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Monday, April 09, 2012

Livro - A Restauração das Horas / Paul Harding


Capa

Pode um livro de apenas 150 páginas ser looooooongooooo, morooooosoooo, devagar ?

Daqueles que o leitor tem que  remar, e remar, e remar para seguir adiante ?

“A restauração das horas”, de Paul Harding, vencedor do Prêmio Pulitzer, 2010, é .

Aquele  que começa a ler a  “A restauração” logo  é colocado diante de um desafio pois a  escrita  impede uma leitura fluída, tranqüila. 

Para avançar, perseverar no texto, o leitor tem que abrir /alcançar  um espaço mental onde a paciência, a mansidão  a placidez sejam exercitadas.

O livro foi rejeitado por diversas editoras por ser considerado “anti-comercial”.  Paul só conseguiu publicá-lo em 2009 pela Bellevue Literary Press, uma pequena editora sem fins lucrativos.  


Até ser premiado o livro tinha passado quase despercebido e vendido muito pouco, o que mudou depois do Pulitzer, é claro.

Li algumas entrevistas do Paul onde ele diz que o leitor moderno não tem tempo para uma escrita mais reflexiva, lenta, devagar.  Concordo (eu não tenho).

 Se falarmos em termos de história, “A restauração” conta os últimos dias de vida de George, relojoeiro  que está resa a uma cama de hospital instalada na sala da sua casa.. 
Rodeado pela família, George delira num labirinto onde recordações e situações presentes se sobrepôem, se  embaralham. 

Em paralelo também surge a história de Howard, seu pai – caixeiro viajante  e epilético, que também tem seus momentos de delírio – e também de seu avô, um pregador meio insano.

Tudo é permeado por longas passagens descritivas da natureza, do funcionamento das engrenagens dos relógios e de outros assuntos aleatórios, como por exemplo,  construção de ninhos para pássaros..  

Isto causa um estranhamento em quem lê.

Paul Harding
Em vários momentos o indivíduo se vê frente a frente com longos parágrafos que atravancam a leitura e, grosso modo, nada acrescentam à história.

Mas a jogada é outra.

Na verdade nessas situações o leiitor tem que desacelerar, puxar uma primeira, se concentrar, respirar fundo  e entrar em outro ritmo mental.

É difícil, confesso (principalmente os períodos sobre os relógios) .

O curioso é que a passagem / a utilização do tempo - que é a idéia central da obra - acaba sendo um elemente decisivo na leitura do livro. 

Tipo, o dilema é :  vou tirar um tempo para continuar a ler (com um certo esforço), ou não tenho tempo para estas viagens e vou largar esta jossa agora.

Confesso que oscilei de um lado a outro em vários momentos.

Interessante, não ?

Mas a questão final  é : vale a pena ?  A princípio digo que sim. Mesmo diante das dificuldades, no conjunto a obra tem seu fascínio.

Para dar uma idéia do que o leitor enfrenta, transcrevo abaixo três passagens :

1 ) Aqui o texto mostra o poder do autor em descrever o humano. - Nesta passagem Howard fala do "desaparecimento" do seu pai. Uma situação onde, mesmo estando "por perto", a sensação do jovem é de que o pai era um fantasma que já não"estava ali". Achei genial.
"Eu tinha a impressão de que meu pai simplesmente se dissipara. Ficara cada vez mais difícil de se ver. Um dia, achei que ele estivesse sentado na cadeira diante da escrivaninha, escre­vendo. Ao que tudo indicava, escrevia qualquer coisa numa folha de papel. Quando lhe perguntei onde estava a bolsa para colher maçãs, ele desapareceu. Eu não sabia se ele tinha estado realmente ali, ou se eu fizera a pergunta para uma espécie de imagem, um resquício de meu pai que persistira por lá. Ele escoou deste mundo aos poucos, porém. No início, parecia apenas um pouco vago ou periférico. Mas depois já não conseguia servir como um suporte adequado para suas roupas. Ele surgia por trás e me fazia uma pergunta, eu sentado num caixote abrindo vagens ou descascando batatas para a minha mãe, e quando eu respondia e não recebia qualquer réplica, virava-me e encontrava seu chapéu, cinto ou um único sapato sob o batente da porta, como que deixado ali por uma criança travessa. O fim veio quando já sequer conseguíamos vê-lo, apenas senti-lo em breves perturbações de sombras ou luz, ou como uma leve pressão, como se o espaço que ocupávamos contivesse de súbito algo mais, ou captávamos um aroma fraco e fora de estação, como o da neve derretendo a lã de seu casaco de inverno, mas ao meio-dia em pleno agosto como se nas últimas vezes em que o senti como um outro se em vez de uma memória ele tivesse pensado em vir conferir este mundo no momento errado, saindo por acidente do local de inverno em que se encontrava e vindo diretamente para o meio do verão. E é como se, ao fazê-lo, só confirmasse que estava destinado a desaparecer, sua presença no lugar errado, de modo que nessas visitas alarmadas, embora eu não o visse, podia notar sua surpresa, seu desconcerto, o pavor sentido num sonho em que encontramos de súbito um irmão esquecido ou nos lembramos da criança que deixamos ao sopé da montanha a quilômetros de distância, horas atrás, porque de alguma forma nos distraímos e chegamos a acreditar numa vida diferente, e nosso choque durante essas memórias terrív0eis, esses encontros súbitos, surge tanto do sofrimento pelo que negligenciamos como do horror por termos acreditado em outra coisa tão depressa e tão profundamente. E esse outro mundo com que sonhamos primeiro é sempre melhor se não for real, pois nele não rejeitamos uma amante, abandonamos um filho, demos as costas a um irmão. O mundo se desprendeu do meu pai assim como ele se desprendeu de nós. Nós nos tornamos seu sonho."
2 ) Descrição da Natureza. Howard na natureza (Bonito. Quase "sensitivo". Mas precisava tanto ?),

"A chuva da primavera transformava em charcos temporários os sulcos profundos das trilhas abandonadas. A água chegava à altura das canelas e tinha uma cor férrea, turva. Howard por vezes tinha que atravessar um charco, pois cruzava toda a extensão da estrada, entrando na mata. Atravessava com dificuldade, seus pés levantavam do fundo nuvens leitosas, cor de ferrugem, das quais brotavam cardumes de girinos verdes perturbados em suas evoluções rápidas e frágeis. O batuque de um pica-pau ressoava em algum ponto da mata à esquerda de Howard. Pensou em deixar a trilha para encontrá-lo, mas decidiu não fazê-lo. O mato cobria as laterais elevadas da trilha nas partes em que não estava submerso na água metálica. Howard seguiu aquele caminho estreito. A trilha tinha sido mais ou menos reta um dia, mas ao longo dos anos, depois de abandonada, o bosque a desviara, empurrando partes para a esquerda ou para a direita, entortando-a e cobrindo-a pelo alto, de modo que segui-la era como atravessar um túnel. As copas das árvores filtravam a luz do céu em quantidade variáveis. Os ramos dos bordos, carvalhos e bétulas se inclinanavam sobre a trilha, aproximando-se e se entrelaçando e ficando quase indistinguíveis, as folhas mescladas pareciam compartilhar ramos comuns, como se, depois de tantas estações baralhadas, as árvores tivessem se enxertado umas nas outras, tornando-se uma planta única que produzia folhas de várias espécies. A luz ficava retida acima da cabeça de Howard, cintilante e abundante. Muito poucas gotas de luz conseguiam atravessar o emaranhado e chegar à grama. Em dois momentos, Howard passou por lugares em que a luz jorrava até o chão e lá se acumulava o primeiro num ponto em que havia um enorme carvalho seco, e depois onde um raio rachara um abeto gigante.
O que parecia ser o fim da trilha era, na verdade, apenas um desvio para a esquerda ou para a direita, um declive ou uma subida gradual. E o modo como as nuvens se moviam, quase sempre invisíveis, sobre o dossel das árvores, ora a revelar a luz plena do sol, ora a obscurecê-la, ora a difundir ou refletir a luz, e o modo como reluzia e gotejava e jorrava e inundava e girava, e o modo como o vento a dispersava ainda mais entre as folhas trêmulas e o mato inquieto, tudo se combinava para dar a Howard a impressão de que caminhava em meio a um caleidoscópio. Era como se o céu e o chão dessem voltas em círculo à sua frente, de tal forma que a terra, ao balançar para o alto, sobre o céu, deixasse cair folhas e navalhas de relva e flores silvestres e ramos de árvores sobre o azul e, ao descer de volta a seu lugar, recebesse por sua vez uma precipitação de nuvens e luz e vento e sol vinda do firmamento. Céu e terra estavam ora em seu lugar habitual, ora lado a lado, ora invertidos, ora endireitados novamente num rodopio contínuo e silencioso. Animais descuidados avançavam devagar por essa mata giratória; pássaros e libélulas pousavam em galhos e partiam de volta para os céus; as raposas pisavam em nuvens e retornavam ao piso da floresta sem cessar; e um milhão de caudas de girinos se agitavam, descendo do teto aquoso e mergulhando de volta para seus ninhos lamarosos. A luz, também, se estilhaçava como um grande prato e se reu­nia e rachava outra vez, cacos e fragmentos e vidro vívido e feixes à contraluz giravam em permutas serenas e pacíficas e saturavam tudo o que Howard via, até que todas as coisas em si parecessem por fim se dissolver, suas formas contidas por nada mais que penas de luz colorida "
 3 ) Descrição dos mecanismos dos relógios  (estas passagens sem dúvida são as mais difíceis)

"O escapamento de um relógio consiste numa pinça ligada por um eixo, chamada âncora, e numa roda de escape situada acima de todas as peças do relógio. A roda é colocada na pon­ta final do trem de engrenagens. Esta é a parte do relógio que marca o tempo. Se o relógio bater badaladas, terá também um trem de percussão. O trem de percussão move e regula o mecanismo das batidas do relógio, que consiste, em termos simplificados, numa alavanca de destravamento, num mar­telo e num pedaço de ferro em espiral, que, quando acertado pelo instrumento, produz a badalada. As engrenagens rece­bem a energia vinda de uma mola. A mola, ou corda, é uma longa tira de metal achatado em forma de espiral. Ela fica presa, na parte mais interna, à espiral de uma árvore. Esta é girada com uma chave quando damos corda ao relógio. Para evitar que a mola se
desenrasque durante este procedimento, existe um dispositivo de catraca e uma lingueta de clique. Nos relógios mais modernos, a mola fica num cilindro de metal chamado tambor de corda. A mola passa então a se desenrascar, e a energia assim liberada é transferida a uma série de rodas e engrenagens que movem os ponteiros dos minutos e das horas no mostrador do relógio. Ao final deste ciclo encontra-se o escapamcnto. É aqui que a energia gerada pela mola finalmente escapa do relógio. É também onde se mantém a regularidade do passo do relógio; e assim volta­mos à âncora e à roda de escape. A energia passa pela roda de escape, que, situada ao final do trem de engrenagens, é a mais delicada, elegante e sensível das rodas. Ela transmite a energia, que foi domada por engrenagens sucessivas até pas­sar de força selvagem a servo civilizado, de modo a realizar a mais refinada das funções: cooperar com a âncora para mar­car precisamente cada um dos 86.400 segundos de nosso dia terreno, e, além disso, fazê-lo durante oito dias por vez, to­talizando 691.200 segundos, ou 192 horas. Esta cooperação, e cada um dentre essas centenas de milhares de segundos, é ouvida em nosso descanso como o tique-taque tranquilizan­te do relógio de mesa inglês numa noite de inverno sobre o fogo cálido da lareira. Se fizermos uma chamada de presença no correr dos anos, Huygens, Graham, Harrison, Tompion, Debaufre, Mudge, LeRoy, Kendall e, mais recentemente, o sr. Arnold, encontramos uma procissão humilde e variada, mas determinada e paciente, de almas lógicas, todas encurva­das sobre suas mesas de ofício, polindo bronze e calibrando engrenagens e esboçando ideias até que seus lápis se tornas­sem grafite em pó entre os dedos, todos para, aprimorando o ritmo da roda de escape, transformar e transladar com mais perfeição a Energia Universal. Escuta, horologista, os nomes dos mecanismos de escape destes homens: braço oscilante, deadbeat, tique-taque, grelha compensadora, gafanhoto, cre- malheira, gravidade, detenção por mola, vírgulas. A exemplo de nossos maiores menestréis, essas almas viris e sensíveis que abarcam colinas e atravessam madeira, que consideram as ovelhas pastando entre ruínas ancestrais e ali descobrem rima e métrica; em suma, que encontram a música dos mais doces versos, assim também nossos grandes relojoei­ros aprendem que a poesia reside no processo humano de destilar a civilização da natureza desenfreada ! Bem-vindos, companheiros bem vindos ! "

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