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Tuesday, January 15, 2019

Jean-Jacques Rousseau - O embuste mitificado


O post abaixo é o primeiro capítulo do livro Os Intelectuais, de Paul Johnson

Tal capítulo, antes de falar sobre Rosseau propriamente, faz um resumo do aparecimento do "intelectual secular" e qual é o objetivo do livro.

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JEAN-JACQUES ROUSSEAU: LOUCO INTERESSANTE


Ao longo dos últimos 200 anos, a influência dos intelectuais vem crescendo regularmente.

Na verdade, o surgimento do intelectual secular foi um fator decisivo para dar forma ao mundo moderno. Visto de uma perspectiva histórica ampla, trata-se, em muitos aspectos, de um fenômeno novo.

Não há dúvidas de que desde suas primeiras encarnações como padres, escribas ou profetas, os intelectuais exigiram para si a tarefa de orientar a sociedade.

Porém, sendo eles guardiães de culturas hieráticas, fossem primitivas ou sofisticadas, as inovações morais e ideológicas que eles propunham eram limitadas pelos cânones da autoridade externa e pela herança da tradição. Eles não eram, nem podiam ser, espíritos livres ou aventureiros do pensamento.

Com o declínio do poder do clero no século XVIII, um novo tipo de mentor surgiu para preencher o vazio e conquistar os ouvidos da sociedade.

O intelectual secular, mesmo sendo deísta, cético ou ateu, estava tão disposto quanto qualquer pontífice ou presbítero a dizer como os homens deviam agir diante dos problemas dessa sociedade. Desde o princípio, expressou uma devoção especial para com os interesses da humanidade e uma predisposição evangélica para fazê-los avançar graças a seu ensino.

Deu a essa tarefa auto imposta um sentido muito mais radical do que tinham dado seus predecessores do clero. Não se sentiam limitados por nenhum corpus de uma religião revelada.


A sabedoria coletiva do passado, o legado da tradição, os códigos prescritos por uma experiência ancestral existiam para ser seletivamente seguidos ou para ser completamente rejeitados, dependendo apenas do bom senso de cada um.

Pela primeira vez na história humana - e com uma arrogância e uma audácia crescentes -, os homens se diziam capazes de diagnosticar os males da sociedade e curá-los com sua inteligência autossuficiente; mais: diziam ser capazes de traçar um plano pelo qual não apenas a estrutura social, mas os hábitos básicos do ser humano podiam ser transformados para melhor.

Ao contrário de seus antecessores sacerdotais, eles não eram servos nem intérpretes dos deuses; eram seus substitutos.

O herói deles era Prometeu, que roubou o fogo celestial e o trouxe para a Terra.

Uma das características mais marcantes dos novos intelectuais seculares era o prazer com que submetiam a religião e os respectivos protagonistas a uma análise crítica.

Até que ponto esses grandes sistemas de fé trouxeram benefícios ou malefícios à humanidade?

Em que medida esses papas e pastores viveram de acordo com os próprios preceitos de castidade e sinceridade, de caridade e benevolência?

Tanto no caso das igrejas como no do clero, os veredictos foram rigorosos.

Hoje, depois de dois séculos durante os quais a influência da religião continuou decrescendo e os intelectuais seculares desempenharam um papel cada vez mais importante no caráter de nossas atitudes e instituições, já é hora de examinarmos suas vidas, tanto em âmbito público como privado.

Pretendo avaliar particularmente as credenciais morais e de julgamento que os intelectuais possuíam ou não para ditar regras de conduta à humanidade.

Como administravam suas próprias vidas? Que grau de retidão demonstravam para com a família, os amigos e os companheiros? Eles eram honestos em seus relacionamentos sexuais e financeiros? Será que falavam e escreviam a verdade? E até que ponto seus sistemas teóricos resistiram ao teste do tempo e da práxis?

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Jean-Jacques Rosseau

Nossa investigação começa com Jean-JacquesRousseau (1712-78), que foi o primeiro dos intelectuais modernos, um arquétipo para eles e em vários aspectos o mais influente entre todos.

Voltaire
Homens mais velhos, como Voltaire, haviam iniciado a tarefa de demolir os altares e entronizar a razão. Porém, Rousseau foi o primeiro a combinar as características visíveis do Prometeu moderno: a afirmação do direito de rejeitar, em sua totalidade, a ordem vigente; a confiança na capacidade de reformar tal ordem a partir da base de acordo com as regras que ele próprio estabeleceu; a crença de que essa re­forma podia ser feita por meio de um processo político; e, não menos im­portante, o reconhecimento do papel valiosíssimo desempenhado na conduta humana pelo instinto, pela intuição e pela impulsividade.

Ele acreditava ter um amor inigualável pela humanidade e ter sido dotado de talento e perspicácia nunca vistos para fazê-la mais feliz.

Um número impressionante de pessoas, na época e desde então, concordou com essa avaliação que ele fez sobre si mesmo.

A longo e a curto prazo, sua influência foi enorme.  Para a geração que se seguiu a sua morte, ele alcançou o status de mito.

Mesmo tendo morrido uma década antes da Revolução Francesa, muitos de seus contemporâneos o apontaram como responsável por ela e, por extensão, pela derrubada do an­cien régime na Europa.  Essa opinião foi compartilhada tanto por Luís XVI quanto por Napoleão.

A respeito das elites revolucionárias, Edmund Burke disse: "Há uma grande disputa entre os líderes para saber qual deles se parece mais com Rousseau (...). Para eles, Rousseau é o modelo de perfeição".

Robespierre
E o próprio Robespierre afirmou: "Rousseau é o único homem que, graças à altivez de sua alma e à grandeza de seu caráter, mostrou ter méritos para desempenhar o papel de professor da humanidade".

Durante a revolução, a Convenção Nacional votou a favor de que suas cinzas fossem transferidas para o Panteão. Na cerimônia, o presidente da Convenção declarou: "Devemos a Rousseau o avanço salutar que transformou nossa moral, nossos cos­tumes, leis, sentimentos e hábitos".

Entretanto, num nível bem mais profundo e por um período de tempo muito mais longo, Rousseau alterou alguns dos pressupostos básicos do ho­mem civilizado e mudou a configuração da estrutura do pensamento humano.

A extensão de sua influência é incrivelmente ampla, porém pode ser dividida em cinco categorias principais.

Em primeiro lugar, nossas ideias modernas acerca de educação devem muito à doutrina de Rousseau, principalmente por sua obra Emílio (1762).

Ele popularizou, e em certa medida inventou, o culto da natureza, o gosto pelo ar livre, a busca da novidade, da espontaneidade, do vigor e do natural. Foi o primeiro a fazer a crítica da artificialidade urbana. Identificou e apontou o artificialismo da civilização. É o precursor do banho frio, do exercício sistemático, do esporte como formador da personalidade e da casa de campo para o fim de semana(2).

Em segundo lugar, paralelamente a essa revalorização da natureza, Rousseau aconselhava a se desconfiar dos avanços progressivos e graduais acarretados pela marcha vagarosa da cultura materialista; nesse sentido, passou a rejeitar o Iluminismo, do qual fizera parte, e buscou uma solução mais radical(3). Insistia em que a razão, por si só, tinha sérias limitações como meio de curar a sociedade.

Entretanto, isso não queria dizer que a inteligência humana fosse insuficiente para levar a efeito as mudanças necessárias, visto que ela tinha reservas secretas e inexploradas de compreensão e intuição poéticas que deviam ser usadas para sujeitar os ditames estéreis da razão(4).

Seguindo essa linha de raciocínio, Rousseau escreveu suas Confissões, que foram terminadas em 1770, embora não tenham sido publicadas antes de sua morte.
Confissões

Essa terceira ideia correspondeu à origem tanto do movimento romântico como da literatura introspectiva moderna, pois ele levou o fato de se ter descoberto o indivíduo - o feito principal do Renascimento - a um estádio bem mais avançado, penetrando na personalidade íntima é exibindo-a pa­ra exame público.

Pela primeira vez foi mostrado aos leitores o âmago de uma vida emocional, embora - e essa também seria uma característica da li­teratura moderna - seu aspecto fosse enganoso, as emoções se mostrando traiçoeiras, superficialmente sinceras mas no fundo cheias de falsidade.

A quarta ideia popularizada por Rousseau foi, em alguns aspectos, a mais difundida de todas. 

A partir do momento em que a sociedade se desenvolveu, partindo de um estado primitivo de constituição até o artificialismo urbano — afirmava ele —, o homem se corrompeu: sua natural autossuficiência, que ele chama de amour de soi, se transformou num impulso bem mais pernicioso, o amour-propre, que combina a vaidade com a auto estima, cada homem avaliando a si próprio pelo que os outros pensam dele, e desse modo procurando impressioná-los com seu dinheiro, sua força, sua inteligência e superioridade moral.

Sua autossuficiência natural se transforma em competitividade e ganância, e por isso ele se aliena não apenas em relação aos outros homens, que passam a ser vistos como concorrentes e não companheiros, mas também em relação a si próprio(5). A alienação dá lugar, no homem, a uma doença psicológica caracterizada por uma discordância trágica entre a aparência e a realidade.

Segundo ele, o pecado da competitividade, que destrói o senso comunitário inato ao homem e estimula suas características mais perversas, inclusive o desejo de explorar os outros, levou Rousseau a desconfiar da propriedade privada, julgando-a a causa da criminalidade social.

Desse modo, sua quinta inovação, bem nas vésperas da Revolução Francesa, consistiu em desenvolver os rudimentos de uma crítica ao capitalismo, tanto no prefácio da peça Narcisse como nos Discours sur l'inégalité, identificando tanto a proprieda­de quanto a competição necessária para obtê-la como as causas básicas da alienação. (6)

Essa foi uma fonte de pensamento que Marx e outros explorariam sem se impor limites, do mesmo modo que a ideia correlata de Rousseau referente à evolução cultural.
Karl Marx

Para ele, "natural" significava "original" ou pré-cultural. Toda cultura acarreta problemas, visto que é a união de um ho­mem com outros que estimula as tendências mais perversas desse homem.  Como ele escreve, em Emílio: "O bafo de um homem é fatal para os outros homens".

Desse modo, a cultura na qual se vive, ela própria uma construção artificial e em evolução, prescreve um comportamento ao indivíduo, e se poderia aperfeiçoar ou mesmo transformar totalmente o comportamento dele mudando-se a cultura e as forças competitivas que a produziram — ou seja, por meio de uma organização social.

Essas ideias são tão abrangentes que chegam a constituir, quase por si só, uma enciclopédia do pensamento moderno.

Na verdade, nem todas se devem a ele.  Sua formação de leitura é ampla: Descartes, Rabelais, Pascal, Leibnitz, Bayle, Fontenelle, Corneille, Petrarca, Tasso e, em particular, Loc­ke e Montaigne.

Germaine de Staël, que acreditava que ele possuía "as mais sublimes faculdades jamais encontradas num homem", afirmou: "Ele não inventou nada". Porém, acrescentou ela, "infundiu emoção nessas ideias".

Era a forma simples, direta, vigorosa, verdadeiramente apaixonada como Rous­seau escrevia que fazia suas ideias parecerem tão vívidas e novas, de modo a se apresentarem a homens e mulheres com o impacto de uma revelação.

Quem afinal era o irradiador de tão extraordinário vigor moral e inte­lectual, e como ele alcançou esse status?

Antigo Mapa de Genebra

Rousseau era um suíço nascido em Genebra, em 1712, e educado segundo padrões calvinistas.

Seu pai, Isaac, era um relojoeiro que não tinha prosperado na profissão, visto ser um criador de casos que se envolvia com frequência em brigas e tumultos.

A mãe, Su­zanne Bernard, era proveniente de uma família rica, porém morreu de febre puerperal logo depois de Rousseau nascer.

Nenhum dos dois era proveniente do círculo restrito de famílias que formavam a oligarquia dominante de Genebra e compunham o Conselho dos Duzentos e o Conselho Interno dos Vinte e Cinco.

Apesar disso, tinham plenos direitos legais e de voto, e Rous­seau sempre esteve consciente de sua condição de superioridade.

Isso o fez um conservador nato por Conveniência (mas não por convicção intelectual) e fez com que ele desprezasse, durante toda a sua vida, a plebe que não tinha direito ao voto. Além disso, a família possuía uma quantidade de dinheiro considerável.

Rousseau tinha um irmão sete anos mais velho do que ele e não tinha irmãs. Ele próprio se parecia bastante com a mãe, e por isso tornou-se o favo­rito do pai viúvo.

O tratamento que Isaac lhe dispensava variava entre uma afeição lacrimosa e uma violência aterradora, e mesmo Jean-Jacques, o favo­rito, fez críticas à maneira como o pai o criara, queixando-se mais tarde, em Emílio: "A ambição, a cobiça, a tirania e as previsões equivocadas do pai, sua negligência e insensibilidade brutal são 100 vezes mais prejudiciais para a criança do que a irrefletida ternura da mãe".

No entanto, foi o irmão mais velho que se tornou a maior vítima da selvageria paterna. Em 1718, foi mandado a um reformatório, por solicitação do pai, sob a alegação de que era incorrigivelmente imoral; em 1723, fugiu de lá e nunca mais foi visto.

Rous­seau, por conseguinte, era filho único, uma situação que compartilhou com muitos líderes intelectuais modernos. Porém, embora privilegiado em alguns aspectos, ele terminou a infância com um forte sentimento de privação e — talvez sua característica pessoal mais marcante — de autocomiseração. (7)

A morte logo o privou do pai e da mãe de criação. Não gostava da profissão de gravador, da qual era aprendiz, por isso, em 1728, aos 15 anos de idade, fugiu e converteu-se ao catolicismo, com vistas a ter a proteção de uma certa Madame Françoise-Louise de Warens, que vivia em Annecy.
Madame Françoise-Louise de Warens

Os pormenores sobre o começo da vida de Rousseau que estão narrados em suas Confissões certamente não correspondem à realidade. Porém, suas cartas e o vasto material que formam a imensa produção literária de Rousseau foram usados a fim de se chegar aos fatos mais importantes(8).

Madame de Warens vivia numa casa de pensão francesa majestosa e parece ter sido uma agente tanto do governo francês como da Igreja Católica Romana. Rousseau viveu com ela, e foi sustentado por ela, a maior parte dos 14 anos entre 1728 e 1742. Durante parte desse tempo, foi amante dela; além disso, houve períodos em que perambulou por conta própria.

Até alcançar os 30 anos de idade, Rousseau levou uma vida de fracassos e de dependência, especialmente no que se refere às mulheres.

Experimentou no mínimo 13 empregos, como gra­vador, lacaio, seminarista, músico, funcionário público, fazendeiro, professor particular, caixa, copista de partituras, escritor e secretário particular.

Em 1743 ofereceram-lhe o que parecia ser o mais alto cargo no secretariado do embaixador francês em Veneza, o Conde de Montaigu. Exerceu a função du­rante 11 meses e terminou sendo exonerado e fugindo, para não ser preso pelo senado de Veneza. Montaigu afirmou (e sua versão deve ser preferida à de Rousseau) que seu secretário foi condenado à miséria por conta de seu "temperamento vil" e "insolência inqualificável", o produto de sua "insanidade" e "enorme auto estima". (9)


Durante alguns anos, Rousseau se considerou um escritor nato. Tinha uma grande habilidade com as palavras. Era particularmente eficiente em exprimir um caso por escrito, sem um olhar demasiado escrupuloso no que concerne aos fatos; na verdade, podia ter sido um brilhante advogado. (Uma das razões que fizeram Montaigu, um militar, odiá-lo tanto foi o hábito de Rousseau de, quando tomava um ditado, bocejar ostensivamente ou mesmo andar até a janela, enquanto o embaixador lutava para achar a palavra certa.)

Em 1745, Rousseau conheceu uma jovem lavadeira, Thérèse Levasseur , 10 anos mais jovem do que ele, que aceitou ser sua companheira de forma per­manente. Isso deu uma certa estabilidade a sua vida tão inconstante.
Thérèse Levasseur

Nesse ínterim, conhecera e se tornara protegido de Denis Diderot, a principal figu­ra do Iluminismo que seria mais tarde o editor-chefe da Encyclopédie.  Assim como Rousseau, Diderot era filho de artesão e tornou-se o protótipo do es­critor que se fez por si mesmo.

Era um homem afável e um dedicado promotor de talentos.

Rousseau deveu muito a ele. Por seu intermédio, conhe­ceu o crítico literário e diplomata alemão Friedrich Melchior Grimm, bem posicionado na alta sociedade; Grimm levou-o ao famoso salon radical do Barão d'Holbach, conhecido como "le Maître d'Hôtel de la philosophie".

A influência dos intelectuais franceses apenas começava a se fazer notar e aumentaria invariavelmente na segunda metade do século. Porém, nas décadas de 1740 e 1750 a posição deles como críticos da sociedade ainda era precária.  O governo, quando se sentia ameaçado, ainda atacava-os com uma súbita brutalidade.

Rousseau mais tarde reclamaria, alto e bom som, da perseguição que sofreu, porém na verdade ele teve menos a tolerar do que muitos de seus contemporâneos.  Voltaire foi surrado publicamente com vara pelos servos de um aristocrata ao qual ofendera, ficando detido quase um ano na Bastilha. Aqueles que vendiam livros proibidos podiam ser penalizados com 10 anos de trabalho nas galés.

Em julho de 1749, Diderot foi preso e posto numa cela solitária na fortaleza de Vincennes por ter publicado um livro defendendo o ateísmo. Ficou très meses lá. Rousseau foi visitá-lo e, enquanto caminhava pela estrada de Vincennes, viu no jornal um anúncio da Academia de Letras de Dijon chamando concorrentes para um concurso de ensaios com o seguinte tema: "O ressurgimento das ciências e artes contribuiu para o aperfeiçoamento dos princípios morais?".
Denis Diderot

Esse episódio, ocorrido em 1750, representou um momento de mudança na vida de Rousseau.  Ele viu, num instante de inspiração, o que tinha a fa­zer.

Os outros participantes naturalmente falariam a favor das artes e ciên­cias. Ele defenderia a superioridade da natureza.

Subitamente, como escreve em suas Confissões, foi tomado de um entusiasmo irresistível pela "verdade, liberdade e virtude".  Diz ter afirmado para si mesmo: "Virtude, verdade! Gritarei cada vez mais alto: verdade, virtude!".  Acrescentou que seu colete estava "encharcado de lágrimas que tinha vertido sem perceber".  Essa cena deve ser verdadeira: ele chorava com facilidade.

O fato é que Rousseau decidiu, nessa hora e lugar, escrever seguindo a linha que se tornaria a essência de sua doutrina. Ganhou o prêmio por essa abordagem paradoxal do tema e ficou famoso quase da noite para o dia.

Ali estava um homem de 39 anos até então malsucedido e amargurado, ansiando por atenção e fama, que finalmente dava o passo certo.

O ensaio é fraco e, hoje, quase ilegível. Como sempre ocorre quando se analisa um acontecimento literário desse tipo, parece inexplicável que um trabalho tão insignificante tenha acarretado para seu autor tal explosão de fama; na verdade, o famoso crítico Jules Lemaitre chamou essa glorificação imediata de Rousseau de "uma das maiores provas ja­mais vistas da estupidez humana". (10)

A publicação dos Discursos sobre as artes e ciênciaso tornaram Rousseau rico, visto que, embora o livro tenha sido amplamente divulgado e tenha havido a necessidade de se imprimir cerca de 300 exemplares, o número de cópias realmente vendidas foi menor do que este e foram os livreiros que lucraram com esse tipo de livro.(11)

Jules Lemaitre
Por outro lado, o livro lhe valeu a aceitação em várias casas e propriedades aristocráticas, que tinham portas abertas para os intelectuais que estavam na moda.

Rousseau tinha possibilidade de se sustentar como copista de partituras, e muitas vezes o fez (tinha uma bela caligrafia), porém, depois de 1750, alcançaria uma posição que lhe permitiu viver da hospitalidade da aristocracia, exceto (como geralmente ocorria) quando resolvia encenar brigas violentas com aqueles que o sustentavam.

Como ocupação, tornou-se escritor profissional.  Ele sempre era fértil no que se referia a ideias e quando resolveu encarar seriamente a profissão, escreveu bem e com facilidade.
Porém, o impacto causado por seus livros, pelo menos antes de sua morte e um longo tempo depois dela, variou bastante de intensidade(12).

O Contrato social, geralmente visto como um resumo da filosofia política da maturidade de Rousseau, o qual ele começou a escre­ver em 1752 e só publicou 10 anos mais tarde, quase não foi lido até sua morte e só foi reeditado em 1791.  Uma pesquisa feita em 500 livrarias da época mostrou que apenas uma delas possuía uma cópia do livro.

A estudiosa Joan Mcdonald, que pesquisou 1114 panfletos políticos publicados entre 1789 e 1791, encontrou apenas 12 referências ao livro(13). Ela observou: "É necessário distinguir o culto a Rousseau da influência de seu pensamento político".

O culto, que começou com o ensaio premiado e continuou a crescer em força, deveu-se a dois livros. O primeiro foi seu romance A nova Heloísa, que tinha o subtítulo de Cartas de dois amantes e seguia o modelo do livro Clarissa, de Richardson.

A Nova Heloísa
Contando a estória de perseguição, sedução, arrependimento e punição de uma jovem mulher, o livro foi escrito com extraordinária habilidade de modo a apelar tanto para a curiosidade libidinosa dos leitores, especialmente das mulheres — e especialmente do mercado burguês representado pelas mulheres da burguesia —, quanto para o senso de moralidade desses leitores.  O conteúdo é bastante ousado para a época, porém a mensagem final é altamente decorosa.

O arcebispo de Paris acusou o livro de "insinuar o veneno da luxúria enquanto parece condená-lo", porém isso serviu apenas para fazer aumentar a vendagem, assim como o próprio prefácio escrito engenhosamente por Rousseau, no qual ele afirma que uma moça que lesse uma única página do livro se tornaria uma alma perdida, acrescentando que "moças puras não lêeem histórias de amor".


Na realidade, tanto as moças puras quanto as matronas respeitáveis leram o romance e se defenderam citando as conclusões morais que ele continha. Em suma, tratava-se de um best-seller nato, o que acabou se confirmando, embora a maior parte das cópias tenha sido adquirida graças a edições piratas.

O culto a Rousseau se intensificou em 1762 com a publicação do Emílio, no qual ele apresentava as inúmeras ideias sobre a natureza e a reação do homem diante dela, as quais se tornariam o alimento básico da era romântica, embora nessa época ainda fossem novidade. Também esse livro foi construído brilhantemente de forma a garantir o maior número de leitores.

Porém, a respeito de um ponto Rousseau era tão talentoso que acabou se prejudicando.

Uma das características de sua crescente influência como profeta da verdade e da virtude era apontar os limites da razão e reservar um lugar para a religião no coração dos homens.

Desse modo, incluiu no Emílio um capitulo intitulado "Profissão de fé", no qual acusava os colegas intelectuais do Iluminismo, especialmente os ateus ou simples deístas, de estarem sendo arro­gantes e dogmáticos, "afirmando, com base em seu conhecido ceticismo, que sabem tudo" e não reparado no mal que faziam aos homens e mulheres dignos ao abalarem a fé: "Destroem e esmagam com os pés tudo aquilo que o homem venera, acabam com o consolo que os sofredores tiram da religião e levam embora a única força capaz de refrear os instintos dos ricos e poderosos".

Esse era um argumento bastante eficaz, porém, a fim de compensar essa crítica, Rousseau achou necessário criticar também a Igreja estabelecida, especialmente o culto aos milagres e o estímulo à superstição.  Isso foi uma grande imprudência, especialmente porque Rousseau, para frustrar os editores piratas, resolveu correr o risco de assinar a obra.
Emílio

Ele já era suspeito aos olhos dos eclesiásticos franceses por ter renegado duas vezes a religião católica: tendo se convertido ao catolicismo, ele voltou mais tarde ao calvinismo a fim de reaver a cidadania genebresa.

Por isso, o Parlement de Paris, dominado pelos jansenistas, demonstrou uma forte objeção aos sentimentos anticatólicos contidos no Emílio, mandou queimar exemplares do livro em frente ao Palácio de Justiça e expediu um mandado para que Rousseau fosse preso. Ele foi salvo por um aviso oportuno de amigos do alto escalão do governo. Depois disso, passou alguns anos como fugitivo.

Visto que os calvinistas também desaprovavam o Emílio, mesmo fora do território católico ele foi obrigado a ficar mudando de uma cidade para outra.  Porém, nunca deixava de ter poderosos protetores na Grã-Bretanha (onde ficou durante 15 meses em 1766-67) e também na França, onde viveu de 1767 em diante. Du­rante a última década de gestão, o governo perdeu interesse por ele, e seus maiores inimigos passaram a ser ex-companheiros intelectuais, principalmente Voltaire.

Para responder a eles, Rousseau escreveu suas Confissões, terminadas em Paris, onde finalmente se estabeleceu em 1770. Não se aventurou a publicá-las, mas ficaram bastante conhecidas graças às leituras que ele fazia nas casas da alta sociedade.

Perto de sua morte, em 1778, sua reputação estava prestes a se elevar novamente, o que aconteceu quando os revolucionários tomaram o poder.

Desse modo, Rousseau experimentou um sucesso considerável mesmo enquanto vivo. Segundo uma visão imparcial moderna, ele não teve muito do que se queixar. Apesar disso, Rousseau é um dos personagens mais lamurientos da história da literatura.

Ele insistia em que sua vida tinha sido cheia de sofrimento e perseguição. Reiterava tantas vezes a queixa, e de uma for­ma tão angustiante, que nos sentimos obrigados a acreditar nele.

Em um ponto, era inflexível: sofria de uma má saúde crônica. Era "um pobre desgraçado enfraquecido pela doença (. . .), debatendo-se, cada dia de minha vida, entre a dor e a morte".

"A natureza", acrescenta ele, "que me concebeu para o sofrimento, me legou uma constituição imune à dor para que, incapaz de exaurir minhas forças, ela possa sempre se fazer sentir com a mesma intensidade(14).

É verdade que ele sempre teve problemas com seu pênis. Numa carta a seu amigo, o doutor Tronchin, de 1755, refere-se à "má-formação de um órgão, com a qual nasci".

Seu biógrafo, Lester Crocker, depois de um diagnóstico cuidadoso, escreveu: "Estou convencido de que Jean-Jac­ques foi uma vítima de hipospadia congênita, uma deformidade do pênis na qual a uretra tem uma abertura em alguma região de sua superfície ven­tral"(15).
Hipospadia

Em sua vida adulta, a doença se transformou numa estenose, sendo necessário o uso doloroso de um cateter, o que agravava física e psicologicamente o problema. Tinha necessidade de urinar constantemente, e isso lhe trouxe dificuldades na época em que convivia com a alta sociedade: "Ainda tenho sobressaltos ao me imaginar", escreveu ele, "num círculo de mulheres, sendo obrigado a esperar até que uma conversa agradável termine (. . .). Quando finalmente chego a uma escada bem iluminada, lá estão outras mu­lheres para me deter, e depois surge um pátio cheio de carruagens em cons­tante movimento prontas a me esmagar, e as criadas das damas que me observam, e os lacaios enfileirados ao longo das paredes rindo de mim. Não encontro uma só parede ou um mísero cantinho que sirva para meu propósito. Logo, logo, terei de urinar diante de todos e sobre a meia branca de uma perna nobre"(16).

Essa passagem denota autocomiseração e, junto com outros episódios, nos faz desconfiar que a saúde de Rousseau não era tão ruim quanto ele faz parecer. Às vezes, quando lhe serve como argumento, ele alude a sua boa saúde. Sua insônia era em parte fantasiosa, visto que muitas pessoas testemunharam que ele roncava. David Hume, que o acompanhou na viagem à Inglaterra, escreveu: "Ele é um dos homens mais saudáveis que já conheci. Passava 10 horas durante a noite sob condições climáticas terríveis no convés, onde todos os marinheiros morriam de frio, e não sentia nada depois"(17).

A preocupação incessante - justificada ou não - com relação à saúde fazia parte da dinâmica original da autocomiseração que acabou enredando-o e influenciando-o em cada episódio de sua vida.

David Hume
Desde muito cedo, criou o hábito de contar o que chamava de sua "história", a fim de merecer a compaixão especialmente das mulheres provenientes de boas famílias. Se auto- intitulava "o mais infeliz dos mortais", falava do "destino tenebroso que persegue meus passos", afirmava que "poucos homens derramaram tantas lágrimas" e insistia: "Meu destino é de um tipo que ninguém ousaria descre­ver, e ninguém acreditaria nele".

Na verdade, ele descrevia esse destino constantemente, e muitos acreditaram nele, antes de conhecer melhor seu ca­ráter. E mesmo depois disso, geralmente ainda sentiam uma certa compaixão.


Madame d'Epinay, uma protetora a quem ele tratou de forma abominável, observou, mesmo depois que já tinha aberto os olhos: "Ainda me sinto comovida com o jeito simples e original com que ele narra seus reveses".

Ele era o que no exército se chama de "soldado velho", um vigarista experiente no que diz respeito ao jogo psicológico. Não admira que, quando jovem, tenha escrito cartas pedindo assistência, sendo que uma delas foi encontrada. Enviara-a ao governador de Sabóia e nela pedia uma pensão alegando que sofria de uma terrível doença desfiguradora e não demoraria a morrer."

Por trás da autocomiseração estava um egoísmo exagerado, um sentimento de que ele era bastante diferente dos outros homens, tanto nos sofrimentos quanto nas qualidades.

Escreveu: "O que suas angústias podem ter em comum com as minhas? Minha situação é singular, sem precedente desde o início dos tempos (...)"- Do mesmo modo: "Está para nascer uma pessoa que me ame com a intensidade que eu amo". "Ninguém teve tanto talento para amar". "Nasci para ser o maior amigo que jamais existiu". "Deixaria esta vida apreensivo se chegasse a conhecer um homem mais virtuoso do que eu". "Mostre-me um homem melhor do que eu, com um coração mais amo­roso, mais terno, mais sensível (...)". "A posteridade me honrará (...) porque mereço". "Regozijo-me comigo mesmo". "(. . .) meu consolo está em minha autoestima". "(...) se houvesse um único governo esclarecido na Europa, ele mandaria erigir estátuas em minha homenagem"(19).

Não admira que Burke tenha afirmado: "A vaidade era um vício seu que estava um degrau abaixo da loucura".

Fazia parte da vaidade de Rousseau acreditar que era incapaz de ter emoções mesquinhas. "Sinto-me muito superior a ódio". "Amo a mim mesmo em demasia para odiar quem quer que seja". "Não conheço as emo­ções relacionadas com o ódio, e o ciúme, a crueldade e a vingança jamais invadiram meu coração (. . .) já senti raiva ocasionalmente, mas nunca dis­simulei nem jamais guardei ressentimento".

Na verdade, ele guardava ressentimento com frequência e dissimulava ao persistir nisso. Os homens percebiam tudo.

Rousseau foi o primeiro intelectual a se autoproclamar, repetidas vezes, amigo de toda a humanidade. Porém, mesmo amando a humanidade em geral, desenvolveu uma forte predisposição para brigar com seres humanos em particular.

Uma das vítimas, seu amigo de outros tempos, o dr. Tronchin, de Genebra, reclamou: "Como é possível que o amigo da humani­dade não seja amigo dos homens, ou que seja tão pouco amigo?".  Como resposta, Rousseau defendeu seu direito de fazer reprimendas àqueles que mereciam: "Sou o amigo da humanidade, e há homens em toda parte. O amigo da verdade encontra também homens malévolos por toda parte — e não é preciso ir muito longe"(20).

Sendo um egoísta, Rousseau costumava confundir a hostilidade dirigida a ele com a hostilidade relacionada com a virtude e a verdade enquanto tais. Por conseguinte, nada que seus inimigos fizessem era pior do que tal hostilidade; a própria existência deles justificava a doutrina da punição eterna: "Não sou violento por natureza", contou a Madame d'Épinay, "mas quando percebo que não há justiça no mundo para esses monstros, gosto de pensar que há um inferno esperando por eles".(21)
Madame d´Épinay

Visto que Rousseau era vaidoso, egoísta e brigão, como se explica o fato de ter havido tantas pessoas prontas a serem suas protetoras?  A resposta para essa pergunta nos remete ao centro de seu caráter e de seu significado histórico.

Em parte por acidente, em parte por instinto, em parte por maquinação deliberada, ele foi o primeiro intelectual a explorar sistematicamente a culpa pelo privilégio.

E o fez, sobretudo, e de um modo completamente novo, pelo culto reiterado do primitivismo. Foi um protótipo daquele personagem da era moderna, o jovem revoltado.

Não era antissocial por natureza. Na verdade, desde muito cedo queria brilhar na alta sociedade. Em particular, gostava do sorriso das mulheres de sociedade. "As costureiras", escreveu ele, "as camareiras e as empregadas de loja não me atraíam. Precisava de jovens damas."  Porém, visivelmente ele era um provinciano incorrigível, e era, em vários aspectos, rude e mal-educado.

Suas primeiras tentativas de entrar para a alta sociedade, na década de 1740 - quando resolveu jogar o jogo dessa sociedade -, representaram completos fracassos; sua primeira tentativa de ganhar os favores de um mulher casada foi um desastre humilhante(22).

No entanto, depois que percebeu, com o sucesso de seu ensaio, as ricas recompensas de se jogar a carta certa da natureza, ele inverteu sua tática. Ao invés de tentar ocultar seu primitivismo, enfatizou-o. Transformou-o numa virtude, e a estratégia funcionou.

Era costumeiro, entre a nobreza francesa mais bem-educada, que se sentia cada vez mais constrangida no antigo sistema de privilégios de classe, proteger escritores como se fossem talismãs para manter a maldade afastada. O crítico social da época, C.P. Duclos, es­creveu: "Entre os magnatas, mesmo aqueles que realmente não gostam de intelectuais fingem que gostam, já que está na moda"(23).

Muitos escritores, patrocinados dessa maneira, procuravam imitar aqueles que mais se destacavam. Ao fazer o inverso, Rousseau tornou-se um convidado muito mais interessante — e portanto, desejável — de seus salões, um Bruto da Natureza ou um "Animal", como gostavam de chamá-lo.

Ele exagerava de propósito suas emoções para se opor às convenções, o impulso do coração sendo preferível às boas maneiras. "Minhas emoções", dizia, "são do tipo que não podem ser dissimuladas. Elas me desobrigam de ser cortês." Ele reconheceu que era "grosseiro, desagradável e rude em essência. Não dou dois centavos por seus cortesãos. Sou um bárbaro". Ou então: "Tenho coisas em meu coração que me isentam de ser bem-educado".

Essa atitude se adequava muito bem a sua prosa, que era bem mais sim­ples do que as orações rebuscadas de muitos escritores da época. A maneira como falava de forma direta se ajustava admiravelmente com o tratamento sem meias-palavras que dispensava ao sexo (A nova Heloísa foi um dos primeiros romances em que se mencionou o nome de peças femininas como o espartilho).

Rousseau acentuava sua rejeição das normas sociais por meio de uma simplicidade estudada e do uso de roupas largas, o que se tornou a marca distintiva de todos os jovens românticos. Ele recordaria mais tarde: "Comecei minha reforma por meu traje. Abandonei os galões dourados e as meias brancas e joguei fora uma peruca redonda. Abandonei minha espada e vendi meu relógio".

O próximo passo foi deixar o cabelo crescer, o que ele chamou de "meu estilo descuidado habituai, com uma barba irregular". Ele foi o primeiro dos intelectuais cabeludos.

Com o passar dos anos, desenvolveu vários artifícios relacionados com seu vestuário para atrair para si a atenção das pessoas. Em Neufchátel, Allan Ramsay pintou um retrato seu no qual usa um manto armênio, uma espécie de cafetã. Chegou a usar esse robe para ir à missa. A população local a princípio desaprovou, porém logo se acostumou com o traje, que em pouco tempo se tornou um traço distintivo de Rousseau. Durante sua famosa viagem à Inglaterra, usou esse manto no teatro Drury Lane e ficou tão ansioso para responder aos aplausos da multidão que a sra. Garrick teve de agarrar o manto para impedir que Rousseau caísse do camarote(24).
Allan Ramsay

Conscientemente ou não, ele era bastante habilidoso em se autopromover: suas excentricidades, sua grosseria em sociedade, seu extremismo pessoal, até mesmo suas brigas atraíam muitíssima atenção e sem dúvida faziam parte do interesse que despertava tanto em seus patronos aristocratas quanto em seus leitores e admiradores.

Trata-se de um fato significativo, como veremos adiante, que uma atuação como relações-públicas de si próprio — e não apenas por meio de particularidades no vestir ou na aparência — tenha se tornado um fator importante no sucesso de vários intelectuais de ponta. Nesse particular, assim como em muitos outros aspectos, Rousseau foi o pioneiro.

Quem pode dizer que agiu errado? A maioria das pessoas resiste às ideias, principalmente às novas. No entanto, é fascinada por personagens. Ter uma personalidade extravagante é uma maneira de dourar a pílula e induzir o público a voltar sua atenção para obras que tratam de ideias.

Como parte de sua técnica para assegurar a divulgação, a atenção e a aceitação de suas obras, Rousseau, que era um bom psicólogo, transformou numa virtude positiva o mais odioso dos vícios: a ingratidão. Para ele, esse não era um defeito.

Apesar de manifestar espontaneidade, ele era, na verdade, um homem calculista; e desde que se convencera de que era o mais correto dos seres humanos segundo os critérios morais, a dedução lógica era que as outras pessoas eram ainda mais calculistas do que ele, e por motivos mais mesquinhos.

Assim, em todo negócio que fizessem com ele, procurariam levar vantagem, e por isso ele teria de excedê-los em astúcia. Desse modo, a base a partir da qual ele negociava com as outras pessoas era bem simples: elas davam, ele recebia. Justificava tal atitude com um argumento audacioso: visto ser uma pessoa incomparável, quem quer que o ajudasse estaria, na verdade, fazendo um favor a si próprio.

Estabeleceu essa maneira de agir em sua resposta à carta da Academia de Dijon em que o prêmio era-lhe concedido. Es­creveu ele que, em seu ensaio, tinha resolvido tomar o caminho impopular da verdade, "e pela generosidade que tiveram em homenagear a minha coragem, vocês homenagearam ainda mais a vocês mesmos. Sim, cavalheiros, o que fizeram por minha glória representou uma coroa de louros que colocaram em vocês próprios".

Usou a mesma técnica quando sua fama já tinha lhe proporcionado ofertas de hospitalidade; na verdade, essa técnica se tornaria a segunda parte de sua estratégia.

Primeiro, insistia em que essa benevolência para com ele era mais do que justa. "Sendo um homem doente, tenho direito à indulgência que a humanidade deve àqueles que sentem dor". Ou ainda: "Sou pobre, e (...) mereço uma ajuda especial". Desse modo, se­gundo ele próprio, aceitar uma ajuda — o que só faria pressionado — era algo bastante difícil para ele: "Quando me rendo diante de prolongadas súplicas e aceito uma oferta que tinha sido repetida tantas vezes, eu o faço visando mais a paz e a tranquilidade do que o benefício próprio. E quanto quer que tenha custado à pessoa que me ajudou, na verdade ela está em débito comigo - pois custou mais para mim". Daí em diante, já podia impor condições para aceitar, por exemplo, o empréstimo de um cottage orné ou de um pequeno castelo.

Ele não se incumbia de nenhuma obrigação social, já que "minhas ideias de felicidade é (...) nunca ter de fazer nada que eu não queira fazer". Nesse sentido, escreveu certa vez para um anfitrião: "Devo insistir em que você me deixe completamente livre". "Se você me fizer a menor contrariedade, não me verá nunca mais."

Suas cartas de agradecimento (se é que essa é a melhor palavra para denominá-las) geralmente eram documentos desagradáveis: "Eu lhe agradeço", escreveu numa delas, "pela visita que você me convenceu a fazer, e meus agradecimentos teriam sido mais sinceros se você não tivesse me obrigado a pagar tão caro por ela"(25).

Como assinalou um dos biógrafos de Rousseau, ele estava sempre armando pequenas armadilhas para as pessoas. Enfatizava suas dificuldades e sua pobreza e então, quando alguém oferecia ajuda, simulava, com ar surpreso ou mesmo indignado, ter recebido uma ofensa. Assim: "Sua proposta gelou meu coração. Você está interpretando erroneamente seus próprios inte­resses ao tentar transformar um amigo num criado particular". E acrescentava: "Não estou de má vontade para ouvir o que você tem a propor, a menos que você entenda que eu não estou à venda". O pretendente a anfitrião, a es­sa altura embaraçado, era então levado a reformular seu convite nos termos de Rousseau(26).

Enciclopédie
Um dos aspectos da habilidade de Rousseau para persuadir as pessoas — e não apenas aquelas que estivessem mais bem posicionadas na escala social — era que as palavras corriqueiras de agradecimento não faziam parte do vocabulário dele. Por conseguinte, escreveu ao Duque de Montmorency-Luxemburgo, que lhe emprestara um castelo: "Eu não o elogio nem agradeço a você. Apesar disso, vivo em sua casa. Cada um tem sua linguagem própria — eu já falei tudo o que tinha para falar na minha".  O fingimento funcionou magistralmente, tendo a duquesa respondido, de modo a se desculpar: "Não é você que tem de agradecer — somos o marechal e eu que estamos em débito com você"(27).

Porém, Rousseau não estava disposto a ter uma existência apenas agradável e ao estilo de Harold Skimpole. Ele era complicado e interessante demais para isso. Ao lado de seu caráter fria e obstinadamente calculista, havia um autêntico elemento de paranoia, o qual não permitia que ele se estabelecesse numa vida tranquila caracterizada por um parasitismo autocentrado.

Ele brigava, com violência e no mais das vezes de forma permanente, com quase todos aqueles com quem convivia de perto, e especialmente com aqueles que o sustentavam. É impossível examinar a ladainha dolorosa e repetitiva dessas brigas sem chegar à conclusão de que ele era um homem mentalmente doente. Essa doença não excluía uma grande e singular capacidade intelectual, sendo que a combinação das duas era perigosa tanto para Rousseau quanto para as outras pessoas.

A convicção de uma total honradez era, é claro, um sintoma primário de sua doença, e se Rousseau não possuísse talento em nenhuma área, ele podia ter-se curado, ou então, na pior das hipóteses, se limitado a representar uma pequena tragédia pessoal. Mas seus dotes extraordinários como escritor proporcionaram-lhe aceitação, fama e até popularidade. Para ele, isso foi uma prova de que sua convicção de estar sempre certo não era apenas um juízo subjetivo, mas sim a opinião do mundo inteiro — excetuando-se, é claro, seus inimigos.

Esses inimigos eram sempre antigos amigos ou benfeitores que (concluía Rousseau, depois de brigar com eles) tinham tentado, sob a falsa aparência da amizade, explorá-lo e destruí-lo. A ideia de uma amizade desinteressada lhe era estranha, e visto que ele era melhor que os outros homens e não era capaz de sentir tal emoção, concluía, com tanto mais razão, que esses homens também não podiam senti-la. Por isso, os atos de todos os seus "amigos" eram cuidadosamente observados por ele desde o início, e no momento em que davam um passo em falso, já estava ciente de tudo.

Brigou com Di­derot, a quem devia mais do que a qualquer outro. Brigou com Grimm. Teve uma desavença particularmente violenta e dolorosa com Madame d'Épinay, sua mais afetuosa benfeitora. Brigou com Voltaire — o que não era muito difícil. Brigou com David Hume, que tinha lhe dado o devido valor como mártir literário, levara-o para a Inglaterra, preparara uma recepção digna de um herói e fizera tudo que estava a seu alcance para tornar a visita um sucesso e para fazer Rousseau feliz.

Houve várias desavenças menores, por exemplo, com seu amigo genebrês, o dr. Tronchin. Rousseau registrou gran­de parte das brigas escrevendo imensas cartas de exposição de protesto. Es­ses documentos estão entre suas obras mais brilhantes, são verdadeiros milagres da capacidade retórica, em que as provas são engenhosamente inventadas, a história é reescrita e a cronologia confundida — tudo com uma ingenuidade extraordinária — a fim de provar que o receptor é um monstro.

A carta que escreveu para Hume, em 10 de julho de 1766, que corresponde a 18 páginas de fólio (25 páginas impressas) e foi descrita pelo biógrafo de Hume como sendo "coerente, com a coerência lógica perfeita da demência (. . .), permanece como um dos documentos mais brilhantes e fascinantes ja­mais produzidos por uma mente perturbada". (28)

Com o tempo, Rousseau passou a achar que esses atos individuais de inimizade por parte de homens e mulheres que tinham fingido gostar dele não eram isolados uns dos outros, mas faziam parte de uma estrutura que se encadeava. Tratava-se de agentes de uma conspiração ramificada e a longo prazo com o fim de enganá-lo, importuná-lo e mesmo destruí-lo, além de querer difamar sua obra.

Tendo atuado também durante sua vida pregressa, ele acreditava que essa conspiração datava da época em que, com 16 anos de idade, fora lacaio da Condessa de Vercellis: "Acredito que desde essa época eu era vítima de um jogo pernicioso de interesses secretos, voltados contra mim desde então e que me causaram uma compreensível antipatia em relação à ordem aparente responsável por esse jogo".

Na realidade, Rousseau era tratado muito bem pelas autoridades francesas, em comparação com outros escritores. Houve apenas uma tentativa de prendê-lo, e o ilustre crítico Malesherbes geralmente fazia todo o possível para ajudá-lo a publicar sua obra. Porém, a sensação de Rousseau de ser vítima de uma rede internacional tornou-se mais forte, principalmente durante sua visita à Inglaterra.

Malesherbes
Passou a achar que Hume estava arquitetando o plano, sendo auxiliado por um grande número de colaboradores. A uma certa altura, escreveu para Lord Camden, o Lorde Chanceler, explicando que sua vida corria perigo e pedindo para sair do país acompanhado por uma escolta armada. Porém, não era algo de incomum para os lordes chanceleres receber cartas de loucos, e Camden não tomou nenhuma atitude.

Por sua vez, as atitudes de Rousseau em Dôver, pouco antes de partir definitivamente, sem dúvida foram histéricas. Ele correu a bordo de um barco, se trancou numa cabine, depois saltou para um poste e se dirigiu à multidão com a afirmação extravagante de que Thérèse agora colaborava com o plano e estava tentando mantê-lo à força na Inglaterra. (29)

De volta ao continente, ele deu para pregar cartazes em sua porta da frente com listagens das queixas que tinha contra os mais diversos grupos sociais que o perseguiam: os padres, os intelectuais que estavam na moda, as pessoas comuns, as mulheres, os suíços, etc.  Convenceu-se de que o Duque de Choiseul , que era ministro das Relações Exteriores da França, se encarregava pessoalmente da conspiração internacional e passava grande parte de seu tempo organizando a vasta rede de pessoas cujo trabalho era transformar a vida de Rousseau numa desgraça. Os acontecimentos de âmbito mundial, como a tomada de Córsega - para a qual Rousseau redigira uma constituição - pela França, eram ingenuamente encaixados na história imaginária.

Estranhamente, foi graças a um pedido de Choiseul que Rousseau fez, para os nacionalistas poloneses, uma constituição similar destinada a uma Polônia independente, e quando Choiseul saiu do poder em 1770, Rousseau ficou aflito: mais uma artimanha agourenta!

Rousseau dizia que nunca descobriria o crime original pelo qual "eles" estavam dispostos a puní-lo (excetuando-se sua identificação com a verdade e a justiça). Porém, não havia dúvidas quanto aos detalhes da intriga; ela era "enorme, inimaginável": "Eles construirão ao meu redor uma impenetrável edificação de sombras. Eles me enterrarão vivo num caixão (. . .). Se eu viajar, tudo será preparado de antemão de modo a me controlar aonde quer que eu vá. Os passageiros, os cocheiros, os estalajadeiros, todos eles serão avisados (. . .). Essa aversão por mim será espalhada ao longo de minha estrada para que, a cada passo que eu dê, por cada lugar que eu conhecer, meu coração seja dilacerado".

Duque de Choiseul
Suas últimas obras, os Diálogos comigo mesmo (cuja redação se iniciou em 1772) e Os devaneios de um caminhante solitário (1776), refletem essa mania de perseguição.

Quando terminou os Diálogos, passou a achar que "eles" pretendiam destruir os originais, e no dia 24 de fevereiro de 1776 foi à Catedral de Notre Dame com a intenção de exigir proteção para o manuscrito no altar-mor. Porém o acesso ao coro, misteriosamente, estava fechado. Tratava-se de um mau agouro, sem dúvida.  Então ele fez seis cópias e colocou-as - seguindo alguma superstição - nas mãos de seis pessoas.

Resultado: uma delas foi parar com Brooke Boothby, de Lichfield, uma literata que era amiga do dr. Johnson, e foi ela quem primeiro publicou o livro, em 1780. Nessa época, como se sabe, Rousseau já tinha morrido, e até o último minuto estivera certo de que havia milhares de pessoas atrás dele . (30)

 Os tormentos causados por esse tipo de demência são um fato comprovado, e de vez em quando é impossível deixar de ter pena de Rousseau. Po­rém, em seu caso, isso não pode servir de desculpa.

Ele foi um dos mais in­fluentes escritores que já existiram. Auto-intitulava-se o "amigo da humanidade" e, em particular, o defensor dos princípios de verdade e virtude. Era - e, na verdade, continua sendo - aceito enquanto tal pela maioria. Por isso, é necessário examinar mais de perto seu comportamento como perpetuador da verdade e homem de virtude.

O que se percebe? No que diz respeito à ver­dade, as consequências foram bastante significativas, visto que, depois de sua morte, Rousseau se tornou conhecido principalmente por suas Confissões. Esse livro foi um esforço autoconsciente — nunca tentado antes — de contar a verdade mais íntima sobre a vida de um homem.

O livro constituía um novo tipo de autobiografia excessivamente sincera, do mesmo modo que o livro de James Boswell sobre a vida do dr. Johnson, publicado 10 anos mais tarde (1791), representou um novo tipo de biografia excessivamente minuciosa.

Rousseau defendeu enfaticamente a veracidade desse livro. No inverno de 1770-71, deu conferência acerca dele em salões lotados que duravam de 15 a 17 horas, com intervalos para as refeições.

Seus ataques contra suas vítimas eram tão insuportáveis que uma delas, a Madame d'Épinay, pediu às autoridades que acabassem com tais encontros. Rousseau concordou em parar, porém na última conferência acrescentou essas palavras: "Eu disse a verdade. Se alguém sabe de algum fato que contradiga o que acabo de dizer, mesmo se prová-lo mil vezes, tal fato será mentiroso e constituirá uma impostura (. . .) [quem quer que] observe com os próprios olhos minha nature­za, meu caráter, meus princípios morais, minhas inclinações, prazeres e hábitos e acredite que sou um homem desonesto, essa pessoa merece, ela própria, ser estrangulada". Isso causava um grande silêncio.

Rousseau justificava sua fama de só contar a verdade dizendo-se possuidor de uma memória extraordinária. Mais importante: convenceu os leitores de que estava sendo sincero pelo fato de ser o primeiro homem a revelar detalhes de sua vida sexual, não num estilo alardeador machista mas, ao contrário, com vergonha e relutância. Como ele diz corretamente, referindo-se "ao labirinto escuro e sujo" de suas experiências sexuais: "O mais difícil de contar não é o que fizemos de criminoso, mas o que nos faz sentir ridículos e envergonhados".

Porém, até que ponto essa relutância era sincera?

Em Turim, ainda jovem, perambulava pelas ruas escuras da periferia exibindo as nádegas para as mulheres: "O prazer descomunal que eu sentia expondo-as diante de seus olhos não pode ser descrito". Rousseau era um exibicionista nato, tanto no âmbito sexual quanto em outros, e havia uma certa graça no modo como narrava sua vida sexual.

Descreveu seu masoquismo: como gostava que a severa irmã do pastor - a Mademoiselle Lambercier - lhe desse palmadas nas nádegas despidas e como provocava propositadamente essa punição, fazendo travessuras. Ou como incitou uma garota mais velha — a Mademoiselle Groton — a bater nele: "Cair aos pés de uma senhora autoritária, obedecer a suas ordens, pedir seu perdão — isso era para mim um doce motivo de prazer"(31).

Conta como, ainda garoto, começou a se masturbar. Defende essa prática porque ela impede que os jovens contraiam doenças venéreas e porque "esse vício, que os envergonhados e os tímidos acham tão cômodo, tem mais de um atrativo para aqueles que têm imaginação: ele os torna capazes de sujeitar todas as mulheres aos seus caprichos e faz com que a mulher bonita satisfaça o seu desejo sem o consentimento dela".(32)

Relatou uma tentativa que um homossexual fez de seduzi-lo no hospício de Turim.(33) Admitiu ter dividido os favores de Madame de Warens com o jardineiro dela. Descreveu como foi incapaz de fazer amor com uma garota ao perceber que um de seus seios não tinha mamilo, e relembrou como, em seguida, ela o rejeitou violentamente, dizendo: "Deixe as mulheres sozinhas e vá estudar matemática".
Rousseau e Warens

Confessou que voltou a praticar a masturbação quando era mais velho como uma alternativa mais cômoda do que manter uma vida amorosa ativa. Dava a impressão, em parte de propósito e em parte inconscientemente, de que sua atitude em relação ao sexo continuou sendo, em essência, infantil. Por exemplo: sempre chamou sua amante, Madame de Warens, de "Mãezinha".

Essas confissões infamantes criaram a confiança em seu respeito pela verdade. Ele a reforçou ao relatar outros episódios vergonhosos, não de cunho sexual mas envolvendo roubos, mentiras, covardia e abandono. Porém, havia um aspecto de engenhosidade nisso tudo.

As acusações que fazia con­tra si mesmo tornavam as acusações posteriores contra os inimigos muito mais convincentes. Como Diderot observa, com raiva, "ele descreve a si mesmo com cores odiosas para dar a suas acusações injustas e cruéis a aparência de verdade".

Além disso, as autoacusações eram fingidas, pois toda vez que havia uma crítica a si próprio, ele acompanhava o mero reconhecimento dessa crítica com uma habilidosa apresentação de desculpas, e o leitor acabava se compadecendo com ele e lhe dando crédito por sua franca sinceridade. (34)

Desse modo, outra vez as verdades que Rousseau apresenta com frequência passam a ser meias-verdades: sua sinceridade seletiva é, em certa medida, o aspecto mais insincero das Confissões e de suas cartas.

Os "fatos", que ele confessa com tanta franqueza, geralmente se mostram, à luz do pensamento moderno, inexatos, deturpados ou inexistentes. Isso às vezes é provado até mesmo por exemplos intrínsecos às obras.

Assim, faz dois rela­tos diferentes da investida homossexual, um no Emílo e outro nas Confissões.

Sua memória capaz de lembrar-se de tudo não passava de um mito. Ele cita a data errada da morte de seu pai e o descreve como tendo nessa ocasião "cerca de 60 anos", quando na verdade tinha 75. Mente a respeito de literalmente todos os detalhes de sua estada no hospício em Turim, um dos epi­sódios mais críticos do começo de sua vida.

Aos poucos fica claro que não se pode acreditar em nenhuma afirmativa contida nas Confissões que não seja comprovada por uma fonte externa. Na verdade, é difícil não concordar com um dos mais lúcidos críticos modernos de Rousseau, J.H. Huizinga, quanto ao fato de que a afirmação insistente nas Confissões de que o que se narra é verdadeiro e sincero torna as deturpações e falsificações contidas no livro particularmente vergonhosas: "Quão atentamente se leia e releia, quão fundo se penetre em sua obra, mais camadas de ignomínia vão se revelando".(35)

O que torna a insinceridade de Rousseau tão perigosa - o que tornava sua falsidade tão temida por seus ex-amigos - era a habilidade e o brilhantismo diabólicos com que era expressada.

Como afirma seu imparcial biógrafo, o professor Crocker: "Todos os relatos que faz sobre suas brigas (como no caso do episódio de Veneza) têm um irresistível poder de persuasão e eloquência e têm um ar de sinceridade; desse modo, os fatos causam um choque no leitor"(36).

Isso acontece no que diz respeito à consideração que Rousseau tinha pela verdade. E quanto à virtude? Muito poucos de nós levam uma vida que resiste a ser examinada mais de perto, e há algo de maldoso em submeter a vida de Rousseau -  posta a nu de forma terrível pelo trabalho de milhares de estudiosos - a um julgamento moral.

Porém, uma vez que se aceita suas reivindicações, e ainda mais sua influência na ética e no comportamento, não nos resta outra alternativa. Ele era um homem - segundo dizia - que tinha nascido para amar, e por isso ensinou a doutrina do amor com mais persistência do que muitos eclesiásticos.

Então, de que modo expressava seu amor por aqueles que a natureza tinha posto perto dele?

A morte da mãe o privou, desde o nascimento, de ter uma vida familiar normal. De um modo ou de outro, não pôde sentir nada em relação a ela, pois nunca a conheceu. Porém, não demonstrava nenhuma afeição ou interesse real em relação a outros membros da família. Seu pai não tinha nenhum valor para ele, e sua morte representou apenas uma oportunidade de receber a herança. Nessa época, o interesse de Rousseau por seu irmão, desaparecido havia tanto tempo, foi reavivado na medida em que, ao certificar-se de que ele estava morto, o dinheiro da família seria seu. Interessou-se pela própria família em termos monetários.

Nas Conflssões, descreve "uma de minhas aparentes contradições — a união de uma avareza quase sórdida com um grande desprezo pelo dinheiro"(37).

Não há muitas provas de tal desprezo em sua vida. Segundo relatou, quando a herança da família foi homologada em seu favor, recebeu a ordem de pagamento e, com uma suprema força de vontade, evitou abrir o envelope até o dia seguinte. Então: "Abri-o com uma lentidão propositada e lá estava a ordem. Senti prazer por vários motivos, na hora, mas juro que o principal foi ter vencido a mim mesmo"(38).


Se essa era a atitude em relação a sua família natural, como tratava a mulher que se tornou, em certo sentido, sua mãe de criação, Mme. de Warens?


A resposta é: de forma detestável.

Ela o tinha salvado da miséria no mínimo em quatro ocasiões, porém quando mais tarde ele enriqueceu e ela tornou-se pobre, pouco fez por ela. Segundo ele próprio, enviou-lhe uma "pequena" quantia quando herdou as propriedades da família, na década de 1740, porém recusou-se a enviar mais porque seria tomado dela por aqueles "patifes" que a rodeavam(39). Isso era desculpa. Depois disso, seus apelos para que ele a ajudasse não tiveram resposta.


Ela passou os dois últimos anos de vida acamada, e sua morte, em 1761, deve ter sido devido à má nutrição. O Conde de Charmette, que conhecia a ambos, condenou veementemente o fato de Rousseau não ter "retribuído pelo menos uma parte do que ele havia custado a sua generosa benfeitora".


Rousseau então continuou a tratá-la, em suas Confissões, com uma completa falsidade, aclamando-a como "a melhor das mulheres e mães". Afirmou que não lhe tinha escrito porque não queria que ela se sentisse infeliz ao tomar conhecimento de todos os problemas dele.



Sophie d'Houdetot
E terminava: "Vá, aproveite os frutos de sua caridade e prepare para seu aluno o lugar que ele espera algum dia alcançar a seu lado! Seja feliz em seus infortúnios porque o Céu, ao eliminá-los, a dispensou de partilhar do espetáculo cruel no qual esse aluno representa". Era característico em Rous­seau tratar a morte dela num contexto puramente egocêntrico.

Será que Rousseau foi capaz de amar uma mulher sem restrições egoístas?

Segundo ele próprio, "o primeiro e único amor de minha vida" foi So­fia, ou Condessa d'Houdetot, cunhada de sua benfeitora, a Mme. d'Épinay.

Pode tê-la amado, porém sempre disse que tinha "tomado a precaução" de escrever-lhe cartas de amor de um modo que sua publicação fosse tão prejudicial para ele quanto para ela.

 
Sobre Thérèse Levasseur -  a lavadeira de 23 anos que se tornou sua amante em 1745 e assim continuou até que ele morresse, 33 anos depois — ele disse: "Nunca senti por ela o menor lampejo de amor (...) as necessidades sensuais que satisfiz com ela eram puramente sexuais e não se relacionavam com ela como indivíduo". "Disse-lhe", escreveu, "que nunca a deixaria e nunca me casaria com ela." Um quarto de século depois, realizou um pseudocasamento com Thérèse diante de uns poucos amigos, porém aproveitou a ocasião para fazer um discurso vangloriador no qual afirmava que a posteridade erigiria estátuas em homenagem a ele e "então não será nenhuma honra inútil ter sido amigo de Jean-Jacques Rous­seau".

De certo modo, ele desprezava Thérèse por ser uma jovem criada vulgar e ignorante e desprezava a si próprio por ser seu cônjuge. Acusava a mãe dela de ser avarenta e o irmão de roubar suas 42 camisas finas (não havia provas de que a família dela fosse tão ruim quanto ele faz parecer). Dizia que Thérèse não apenas não sabia ler ou escrever como era incapaz de ver as horas e não sabia em que dia do mês se estava.  Nunca saía com ela e quando convidava alguém para jantar, ela não tinha permissão de se sentar à mesa. Trazia a comida, e ele "fazia gracinhas com ela".

Para agradar a Duquesa de Montmorency-Luxemburgo, compilou uma lista de erros de sintaxe cometidos por Thérèse.


Mesmo alguns de seus maiores amigos chocavam-se com a maneira desdenhosa como a tratava. As pessoas da época dividiam-se ao julgá-la, algumas considerando-a uma companheira maliciosa; os incontáveis "hagiógrafos" de Rousseau descreveram-na da pior forma possível a fim de justificar seu comportamento vil em relação a ela. Porém, ela também teve fortes defensores(40) .

Na verdade, para fazer justiça a Rousseau, ele também a elogiava: tinha "o coração de um anjo", era "terna e virtuosa", "uma ótima conselheira" e "uma garota simples e nada namoradeira". Achava-a "tímida e facilmente  dominável".


De fato, não está claro que Rousseau a tenha entendido, provavelmente porque preocupava-se demais consigo próprio para voltar a atenção para ela.

Seu retrato mais fidedigno foi feito por James Boswell, que visitou Rousseau cinco vezes em 1764 e mais tarde acompanhou Thérèse numa viagem à Inglaterra(41). Ele achou-a "uma garota francesa pequena, vívida e sim­ples", seduziu-a a fim de se aproximar mais de Rousseau e conseguiu obter dela duas cartas que Rousseau tinha escrito para ela (sô escreveria mais uma)(42).


Essas cartas revelam como ele era afetuoso e como mantinha com ela um relacionamento íntimo. Ela contou a Boswell: "Estou há 22 anos com Monsieur Rousseau. Não abandonaria minha posição nem para ser rainha da França". Por outro lado, assim que Boswell se tornou seu companheiro de viagem, seduziu-a sem a menor dificuldade.


O relato minucioso que ele fez desse caso foi retirado de seu diário manuscrito por seus testamenteiros literários, que assinalaram no espaço em branco: "Passagem Censurável". Mas deixaram uma frase na qual Boswell, em Dôver, tinha relembrado: "Ontem de manhã, tinha ido para sua cama bem cedo (em terra) e tinha feito isso uma vez: ao todo, já foram 13", e sobrou o bastante em suas anotações para revelá-la uma mulher bem mais sofisticada e experiente do que muita gente supôs. Na realidade, parece que ela era fiel a Rousseau em muitos aspectos, porém havia aprendido - pela maneira como ele próprio agia - a tratá-lo do mesmo modo que ele a tratava.

O afeto mais sincero de Rousseau cabia aos animais. Boswell menciona uma cena encantadora em que ele brincava com seu gato e seu cachorro Sultão. Deu a Sultão (e a seu predecessor, Turc) um amor que não pôde dar aos humanos, e o gemido desse cão, que ele tinha levado consigo para Londres, quase o impediu de assistir a uma apresentação beneficente que Garrick tinha oferecido para ele em Drury Lane(43).

Rousseau manteve seu caso com Thérèse e tratou-a tão bem porque ela podia fazer por ele coisas que os animais não podiam, por exemplo: operar o cateter a fim de aliviar sua estenose.

Não tolerava terceiros intrometendo-se na relação com ela: ficava furioso quando, por exemplo, um editor a presenteava com
um vestido; vetou prontamente um projeto para garantir a ela uma pensão, o que teria representado sua independência em relação a ele. Sobretudo, não deixaria que os filhos usurpassem seus direitos sobre ela, o que o levou a cometer seu maior crime.

Uma vez que grande parte da reputação de Rousseau se devia a suas teorias sobre a educação das crianças — um maior desenvolvimento da educação é o tema principal e mais acentuado nos Discursos, no Emílio, no Contrato Social e mesmo em A nova Heloísa —, é curioso que na vida real, em contraste com sua obra, ele tivesse tão pouco interesse em crianças.

Não há nenhuma prova de que tenha observado crianças de perto para verificar suas teorias. Afirmou que ninguém gostava mais de brincar com crianças do que ele próprio, mas o único caso de que temos notícia sobre essa particularidade não o confirma. 

O pintor Delacroix conta, em seu diário (31 de maio de 1824), que um homem lhe contara ter visto Rousseau nos jardins das Tulherias: "A bola de uma criança bateu na perna do filósofo. Ele teve um acesso de raiva e começou a perseguir o garoto com sua bengala"(44).
Eugène Delacroix


Pelo que conhecemos de seu caráter, não era nada provável que Rousseau tivesse sido um bom pai. Mesmo assim, descobrir o que Rous­seau fez com seus próprios filhos causa um choque terrível.

Thérèse deu à luz ao primeiro no inverno de 1746-47. Não sabemos seu sexo. Nunca teve nome. Com (diz ele) "a maior dificuldade do mundo", convenceu Thérèse de que a criança devia ser abandonada "para que a  honra dela fosse salva". Ela "obedeceu com um suspiro". Ele colocou um cartão cifrado na roupa da criança e disse à parteira que colocasse aquela trouxa no Hospital das Crianças Encontradas.

As outras quatro crianças que teve com Thérèse foram abandonadas exatamente da mesma maneira, exceto pelo fato de que não se preocupou em anexar um cartão cifrado nos outros filhos.

Nenhum deles recebeu nome. É improvável que algum deles tenha sobrevivido por muito tempo.

Uma história dessa instituição, a qual apareceu em 1746 no Mercure de France, torna claro que ela vivia lotada de crianças abandonadas — mais de 3 mil por ano. Em 1758, o próprio Rousseau observou que o total tinha aumentado para 5082. Por volta de 1772, a média era de oito mil. Dois terços dos bebês morriam no primeiro ano de vida. Uma média de 14 em cada 100 sobrevivia até a idade de sete anos, e desses, cinco alcançavam a maioridade, muitos deles tornando-se mendigos e vagabundos(45).

Rousseau nem mesmo anotou as datas dos nascimentos de seus cinco filhos e nunca teve nenhum interesse no que aconteceu com eles, exceto por uma vez, em 1761, quando achou que Thérèse estava morrendo e fez uma tentativa, sem maior empenho e logo interrompida, de usar a cifra para descobrir o paradeiro do primeiro filho.

Rousseau não pôde manter tal conduta inteiramente em segredo, e em várias ocasiões, em 1751 e novamente em 1761, por exemplo, foi obrigado a fazer uma autodefesa por meio de cartas confidenciais.

Então, em 1764, Voltaire, irritado com o ataque de Rousseau contra seu ateísmo, publicou um panfleto anônimo, escrito à maneira de um pastor genebrês, chamado Le sentiment des citoyens.

Nele, havia uma acusação direta ao fato de ter abandonado seus cinco filhos; porém, também era afirmado que ele era sifilítico e assassino, e o desmentido de Rousseau a todas essas acusações foi aceito de uma forma geral.



Thérèse Levasseur
De todo modo, ele refletiu sobre o episódio e esse foi um dos fatores determinantes que o levaram a escrever as Confissões, que, em essência, pretendiam refutar ou minimizar a importância dos fatos que já eram de conhecimento público. Por duas vezes nesse livro se defende no que diz respeito aos bebês, e volta a tocar no assunto nos Devaneios... e em várias cartas.

No conjunto, seus esforços de autojustificação, tanto em âmbito público como privado, se estenderam por mais de 25 anos e variaram consideravelmente na forma. Tais esforços só faziam as coisas piorarem, visto que combinavam a crueldade e o egoísmo com a hipocrisia(46).

Primeiro, culpou o círculo pernicioso dos intelectuais ateus, ao qual passou a atribuir a ação de ter incutido, em sua cabeça inocente, a ideia do orfanato. Além disso, ter filhos era uma "inconveniência". Ele não aguentaria. "Como posso ter a tranquilidade mental necessária para o trabalho com minha cabeça ocupada com as responsabilidades domésticas e o barulho das crianças?".

Teria de rebaixar-se a realizar tarefas degradantes, "todos esses atos infames que me infundem um horror tão justificável". "Sei muito bem que nenhum pai é mais afetuoso do que eu teria sido", mas ele não queria que seus filhos tivessem nenhum contato com a mãe de Thérèse: "Tremia diante da idéia de deixar meus filhos aos cuidados daquela família grosseira".

Crueldade? Mas como alguém com seu notável caráter moral podia ser acusado de tal sentimento?


"(...) meu amor ardente com relação ao grandioso, à verdade, à beleza e à justiça; meu horror a todo tipo de maldade, minha absoluta incapacidade de odiar ou ferir, ou mesmo pensar em tais coisas; a emoção agradável e vívida que sinto diante de tudo aquilo que é virtuoso, generoso e benévolo; será possível, eu pergunto, que tudo isso conviva no mesmo coração com a vileza que, sem o menor escrúpulo, esmaga sob os pés a mais encantadora das obrigações? Não! Eu sinto e afirmo em alto e bom som — isso é impossível! Nunca, por nenhum momento em sua vida, poderia Jean-Jacques ter sido um homem sem sentimentos, sem compaixão ou um pai desnaturado."

Uma vez admitida sua virtude, Rousseau era obrigado a ir mais longe e defender suas ações sobre bases positivas.

Nesse ponto, quase por acidente, Rousseau leva-nos ao centro de sua questão pessoal e de sua filosofia política.

Vale insistir no fato de ele ter abandonado os próprios filhos, não apenas porque se trata do exemplo mais impressionante de sua crueldade, mas também porque fazia parte, organicamente, do processo que deu origem a sua teoria da política e do papel do Estado.

Rousseau se considerava uma criança abandonada. Em vários aspectos, nunca chegou realmente a crescer, e continuou sendo uma criança dependente por toda a sua vida, tratando Mme. de Warens como uma mãe e Thérèse como uma babá.

Há várias passagens em suas Confîssões, e mais ainda em suas cartas, em que o aspecto infantil é enfatizado. Muitos daqueles que se relacionavam com ele - Hume, por exemplo - viam-no como uma criança. No início, pensavam que era uma criança inofensiva, que podia ser persuadida, porém descobriram, depois de pagar um preço alto, que estavam tratando com um delinquente brilhante e cruel.

Visto que Rousseau se sentia (em alguns aspectos) uma criança, compreende-se que não pudesse educar os próprios filhos. Algo tinha de tomar o lugar dele, e esse algo era o Estado, na forma de um orfanato.

Por isso, afirmava ele, o que fez foi "uma boa e sensível arrumação". Era exatamente o que Platão defendia. As crianças seriam "melhores se não fossem educadas com delicadeza, pois desse modo se tornariam mais fortes". Elas seriam "mais felizes que seus pais". "Já desejei", escreveu ele, "e ainda desejo que eu tivesse sido criado e educado como eles foram." "Se eu tivesse tido a mesma sorte. . ." Em pouco tempo, ao transferir suas responsabilidades para o Estado, "Percebi que estava representando o papel de um cidadão e um pai e que me via como um membro da República de Platão".
Platão
Rousseau afirma que a contrariedade que causou sua atitude em relação aos filhos levou-o finalmente a formular a teoria da educação que é apresentada no Emílio. Ela também ajudou a dar forma ao Contrato social, publicado no mesmo ano.

O que começou como processo de autojustificação de um caso particular - uma série de desculpas improvisadas e mal planejadas para um comportamento que ele já devia saber, previamente, que não era normal - evoluiu gradualmente, com a repetição e a crescente autoestima as solidificando em convicções reais, até chegar à proposição de que a educa­ção era o ponto principal para o desenvolvimento social e moral e, sendo assim, representava uma responsabilidade do Estado.

O Estado devia formar as opiniões de todos, não apenas das crianças (como fez no caso dos filhos de Rousseau, por meio do orfanato) mas também dos cidadãos adultos.

Graças a uma lógica moral infame, a perversidade de Rousseau como pai estava ligada a sua consequência ideológica futura: o Estado totalitário.


As ideias políticas de Rousseau sempre estiveram envolvidas em confusão, visto que ele era um escritor incoerente e contraditório - uma das razões pelas quais o empreendimento de Rousseau alcançou proporções gigantescas: os eruditos vivem de resolver "problemas".

Em algumas passagens de sua obra, ele aparece como um conservador, opondo-se fortemente à revolução: "Pense nos perigos de pôr as massas em movimento". "As pessoas que fazem revoluções quase sempre acabam se rendendo aos tentadores, que tornam suas correntes mais pesadas do que antes." "Não saberia o que fazer com conspirações revolucionárias que sempre conduzem à desordem, à violência e ao derramamento de sangue." "A liberdade de toda a raça humana não vale a vida de um simples homem."

Porém, seus escritos também são pródigos em uma mordacidade radical. "Odeio os grandes, odeio o grupo social deles, sua estridência, seus preconceitos, sua mesquinhez, todos os seus vícios." Escreveu para uma dama da alta sociedade: "E a classe rica, sua classe, que rouba da minha o pão de meus filhos", e confessava ter "um certo ressentimento em relação aos ricos e bem-sucedidos, como se a riqueza e felicidade deles tivessem sido alcançadas à minha custa". Os ricos eram "lobos famintos que, tendo provado carne humana, recusam qualquer outro tipo de alimento".

Seus vários aforismos vigorosos, que tornam seus livros tão vivamente sedutores, em especial para os jovens, têm um tom radical. "Os frutos da terra pertencem a nós todos, a terra propriamente dita não pertence a ninguém." "O homem nasce livre e está, em toda a parte, preso a correntes."

No verbete que criou para a Encyclopédie sobre economia política, ele resume a atitude da classe dirigente nos seguintes termos: "Você pre­cisa de mim pois sou rico e você, pobre. Façamos um acordo: permitirei que você tenha a honra de me servir, contanto que, pelo inconveniente de ter de dominá-lo, você me dê tudo que possui".

Entretanto, assim que compreendemos que tipo de Estado que Rousseau desejava criar, suas opiniões começam a demonstrar coerência. Era necessário substituir a sociedade vigente por algo completamente diverso e, em essência, um modelo que fosse igualitário; porém, uma vez feito isso, a desordem revolucionária não poderia ser permitida.

Os ricos e privilegiados, assim co­mo as forças de manutenção da ordem, seriam substituídos pelo Estado, encarnando a Vontade Geral, à qual todos obedeceriam por convenção.  Tal obediência se tornaria espontânea e voluntária desde que o Estado, por um processo sistemático de planejamento cultural, incutisse a virtude em todos.

Totalitarismo
O Estado seria o pai, a patrie, e todos os cidadãos seriam os filhos do orfanato paterno. (Por isso o comentário aparentemente enigmático do dr. Johnson, que vai de encontro aos sofismas de Rousseau: "O patriotismo é o último refúgio de um canalha".)

É verdade que os cidadãos-filhos, ao contrário dos próprios bebês de Rousseau, concordam previamente em se submeter ao Estado-orfanato por meio de um contrato livre.

Desse modo, estabelecem, por sua vontade coletiva, a legalidade desse contrato, e depois disso não têm direito de se sentir coagidos, uma vez que, tendo desejado as leis, devem se sentir bem com as obrigações que se autoimpuseram(47).

Embora Rousseau escreva sobre a Vontade Geral em termos de liberdade, ela é basicamente um instrumento totalitário, um primeiro presságio do "centralismo democrático" de Lenin.

As leis feitas de acordo com a Vontade Geral devem ter, por definição, autoridade moral. "O povo, criando leis para si mesmo, não pode estar sendo injusto". "A Vontade Geral é sempre justa." Além disso, desde que o Estado esteja "bem-intencionado" (i.e., seus objetivos a longo prazo sejam desejáveis), a interpretação dessa Vontade Geral pode ser tranquilamente deixada a cargo dos líderes desde que "eles saibam que a Vontade Geral sempre favorece a decisão mais propícia ao interesse público".

Por isso, qualquer indivíduo que esteja em oposição à Vontade Geral está incorrendo em erro: "Quando uma opinião contrária à minha prevalece, isso apenas prova que eu estava errado e que o que eu pensava ser a Vontade Geral, não era". Na verdade, "se minha opinião particular tivesse prevalecido, eu teria alcançado um resultado contrário a minha vontade e, por isso, não estaria livre".

Estamos próximos da região de insensibilidade de Darkness at noon, de Arthur Koestler, ou da "Novilíngua", de George Orwell.

O Estado de Rousseau não é apenas autoritário: é também totalitário, uma vez que regula todos os aspectos da atividade humana, inclusive o pensamento. Submetido ao contrato social, o indivíduo seria obrigado a "se alienar de si, juntamente com todos os seus direitos, em prol do conjunto da comunidade" (i.e., o Estado).

Rousseau afirmava que esse era um conflito interminável entre o egoísmo natural do homem e suas obrigações sociais, entre o Homem e o Cidadão. E isso o fazia infeliz.

A função do contrato so­cial, e do Estado que viria como consequência dele, era tornar o homem novamente inteiro: "Faça do homem uma unidade e você lhe dará a maior felicidade que ele pode sentir. Entregue-o inteiramente ao Estado ou deixe-o inteiramente só. Mas se você dividir seu coração, você o rasgará em duas partes".

Devemos, por conseguinte, tratar cidadãos como filhos e controlar sua criação e seus pensamentos, incutindo a "lei social no fundo de seus corações". Eles então se tornam "homens sociais por natureza e cidadãos por vocação; serão uma unidade, serão bons, felizes e sua felicidade será a da República".

Esse procedimento pressupunha uma submissão total. Em seu primeiro juramento de contrato social para o projeto da Constituição de Córsega, se lê: "Junto-me, com meu corpo, meus bens, minhas vontades e todas as minhas forças, à nação córsica, concedendo a ela o direito sobre mim, ou seja, sobre a minha pessoa e sobre aqueles que dependem de mim"(48).

O Estado, nesse sentido, seria "o dono dos homens e de suas forças", e controlaria cada aspecto da vida econômica e social, a qual devia ser austera, contida nos luxos e nada urbana, estando as pessoas impedidas de entrar nas cidades ex­ceto por permissão especial.

Em vários aspectos, o Estado que Rousseau planejou para a Córsega antecipava aquele que o regime de Pol Pot tentou de fato implantar no Camboja, o que não é de todo surpreendente, já que os líderes desse regime - os quais haviam estudado em Paris - tinham absorvido as ideias de Rousseau.
Pol Pot

E claro que Rousseau acreditava verdadeiramente que esse tipo de Estado só seria alcançado quando o povo estivesse pronto a aceitá-lo. Ele não chegou a usar a expressão "lavagem cerebral", mas escre­veu: "Aqueles que controlam as opiniões de um povo, controlam as ações desse povo".

Esse controle é estabelecido tratando-se os cidadãos, desde a infância, como filhos do Estado, educados para "ver a si próprios somente em relação ao Corpo do Estado". "Por não terem autonomia em relação ao Estado, eles nada farão que não seja pelo Estado. Este terá tudo o que eles têm e será tudo o que eles são." Mais uma vez, isso antecipa a doutrina fascista principal de Mussolini: "Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado e nada contra o Estado".

Desse modo, o processo educacional era o segredo para o êxito de uma organização social necessária para tornar o Estado aceitável e bem-sucedido; o eixo das ideias de Rousseau era o cidadão como o filho e o Estado como os pais, e ele insistiu em que o governo devia ter uma responsabilidade total pela educação de todos os filhos.

Benito Mussolini
Por isso - e essa foi a verdadeira revolução que as ideias de Rousseau causaram -, deslocou o processo político para o próprio centro da existência humana, transformando o legislador, que é também pedagogo, num novo Messias capaz de solucionar todos os problemas humanos uma vez que cria um Novo Homem. "Tu­do", escreveu ele, "no fundo, tem relação com a política." A virtude é a consequência de um bom governo. "Os vícios se devem menos ao homem do que ao homem sujeito a um mau governo." O processo político e o novo tipo de Estado que ele faz surgir são os principais remédios para os males da hu­manidade(49) .

A política resolve tudo. Desse modo, Rousseau traçou o plano para as principais fraudes e loucuras do século XX.

A fama de Rousseau durante a vida, assim como a influência que alcançou depois de sua morte, suscita questionamentos inquietantes a respeito do logro humano, assim como da propensão no homem de rejeitar a evidência de algo que prefere não admitir.
A aceitação do que Rousseau escreveu se deveu, em grande parte, a sua reivindicação enérgica no sentido de não ser visto apenas como um homem respeitável, mas como o homem mais respeitável de sua época.

Por que motivo tal reivindicação não caiu no ridículo e não foi considerada infame depois que as fraquezas e perversidades de Rousseau tornaram-se não apenas de conhecimento público mas objeto de um debate internacional?

Afinal de contas, as pessoas que o atacavam não eram nem suas desconhecidas nem adversários políticos, mas antigos amigos e aliados que não tinham poupado esforços para ajudá-lo. As acusações que faziam eram graves, e a denúncia coletiva foi violentíssima.

Hume, que já o havia descrito como "dócil, modesto, afetuoso, desinteressado e extremamente sensível", passou a achar, por uma observação direta durante bastante tempo, que ele era "um monstro que se via como o único ser importante do universo".

Diderot, depois de um longo convívio, descreveu-o como "enganador, vaidoso como Satã, mal-agradecido, cruel, hipócrita e cheio de maldade".

Para Grimm, ele era "odioso, desumano".  Para Voltaire, era "um poço de presunção e vileza".

Ainda mais violentas são as opiniões das mulhe­res benevolentes que o ajudaram, como por exemplo Madame d'Epinay e seu inocente marido. As últimas palavras que ela dirigiu a Rousseau foram: "Não tenho nenhum sentimento por você a não ser pena".

Essas opiniões não se baseavam nas palavras de Rousseau, mas em seus atos. E desde sua época - mais de 200 anos atrás - a quantidade de documentos descobertos pelos estudiosos tem servido para confirmá-las de forma inexorável.

Um acadêmico moderno arrola os defeitos de Rousseau da seguinte forma: ele era "masoquista, exibicionista, neurastênico, hipocondríaco, onanista, homossexual não manifesto afligido pelo impulso típico para se deslocar constantemente, incapaz de ter afetos normais ou paternos, com forte propensão à paranoia, um narcisista introvertido tornado antissocial graças a sua doença, cheio de sentimento de culpa, tímido num grau patológico, cleptomaníaco, infantil, irritadiço e avarento" (50).

Tais acusações, e a ampla exposição das provas nas quais elas se baseiam, afetaram num grau bastante pequeno o respeito que se tinha - e ainda se tem - por Rousseau e sua obra, o qual era defendido pelos que sentiam por ele uma atração intelectual e emocional.

Durante sua vida, não importa quantos relacionamentos tivesse destruído, ele nunca sentiu a menor dificuldade em começar novas relações e atrair novos admiradores, discípulos e magnatas prontos a ceder as casas, os jantares e os elogios que ele desejava.

Quando morreu, foi enterrado na Ilha des Peuplies, no lago que fica em Ermononville, lugar que logo se tornaria um ponto de peregrinação secular pa­ra homens e mulheres de toda a Europa, como o túmulo de um santo na Ida­de Média.

As descrições feitas por esses grotescos dévotés são textos hilariantes: "Pus-me de joelhos (...) pressionei os lábios contra a pedra gelada do monumento (...) e beijei-a repetidas vezes"(51).

As relíquias, como a cartucheira de fumo e uma jarra, foram preservadas com cuidado no "Santuário", como era conhecido seu túmulo.

Isso faz lembrar Erasmo e John Colet visitando o grande túmulo de São Tomás em Becket, Canterbury, em 1512, e zombando dos exageros dos peregrinos.

O que teriam eles falado a respeito de "São Rousseau" (como seria chamado, reverentemente, por George Sand) 300 anos depois que a Reforma supostamente proibira esse tipo de comportamento?

Os aplausos continuaram bem depois de as cinzas terem sido transferidas para o Panteão.

Para Kant, ele tinha "uma sensibilidade espiritual de inigualável perfeição".  

Para Shelley, era um "gênio sublime".

Para Schiller, tinha "uma alma próxima à do Cristo, para quem apenas os anjos eram uma companhia à altura".

John Stuart Mill e George Elliot, Hugo e Flaubert, to­dos fizeram suas sinceras homenagens a ele.

Tolstói disse que Rousseau e o Evangelho tinham sido "as duas maiores e mais salutares influências de mi­nha vida".

Um dos intelectuais mais influentes de nosso tempo, Claude Lé­vi-Strauss, em sua principal obra, Tristes trópicos, o aclama como "nosso mestre e irmão (...) cada página deste livro podia ter sido dedicada a ele, caso isso não fosse indigno para com sua grande memória"(52).

Tudo isso é muito desconcertante e nos faz lembrar que os intelectuais são tão insensatos, ilógicos e supersticiosos quanto qualquer pessoa.

Na ver­dade, parece que Rousseau foi um escritor genial mas, indubitavelmente, era um desequilibrado no que diz respeito a sua vida e suas opiniões.

Ele foi descrito com perfeição pela mulher que, segundo ele, foi seu único amor, Sophie d'Houdetot. 

Ela viveu até 1813 e, já numa idade bastante avançada, emitiu o seguinte julgamento: "Ele era repulsivo o bastante para me meter medo, e o amor não o tornou mais atraente. Mas ele era uma figura patética e eu o tratava de forma afável e generosa. Era um louco interessante"(53).

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