claras e evidentes da futilidade e da
falsidade de todas as divindades e de todas as religiões do mundo, para ser
dirigida aos seus paroquianos após a sua morte e para servir-lhes de testemunha
da verdade e a todos os seus semelhantes".
O texto é constituído de dez partes, sendo uma longa e muito
importante apresentação, oito seções ou "provas", cada uma delas
demonstrações subdivididas em vários capítulos ou tópicos, e uma conclusão
geral.
Em tais "provas", as quais percorrem os três
volumosos tomos da obra, o padre aborda fundamentalmente temas relacionados à
religião, à metafísica e à política.
[...] na divisão mais detalhada das provas [...]
encontramos as seguintes teses, assim resumidas:
1* Prova: as religiões são invenções humanas;
2* Prova: a fé é um princípio de erro;
3* Prova: as pretensas visões sobrenaturais e revelações
divinas são falsas;
4" Prova: as promessas e profecias são ilusões;
5* Prova: a doutrina cristã em sua teologia e em sua moral é
absurda;
6* Prova: a religião em conluio com a política é a
verdadeira causa histórica da opressão e da miséria;
7* Prova: a ideia da existência de uma divindade é
quimérica, ou seja, Deus não existe;
8* Prova: a alma não é espiritual tampouco imortal, mas
material/corporal e mortal.
"APRESENTAÇÃO"
Três partes compõem a "Apresentação"
[...] da "Memória".
Na primeira delas, "Desígnio
da Obra", Meslier anuncia os objetivos do seu empreendimento, assinala
o seu caráter testamental, esforça-se para justificá-lo, e manifesta o seu
profundo mal-estar, trazendo à tona o seu drama de consciência em ter de
cumprir contra a própria vontade os deveres da sua condição de padre, o
principal deles, o de inculcar na consciência dos seus paroquianos, todos eles
ignaros e ingênuos camponeses, os dogmas bíblicos, dos quais discordava com
radicalidade e veemência.
Por temer as represálias dos seus superiores eclesiásticos,
a perseguição do senhor do vilarejo onde habitava e pregava e a condenação das
implacáveis instâncias repressivas do Antigo Regime, Meslier fez, como já é
sabido (** em capítulo anterior o autor discorre amplamente sobre a
tenebrosa situação social na qual Meslier viveu), a angustiante opção de não
tornar públicas, em vida, as suas opiniões acerca dos governos, das religiões e
dos costumes da humanidade, todas elas, aliás, de uma impressionante
contundência para um cura, o que poderia custar-lhe não apenas a excomunhão e a
perda do ofício, mas sobretudo a própria vida.
Meslier contava então com quase sessenta anos e já
pressentia a falência do seu corpo e a iminência da sua morte. De modo que
guardou para si, no mais absoluto segredo, registrados em manuscritos, as suas
reflexões e os seus sentimentos mais profundos de indignação e de repugnância
em relação à opressão e às injustiças sociais promovidas pelos poderosos contra
os humildes, e em relação aos erros doutrinários e aos embustes políticos
cometidos historicamente pelas religiões, em particular pela Igreja Católica.
A solução mais sensata e segura encontrada por ele em face
das adversidades daquele momento foi tornar póstumo o conhecimento dos seus
sentimentos e das suas ideias.
[...]
Dados os motivos que o levaram a sucumbir às obrigações do
seu ofício [...] Meslier volta-se para a natureza humana e relata a sua
experiência de convivência com os homens.
No seu entender, a paz, a bondade, a equidade, a verdade e a
justiça, ou seja, os valores humanistas tradicionais, seriam as características
mais amáveis e desejáveis do universo humano, "fontes inestimáveis de bens
e de felicidade".
Em contrapartida, a mentira, a injustiça, a impostura e a
tirania seriam o que pode haver de mais odioso, de mais detestável e pernicioso
no coração dos homens, causas estas de divisões, de depravações e gênese de
todos os vícios, de todas as maldades, misérias e infortúnios que sempre
afligiram a humanidade.
Meslier constata que é esse lado detestável e pernicioso do
ser humano, infelizmente, que sempre tem preponderado nas relações sociais.
Quanto mais velhos ficamos, quanto mais experiência e
conhecimento acumulamos, argumenta o padre, mais nitidamente percebemos a
cegueira e a maldade dos homens, os malefícios do obscurantismo e das
superstições e as injustiças dos governos inescrupulosos.
Verificamos cotidianamente, de forma inequívoca, uma
infinidade de pessoas inocentes e desditosas perseguidas sem razão e oprimidas
injustamente, sem ninguém para protegê-las.
Meslier acusa os "maus ricos" e os "grandes
da terra" por essa tirania e por tal abandono.
O tom do texto passa então da indignação para o desalento,
em última instância, da indignação para um certo pessimismo antropológico:
"As lágrimas de tantos justos aflitos e as misérias de tantos povos tão
tiranicamente oprimidos pelos maus ricos e pelos grandes da terra deram tanto a
mim quanto a Salomão, tanto desgosto e tanto desprezo pela vida, que eu
estimava como ele a condição dos mortos muito mais feliz do que a dos vivos
[..].
Para piorar ainda mais essa atmosfera humana sombria,
aqueles que se passam por sábios e piedosos, os quais, no seu entender, teriam
o dever de censurar e de se manifestar contra esses abusos, mostram-se
indiferentes, postura esta que na prática contribui decisivamente para a
manutenção e para o fortalecimento da ordem de iniquidades e de miséria.
Mas qual será a razão de tanta indiferença, de tanta omissão
e cumplicidade por parte dos sábios e dos pretensos piedosos? Por que tais
homens aprovariam uma ordem tão odiosa e desumana?
Perscrutando detidamente a conduta dos seres humanos e os
"mistérios secretos da fina e astuciosa política" Meslier concluiu
que muitos são os homens que ambicionam cargos de poder e de prestígio para se
sentirem honrados e respeitados, que muitos são aqueles que desejam governar,
que querem comandar com uma autoridade soberana e absoluta.
Dentre eles estão os mais esclarecidos e os aclamados os
mais samaritanos.
Em outras palavras, os sábios e os "protetores
caridosos" calar-se-iam diante da ordem de injustiças movidos
essencialmente pelo interesse egoísta de compô-la e dela se beneficiar.
A primeira parte da "Apresentação" da
"Memória" finda-se com um vínculo estabelecido por Meslier entre a
instrução e a ambição, entre o esclarecimento e a vaidade.
A maioria dos sábios seria ambiciosa e vaidosa, isto é,
seria ávida por poder e por adoração, tendo como objetivo supremo a reverência
servil dos humildes e a condução de um governo sem limites.
Isto faria deles santos ou até mesmo deuses.
A ambição como uma paixão determinante é, portanto, a
constatação inicial de Meslier em relação ao comportamento social dos homens.
Em última instância, é mediante a crítica de tal paixão que
ele constrói toda a sua refutação religiosa e política.
A questão da ambição continua na segunda parte da
"Apresentação", intitulada "Pensamentos e sentimentos do autor
sobre as religiões do mundo".
Nela, Meslier aprofunda a sua ponderação sobre essa paixão e
os seus desdobramentos.
No seu entender, a ambição seria a "verdadeira fonte e
a verdadeira origem" de todos os males que afligiram e que continuam a
afligir a humanidade, a causa fundamental das imposturas religiosas e das
atitudes tirânicas dos grandes da terra.
Ou seja, a ambição seria a raiz do ardil e da força de
alguns homens esclarecidos, porém, inescrupulosos, cujas vítimas são sempre os
povos ignaros, crédulos e indefesos, os quais se submetem pela fraqueza à
violência e pela falta de instrução aos embustes das superstições.
Impelidos por um desejo cego de poder, esses homens astutos
e desumanos tornam-se opulentos, poderosos, temidos e adorados, abusando assim
da ignorância, da credulidade e da pusilanimidade dos subjugados.
No caso específico da religião, a ambição estaria na base
das piores imposturas e embustes, tais como as idolatrias, a criação de
divindades, a consolidação de cerimônias absurdas, a sustentação de falsos
mistérios, a invenção de leis e de condenações divinas, as promessas de
paraísos, a consagração de santos, e a elaboração de teologias que procuram
legitimar os poderes eclesiástico e temporal.
Sem instrução, crédulos e tementes, os povos dão
assentimento a essas mentiras com facilidade e passam a ter suas fés
manipuladas não apenas pelos sacerdotes, mas também pela nobreza, em particular
pelos monarcas, cuja autoridade encontra um sólido respaldo em tais embustes.
Dito de outro modo, eclesiásticos e nobres, papas e reis,
tornam-se sócios na exploração da boa-fé e da submissão dos humildes.
Utilizando o bem comum e a necessidade pública como
pretextos, os reis tornam-se truculentos tiranos.
Alegando vontade divina e prometendo a garantia de
felicidade eterna numa outra vida, padres, bispos e o papa apropriam- se dos
escassos bens temporais dos seus fiéis na forma de dízimos e de outras
dissimuladas usurpações, recursos estes que poderiam ser melhor desfrutados em
vida pelos seus sofridos possuidores.
Nobreza e clero, política e religião, portanto, irmanar-se-iam
na espoliação dos povos.
Não há céu nem inferno, não há penas nem recompensas em
outra vida. Aliás, não há outra vida
além desta. Tais representações não passariam de pura invencionice.
De acordo com
Meslier, padres e bispos usariam esses expedientes para explorar o medo e a
esperança popular a fim de manterem intactos os seus privilégios.
Isto explica a adaptação das pessoas esclarecidas e
pretensamente sábias à ordem do tirano.
Outros partícipes dessa exploração e aliados do tirano
seriam os oficiais, intendentes, magistrados e membros do fisco, todos eles
pagos com o dinheiro dos impostos, isto é, com o dinheiro do povo, para
defender a autoridade absoluta constituída.
Tais pessoas, no fundo, desempenhariam um papel estratégico
e precípuo na manutenção e no funcionamento do aparato de dominação.
Ao defender os interesses da coroa, esses funcionários
protegeriam ao mesmo tempo os seus próprios interesses.
Trata-se de um exemplo expressivo de pessoas esclarecidas
que não se opõem às arbitrariedades do regime, pois, caso o fizessem,
obviamente perderiam, no mínimo, os seus cargos e, no limite, a própria vida.
Não obstante, havia os esclarecidos como Meslier que
repudiavam as iniciativas tirânicas e se sensibilizavam com o infortúnio
alheio. Todavia, a discordância desses poucos se dava apenas em sentimento e em
lucubrações silenciosas, afinal, enfrentar toda essa estrutura seria temerário
demais.
Assim, aos mais esclarecidos que não desejavam perder a vida
não restava outra escolha: adequar-se ao regime como parte direta ou
indiretamente integrada dos abusos da tirania ou como um pacato e resignado
servo.
Meslier fez a sua opção.
Outro produto da ambição apontado por Meslier é a bajulação.
Os aduladores existem aos montes e procuram obter privilégios
e ascensão por meio de favores e de negociatas com os poderosos. Por isso, são
sempre os primeiros a aplaudir tudo o que os tiranos realizam. Eles não se
atrevem a rechaçar a injustiça porque dela se beneficiam.
Quem então poderia combater efetivamente a tirania?
Qual seria esse personagem redentor concretamente falando?
Os miseráveis, por carecerem de ciência e de autoridade, e
por encontrarem-se iludidos com os ensinamentos, com as promessas e com as
ameaças da religião, seriam fracos, logo, impotentes.
Os esclarecidos, dentre eles os membros do clero, por serem
ambiciosos e por pensarem apenas nos seus próprios interesses, não se
arriscariam a tal ousadia.
Os bajuladores e os "devotos hipócritas",
parasitas por natureza, menos ainda.
Meslier percebe então uma rigorosa hierarquia, um
inquebrantável encadeamento de subordinação, de dependências, invejas e
perfídias entre os diferentes estamentos. De onde se segue que seriam os mais
odiosos vícios o sustentáculo de toda tirania.
E a ausência de resistência a essa lamentável realidade,
argumenta Meslier, faz as superstições e os abusos dos tiranos se alastrarem e
se perpetuarem no mundo.
Da ambição e de seus males a reflexão de Meslier caminha
para a relação entre a religião e a política.
Na sua concepção, a religião, historicamente fonte de toda
ética, deveria, por coerência, condenar as desumanidades de um governo
tirânico.
O governo, por sua vez, deveria proibir as imposturas e os
embustes da religião, visto que tem como missão salvaguardar o bem dos seus
súditos.
Nesse sentido, religião e política deveriam ser instâncias
"reciprocamente contrárias e opostas uma à outra".
Entretanto, ambas convivem, entendem-se e agem na história
como "dois gatunos".
Elas se sustentam mutuamente por meio da mentira, da
opressão e da manipulação do povo.
Os bispos e os padres intimidam os seus fiéis com a mentira
do inferno e com a fábula do direito divino dos reis a obedecer cegamente aos
intendentes, aos magistrados e aos tiranos (comentário : tipo Cristo dizendo
“dai à Cesar o que é de Cesar, e dai à Deus o que é de Deus”).
Os tiranos, por sua vez, além de concederem aos bispos e aos
padres boas rendas, constrangem o povo a respeitá-los como santos e como
representantes de Deus na Terra.
Desse modo, a ordem política e social constituída pela
aliança entre a tirania e a superstição enraíza-se.
Do ponto de vista institucional, é a Igreja Católica e o
Antigo Regime que Meslier indubitavelmente tem em mente quando procura
demonstrar a relação de promiscuidade e de sordidez entre a religião e a
política.
Já no âmbito propriamente teórico, o alvo principal da sua
crítica é o cristianismo apostólico romano, o qual, no seu entender, impõe-se
como a doutrina da pura verdade, do verdadeiro Deus e da verdadeira salvação,
isto é, como uma religião infalível e superiora a todas as outras.
Contudo, para Meslier, não somente o cristianismo oficial da
Igreja, mas a religião cristã como tal, seria tão ilusória, tão supersticiosa,
tão falsa, absurda, mendaz e ridícula quanto às demais religiões que a
humanidade pôde criar em outras épocas e lugares.
Tal similaridade seria nítida, justifica Meslier, nos seus
rituais. A idolatria existente na
religião cristã, por exemplo, não diferiria essencialmente em nada da idolatria
pagã.
No fundo, as ideias de milagre, mistério, vida eterna, entre
outras, seriam meras ilusões, mentiras e erros grosseiros, fábulas e imposturas
com fins estrategicamente políticos.
A história é testemunha do modo sórdido como os governantes
utilizam a religião para satisfazer seu insaciável desejo de poder, como eles
abusam impunemente da autoridade de um deus imaginário e das doutrinas
teológicas que os representam como enviados divinos para serem temidos e
servilmente obedecidos na Terra.
As causas das injustiças, por exemplo, o clero e o tirano
encobrem com o dogma do mistério ou as justificam com o mito do pecado
original. Com isso, isentam-se da responsabilidade dos seus atos.
E quando Meslier fala em povo pobre e injustiçado, ele se
refere obviamente a todos os oprimidos e explorados do mundo, a todos aqueles
desamparados pelos santos e por Deus que funcionam como "minas de
ouro" para reis e padres, e não só aos camponeses da França ou da sua
paróquia.
Não só o medo e a resignação caracterizariam a alma popular
sob a tirania.
Meslier demonstra que, apesar do obscurantismo, a
consciência dos abusos praticados pelos tiranos e, por conseguinte, a
indignação e o desejo de justiça, também pulsavam tácitos no coração e nas
mentes de alguns homens do povo de sensibilidade e de inteligência naturalmente
mais apuradas.
Ele cita o caso de um homem simples e sem estudo, porém
incrivelmente cônscio do funcionamento da sociedade em que vivia, que certa
feita disse com toda a sinceridade e singeleza que se pode esperar de um
camponês embrutecido pela opressão que "desejava que todos os grandes da
terra e que todos os nobres fossem enforcados e estrangulados com as tripas dos
padres".
Essa passagem, como já tivemos a oportunidade de destacar e
de tecer comentários a seu respeito, (comentário : anteriormente o autor
discorre amplamente sobre esta frase, com suas alterações, adaptações e falsas
atribuições de autoria) tornou- se a mais célebre de toda a sua obra.
E com razão.
A metáfora que o desabafo do camponês lança sugere que nos
regimes fomentados ideologicamente pela teoria do direito divino dos reis
haveria um elo visceral - e visceral aqui na acepção mais orgânica e fisiológica
da palavra, convém enfatizar - entre o poder temporal e o poder espiritual.
O padre admite que o desejo manifesto pela frase é rude,
grosseiro e afrontoso, porém, enaltece-o com indisfarçável entusiasmo.
Segundo ele, este homem simples do povo expressou com
imagens precisas o que os tiranos e o clero realmente mereceriam como
condenação.
E estimulado pelo desejo, pela aspiração desse homem sofrido
e a seu modo consciente, Meslier revela: "eu desejaria ter o braço, a
força, a coragem e a massa de Hércules para purgar o mundo de todos os vícios e
de todas as iniquidades, e para ter o prazer de derrear todos esses monstros
tiranos de cabeças coroadas, e todos os outros monstros, ministros de erros e
de iniquidades que fazem gemer tão impiedosamente todos os povos da
terra".
Contudo, embora Meslier denote concordância com o
tiranicídio e com o extermínio de eclesiásticos inescrupulosos, ele ressalta
que é o amor pela justiça e pela verdade e não o ressentimento e a sede de
vingança que o faz simpatizar-se com a metáfora das tripas e cobiçar a força
desse mito pagão, o que nos reporta ao pensamento revoltado de Albert Camus.
Recordando, em O homem revoltado, Camus distingue o
sentimento da revolta do sentimento de vingança.
(** anteriormente o autor diferencia o que seria
um ateu “revoltado que se revolta” e um ateu “revoltado que quer vingança”, último
seria o ressentido)
Na revolta, o revoltado, cujo valor maior é a solidariedade,
recusa terminantemente a injustiça e a humilhação, sem exigir, por outro lado,
que o injusto e o opressor provem da desumanidade que praticaram.
Quanto a um dos antípodas do revoltado, a saber, o
ressentido, seu desejo é que a injustiça e a humilhação da qual foi ou é vítima
recaia maximizada sobre o seu verdugo.
Nesse sentido, podemos dizer que Meslier é um revoltado e
não um ressentido, pois, a despeito de exprimir em vários momentos um
sentimento regicida e anticlerical, propugna o fim das injustiças e da
opressão, e não a inversão dos seus alvos.
Meslier retoma na "Apresentação" a problemática do
parasitismo social
Além dos poderosos e dos funcionários e aduladores destes,
outra espécie de parasita destacada pelo padre ateu é a dos charlatães, aqueles
indivíduos que exploram a ignorância e a simplicidade do povo, por exemplo,
persuadindo pessoas enfermas e ingênuas a comprar falsos remédios e
medicamentos milagrosos.
Esses "infames enganadores", julga Meslier, devem
ser caçados e banidos, como devem ser todos os ladrões, assassinos, e aqueles
que dominam o corpo e a consciência dos desvalidos. Mais: eles devem ser
odiados pelo povo.
No entanto, os "maiores enganadores do povo" são
mesmo, no seu entender, os sacerdotes.
Ao sustentar isso, Meslier não se exclui da própria
sentença, atingindo assim a sua própria incumbência e, o mais dolorido, a sua
própria pessoa.
Como vimos, ele tem consciência e amarga a sua condição
contraditória.
Todavia, ele denuncia, mesmo que para a posteridade, as
mazelas da sua profissão.
Meslier não esconde em nenhum momento que ele exerceu o seu
papel de sacerdote dentro de uma certa regularidade, que difundiu os
ensinamentos da Igreja, que recebia o dízimo, e que, mesmo contra a vontade,
aterrorizou e iludiu os seus fiéis com a mitologia dos evangelhos.
Contudo, ressalta que nunca fora supersticioso, beato ou
fanático, e que entrou para a carreira eclesiástica para satisfazer a vontade
dos seus pais e para ter uma vida materialmente mais segura, tranquila e digna
numa época de muitas privações.
Mesmo tendo a subsistência garantida e outras vantagens
concedidas ao clero, ele confessa nunca ter amado o seu ofício, que sentia por
este uma profunda ojeriza.
As cerimônias e os rituais religiosos, por exemplo,
enfastiavam-no profundamente por suas futilidades e absurdos.
Com a consciência torturada, ele se lamenta e pede desculpas
aos seus paroquianos por tê-los enganado. E insiste que assim agiu contrariando
os seus mais francos princípios, ao contrário do que faziam os demais
sacerdotes, os quais se divertiam e lucravam sem nenhum remorso com a boa-fé
dos seus fiéis.
Papas como Júlio III, Leão X e Bonifácio VIII são citados
por ele como exemplos de religiosos que zombavam da credulidade popular, e que,
entre os íntimos, repetiam que tinham se enriquecido graças à fábula de Jesus
Cristo.
Tanta hipocrisia e tanta exploração ao mesmo tempo
entristecia e indignava Meslier.
Como era o povo que proporcionava o seu sustento, como era
do trabalho dos seus paroquianos que saíam os seus privilégios de sinecura, o
clero deveria ter mais consideração por eles, enfim, ser mais solidário à
miséria do seu rebanho.
Numa explícita crise de consciência moral, Meslier
esforça-se para se diferenciar dos seus colegas de batina declarando que sempre
fora sensível à aflição do seu povo, que nunca o explorou, e que, ao contrário,
sempre lhe deu muito mais do que dele recebeu.
Nesse ponto, curiosamente, o padre ateu assinala ter seguido
com rigor a recomendação de Cristo para que tivéssemos mais consideração pelos
pobres do que pelos ricos.
Mais uma vez Meslier reitera que não foi um beato ou um
fanático, que cumpriu as tarefas do seu ofício com muito dissabor, repete a
cantilena que foi coagido pelo medo das represálias a difundir os erros, os
disparates e as futilidades da religião.
Num tom de mea-culpa, admite e pede desculpas à posteridade
por ter abusado da boa-fé dos seus fiéis.
Sua repugnância pelo que era forçado a fazer era tanta que
quase o levou a revelar, numa de suas missas, a sua indignação com as
injustiças e a sua insatisfação com a sua ocupação.
Entretanto, para não se expor à fúria do clero e à crueldade
dos tiranos, escolheu para si a alternativa não menos martirizante, ou seja, o
silêncio, o qual foi mantido até o último dia de sua vida.
A despeito do silêncio sob o qual foi obrigado a pensar e
escrever, Meslier não economizou palavras em suas denúncias e diatribes póstumas.
Uma das primeiras diz respeito ao papel histórico da
religião e do poder político.
Meslier argumenta que desde os primórdios da civilização os
pobres e humildes sempre foram engabelados e manipulados pela superstições
religiosas, além de oprimidos e explorados pelos ricos e poderosos.
Paulo Jonas de Lima Piva |
Em outras palavras, Meslier entende historicamente a
religião como uma "rédea", como um expediente dos poderosos para
domar as massas pelo medo e pela esperança, e, por conseguinte, para fortalecer
a preservação dos seus privilégios.
Em contrapartida, a vontade e o objetivo principal de
Meslier era desiludir o povo, fazê-lo ver, mediante a razão, a "verdade
das coisas".
Tal compromisso, segundo o padre, todos os homens
esclarecidos e de bem deveriam assumir.
Revelando as causas e as estruturas das injustiças, o ódio
pela tirania poderia ser despertado no coração dos injustiçados, condição
necessária para que um dia os alicerces da ordem pudessem ser destruídos e a
justiça enfim realizada.
Os mais instruídos deveriam convencer os povos de "duas
importantes e fundamentais verdades":
1) para aperfeiçoar-se nas ciências e nas artes os homens
deveriam seguir unicamente "as luzes da razão humana"; 2) as boas
leis devem ser engendradas e fundamentadas na prudência, na probidade, na
"eqüidade natural", enfim, também na razão.
[...]
Entretanto, como vimos, poucos foram os que se dispuseram a
esclarecer os desvalidos. Os livros voltados para esse fim não eram publicados
ou, quando o eram, a censura e a perseguição os aniquilavam.
Meslier já previa o escândalo que a sua obra ocasionaria nos
meios clericais quando fosse descoberta após a sua morte.
Ao que parece, escandalizar era mesmo a sua intenção.
Do mesmo modo eram previstos por ele os ataques e as
difamações que surgiriam não só dirigidas à sua obra, mas sobretudo à sua
reputação.
Ele sabia que seria chamado "de ímpio, de apóstata, de
blasfemador e de ateu".
Mas o padre parece não se importar com os seus detratores
tampouco com o que farão com o seu cadáver, como podemos ler no término da
"Apresentação" da "Memória": "façam então com o meu
corpo tudo o que eles quiserem; que eles o dilacerem, que eles o cortem em
pedaços, que eles o assem ou que eles o misturem com legumes, e que eles o
comam se quiserem [..]".
A única preocupação séria de Meslier parece ser com a
integridade dos seus familiares e amigos, os quais poderiam ser vítimas de
perseguição ou sofrer alguma retaliação por parte dos religiosos.
Mesmo assim ele deixou como que de presente aos homens de
bem e de espírito o seu testamento filosófico e político, pois acreditava que a
verdade, a justiça, a liberdade e o bem público deveriam se realizar no porvir
em todas as partes onde o obscurantismo e a opressão imperassem.
[...]
Na terceira e última parte da "Apresentação", as
religiões são definidas por Meslier como erros, ilusões, abusos e imposturas.
Tanto os deuses pagãos quanto o deus com "d"
maiúsculo do cristianismo, juntamente com todos os seus rituais, cultos,
explicações, leis e ordenações seriam, no seu entender, "invenções
humanas" com finalidades puramente políticas.
E aqui vale mencionar que Meslier emprega propositadamente
letra minúscula para aludir-se ao deus cristão e maiúscula para se referir ao
deus pagão.
Seja como for, tais divindades são interpretadas pelo padre
como falsidades, artifícios oriundos de raciocínios tolos que são apropriados
pelos tiranos para dominar e espoliar mais facilmente os povos.
Meslier vai mais além e assevera que a religião cristã seria
ainda mais falsa e vã do que as demais, visto que seria constituída de rituais
ridículos, de crueldades, de princípios absurdos, bem como de preceitos
contrários à natureza e à razão.
Em suma: seria uma religião repleta de mentiras, como a
ameaça do inferno e a promessa do paraíso.
Após a morte, contesta Meslier, não há nada para esperar,
nenhum bem ou mal. Céu e inferno não passariam de fábulas, invencionices de
supersticiosos, fantasmagorias de fanáticos.
Somente uma vida seria concebível, ou seja, esta vida, em
sua finitude, efemeridade e precariedade.
Diante disso, ele recomenda que a apreciemos ao máximo,
aproveitando com sabedoria os bens que os dias e a natureza nos proporcionam,
como, por exemplo, desfrutar com comedimento e de modo fraterno os resultados
do nosso trabalho.
Mas adverte: gozar a vida não significa entregar-se à
libertinagem.
A morte, por seu turno, é interpretada da maneira mais
natural, simples e empírica possível.
Aos seus olhos, a morte é concebida em sua obviedade
imediata, isto é, como o fim da vida, em outros termos, como o término
irreversível da consciência, do conhecimento, das paixões, das necessidades,
dos sentimentos morais, enfim, do funcionamento do corpo.
A "Apresentação" finda-se com uma conclamação de
Meslier para que as reflexões desenvolvidas na "Memória" não sejam
entendidas de forma dogmática ou passivamente aceitas pelo seu leitor, mas que
este utilize judiciosamente a sua razão para obter as suas próprias conclusões
e, assim, conhecer a verdade, a qual, para ele, jamais poderá ser desvelada
pela fé tampouco por uma fabulosa revelação.
Em última análise, a "Apresentação" exerce um
papel estratégico e fundamental na "Memória" na medida em que anuncia
e sintetiza os tópicos a serem desenvolvidos nas oito provas que se seguem.
"PRIMEIRA PROVA"
[...]
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Links :
Para saber mais sobre Jean Meslier :
4.
Artigo "O estranho testamento de um vigário de província - as memórias
de Jean Meslier" de Maria das Graças de Souza :
http://www.scielo.br/pdf/trans/v8/v8a07.pdf
6. "O último rei e o último padre".
Texto de Giba Assis Brasil sobre a célebre frase falsamente atribuída a
Diderot. No texto, Giba afirma que a frase é na verdade de Meslier, o
que é errado segundo Piva.
6 comments:
Absurdo o fato de as pessoas acreditarem nessas asneiras que esse cara dizia
parabéns por essa postagem e pelo blog. Muito obrigado!
Perfeita colocacão. Naquela época ele ja tinha matado a charada de tão óbvio que é esse sistema.....
Muito esclarecedores seu texto, obrigado por compartilhar um pouco de seu conhecimento, e de fato religiões são um instrumento de manipulação e enriquecimento.
Enfrente seus medos!
Absurdo é você do alto do seu trono se preocupar mais com isso do que levar o evangelho ao pé da letra.
Absurdo é o egoísmo de todo líder religioso.
Absurdo é o preconceito com o diverso e achar que apenas se afirmando cristão, o seu coração automaticamente se torna puro.
Absurdo é que vocês se reúnem pra acreditar que são melhores que o seu semelhante, pregando lições que vocês mesmos não seguem.
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