O post abaixo é o primeiro capítulo do livro Os Intelectuais, de Paul Johnson.
Tal capítulo, antes de falar sobre Rosseau propriamente, faz um resumo do aparecimento do "intelectual secular" e qual é o objetivo do livro.
JEAN-JACQUES ROUSSEAU: LOUCO INTERESSANTE
Ao longo dos últimos 200 anos, a influência dos
intelectuais vem crescendo regularmente.
Na verdade, o surgimento do intelectual secular
foi um fator decisivo para dar forma ao mundo moderno. Visto de uma perspectiva
histórica ampla, trata-se, em muitos aspectos, de um fenômeno novo.
Não há dúvidas de
que desde suas primeiras encarnações como padres, escribas ou profetas, os
intelectuais exigiram para si a tarefa de orientar a sociedade.
Porém,
sendo eles guardiães de culturas hieráticas, fossem primitivas ou sofisticadas,
as inovações morais e ideológicas que eles propunham eram limitadas pelos
cânones da autoridade externa e pela herança da tradição. Eles não eram, nem
podiam ser, espíritos livres ou aventureiros do pensamento.
Com o
declínio do poder do clero no século XVIII, um novo tipo de mentor surgiu para
preencher o vazio e conquistar os ouvidos da sociedade.
O
intelectual secular, mesmo sendo deísta, cético ou ateu, estava tão disposto
quanto qualquer pontífice ou presbítero a dizer como os homens deviam agir
diante dos problemas dessa sociedade. Desde o princípio, expressou uma devoção
especial para com os interesses da humanidade e uma predisposição evangélica
para fazê-los avançar graças a seu ensino.
Deu a
essa tarefa auto imposta um sentido muito mais radical do que tinham dado seus
predecessores do clero. Não se sentiam limitados por nenhum corpus de uma religião revelada.
A sabedoria coletiva do passado, o legado da
tradição, os códigos prescritos por uma experiência ancestral existiam para ser
seletivamente seguidos ou para ser completamente rejeitados, dependendo apenas
do bom senso de cada um.
Pela primeira vez na história humana - e com
uma arrogância e uma audácia crescentes -, os homens se diziam capazes de
diagnosticar os males da sociedade e curá-los com sua inteligência autossuficiente;
mais: diziam ser capazes de traçar um plano pelo qual não apenas a estrutura
social, mas os hábitos básicos do ser humano podiam ser transformados para
melhor.
Ao contrário de seus antecessores sacerdotais,
eles não eram servos nem intérpretes dos deuses; eram seus substitutos.
O herói deles era Prometeu, que roubou o fogo
celestial e o trouxe para a Terra.
Uma das características mais marcantes dos
novos intelectuais seculares era o prazer com que submetiam a religião e os
respectivos protagonistas a uma análise crítica.
Até que ponto esses grandes sistemas de fé
trouxeram benefícios ou malefícios à humanidade?
Em que medida esses papas e pastores viveram de
acordo com os próprios preceitos de castidade e sinceridade, de caridade e
benevolência?
Tanto no caso das igrejas como no do clero, os
veredictos foram rigorosos.
Hoje, depois de dois séculos durante os quais a
influência da religião continuou decrescendo e os intelectuais seculares
desempenharam um papel cada vez mais importante no caráter de nossas atitudes e
instituições, já é hora de examinarmos suas
vidas, tanto em âmbito público como privado.
Pretendo avaliar particularmente as credenciais
morais e de julgamento que os intelectuais possuíam ou não para ditar regras de
conduta à humanidade.
Como administravam suas próprias vidas? Que
grau de retidão demonstravam para com a família, os amigos e os companheiros?
Eles eram honestos em seus relacionamentos sexuais e financeiros? Será que
falavam e escreviam a verdade? E até que ponto seus sistemas teóricos resistiram
ao teste do tempo e da práxis?
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Nossa investigação começa com Jean-JacquesRousseau (1712-78), que foi o primeiro dos intelectuais modernos, um arquétipo
para eles e em vários aspectos o mais influente entre todos.
Voltaire |
Ele acreditava ter um amor inigualável pela
humanidade e ter sido dotado de talento e perspicácia nunca vistos para fazê-la
mais feliz.
Um número impressionante de pessoas, na época e
desde então, concordou com essa avaliação que ele fez sobre si mesmo.
A longo e a curto prazo, sua influência foi
enorme. Para a geração que se seguiu a
sua morte, ele alcançou o status de
mito.
Mesmo tendo morrido uma década antes da Revolução Francesa, muitos de seus contemporâneos o apontaram como responsável por ela e,
por extensão, pela derrubada do ancien régime
na Europa. Essa opinião foi
compartilhada tanto por Luís XVI quanto por Napoleão.
A respeito das elites revolucionárias, Edmund Burke disse: "Há uma grande disputa entre os líderes para saber qual deles
se parece mais com Rousseau (...). Para eles, Rousseau é o modelo de perfeição".
Robespierre |
Durante a revolução, a Convenção Nacional votou
a favor de que suas cinzas fossem transferidas para o Panteão. Na cerimônia, o
presidente da Convenção declarou: "Devemos a Rousseau o avanço salutar que
transformou nossa moral, nossos costumes, leis, sentimentos e hábitos".
Entretanto, num nível bem mais profundo e por
um período de tempo muito mais longo, Rousseau alterou alguns dos pressupostos
básicos do homem civilizado e mudou a configuração da estrutura do pensamento
humano.
A extensão de sua influência é incrivelmente
ampla, porém pode ser dividida em cinco categorias principais.
Em primeiro lugar, nossas ideias modernas
acerca de educação devem muito à doutrina de Rousseau, principalmente por sua
obra Emílio (1762).
Ele popularizou, e em certa medida inventou, o
culto da natureza, o gosto pelo ar livre, a busca da novidade, da
espontaneidade, do vigor e do natural. Foi o primeiro a fazer a crítica da artificialidade
urbana. Identificou e apontou o artificialismo da civilização. É o precursor do banho frio, do exercício
sistemático, do esporte como formador da personalidade e da casa de campo para
o fim de semana(2).
Em segundo lugar, paralelamente a essa
revalorização da natureza, Rousseau aconselhava a se desconfiar dos avanços
progressivos e graduais acarretados pela marcha vagarosa da cultura
materialista; nesse sentido, passou a rejeitar o Iluminismo, do qual fizera
parte, e buscou uma solução mais radical(3). Insistia em que a razão, por si só, tinha
sérias limitações como meio de curar a sociedade.
Entretanto, isso não queria dizer que a
inteligência humana fosse insuficiente para levar a efeito as mudanças necessárias,
visto que ela tinha reservas secretas e inexploradas de compreensão e intuição
poéticas que deviam ser usadas para sujeitar os ditames estéreis da razão(4).
Seguindo essa linha de raciocínio, Rousseau
escreveu suas Confissões, que foram
terminadas em 1770, embora não tenham sido publicadas antes de sua morte.
Confissões |
Essa terceira ideia correspondeu à origem tanto
do movimento romântico como da literatura introspectiva moderna, pois ele levou
o fato de se ter descoberto o indivíduo - o feito principal do Renascimento - a
um estádio bem mais avançado, penetrando na personalidade íntima é exibindo-a
para exame público.
Pela primeira vez foi mostrado aos leitores o âmago
de uma vida emocional, embora - e essa também seria uma característica da literatura
moderna - seu aspecto fosse enganoso, as emoções se mostrando traiçoeiras,
superficialmente sinceras mas no fundo cheias de falsidade.
A quarta ideia popularizada por Rousseau foi,
em alguns aspectos, a mais difundida de todas.
A partir do momento em que a
sociedade se desenvolveu, partindo de um estado primitivo de constituição até o
artificialismo urbano — afirmava ele —, o homem se corrompeu: sua natural autossuficiência,
que ele chama de amour de soi, se
transformou num impulso bem mais pernicioso, o
amour-propre, que combina a vaidade com
a auto estima, cada homem avaliando a si próprio pelo que os outros pensam
dele, e desse modo procurando impressioná-los com seu dinheiro, sua força, sua
inteligência e superioridade moral.
Sua autossuficiência natural se transforma em
competitividade e ganância, e por isso ele se aliena não apenas em relação aos
outros homens, que passam a ser vistos como concorrentes e não companheiros,
mas também em relação a si próprio(5). A alienação dá lugar, no homem, a uma
doença psicológica caracterizada por uma discordância trágica entre a aparência
e a realidade.
Segundo ele, o pecado da competitividade, que
destrói o senso comunitário inato ao homem e estimula suas características mais
perversas, inclusive o desejo de explorar os outros, levou Rousseau a
desconfiar da propriedade privada, julgando-a a causa da criminalidade social.
Desse modo, sua quinta inovação, bem nas
vésperas da Revolução Francesa, consistiu em desenvolver os rudimentos de uma
crítica ao capitalismo, tanto no prefácio da peça Narcisse como nos Discours sur l'inégalité, identificando
tanto a propriedade quanto a competição necessária para obtê-la como as causas
básicas da alienação. (6)
Essa foi uma fonte de pensamento que Marx e
outros explorariam sem se impor limites, do mesmo modo que a ideia correlata de
Rousseau referente à evolução cultural.
Karl Marx |
Para ele, "natural" significava
"original" ou pré-cultural. Toda cultura acarreta problemas, visto
que é a união de um homem com outros que estimula as tendências mais perversas
desse homem. Como ele escreve, em Emílio: "O bafo de um homem é fatal
para os outros homens".
Desse modo, a cultura na qual se vive, ela própria
uma construção artificial e em evolução, prescreve um comportamento ao indivíduo,
e se poderia aperfeiçoar ou mesmo transformar totalmente o comportamento dele
mudando-se a cultura e as forças competitivas que a produziram — ou seja, por
meio de uma organização social.
Essas ideias são tão abrangentes que chegam a
constituir, quase por si só, uma enciclopédia do pensamento moderno.
Na verdade, nem todas se devem a ele. Sua formação de leitura é ampla: Descartes,
Rabelais, Pascal, Leibnitz, Bayle, Fontenelle, Corneille, Petrarca, Tasso e, em
particular, Locke e Montaigne.
Germaine de Staël, que acreditava que ele possuía
"as mais sublimes faculdades jamais encontradas num homem", afirmou:
"Ele não inventou nada". Porém, acrescentou ela, "infundiu emoção
nessas ideias".
Era a forma simples, direta, vigorosa, verdadeiramente
apaixonada como Rousseau escrevia que fazia suas ideias parecerem tão vívidas
e novas, de modo a se apresentarem a homens e mulheres com o impacto de uma revelação.
Quem afinal era o irradiador de tão extraordinário
vigor moral e intelectual, e como ele alcançou esse status?
Antigo Mapa de Genebra |
Rousseau era um suíço nascido em Genebra, em
1712, e educado segundo padrões calvinistas.
Seu pai, Isaac, era um relojoeiro que não tinha
prosperado na profissão, visto ser um criador de casos que se envolvia com frequência
em brigas e tumultos.
A mãe, Suzanne Bernard, era proveniente de uma
família rica, porém morreu de febre puerperal logo depois de Rousseau nascer.
Nenhum dos dois era proveniente do círculo
restrito de famílias que formavam a oligarquia dominante de Genebra e compunham
o Conselho dos Duzentos e o Conselho Interno dos Vinte e Cinco.
Apesar disso, tinham plenos direitos legais e
de voto, e Rousseau sempre esteve consciente de sua condição de superioridade.
Isso o fez um conservador nato por Conveniência
(mas não por convicção intelectual) e fez com que ele desprezasse, durante toda
a sua vida, a plebe que não tinha direito ao voto. Além disso, a família possuía
uma quantidade de dinheiro considerável.
Rousseau tinha um irmão sete anos mais velho do
que ele e não tinha irmãs. Ele próprio se parecia bastante com a mãe, e por
isso tornou-se o favorito do pai viúvo.
O tratamento que Isaac lhe dispensava variava
entre uma afeição lacrimosa e uma violência aterradora, e mesmo Jean-Jacques, o
favorito, fez críticas à maneira como o pai o criara, queixando-se mais tarde,
em Emílio: "A ambição, a cobiça, a
tirania e as previsões equivocadas do pai, sua negligência e insensibilidade
brutal são 100 vezes mais prejudiciais para a criança do que a irrefletida
ternura da mãe".
No entanto, foi o irmão mais velho que se
tornou a maior vítima da selvageria paterna. Em 1718, foi mandado a um reformatório,
por solicitação do pai, sob a alegação de que era incorrigivelmente imoral; em
1723, fugiu de lá e nunca mais foi visto.
Rousseau, por conseguinte, era filho único,
uma situação que compartilhou com muitos líderes intelectuais modernos. Porém,
embora privilegiado em alguns aspectos, ele terminou a infância com um forte
sentimento de privação e — talvez sua característica pessoal mais marcante — de
autocomiseração. (7)
A morte logo o privou do pai e da mãe de criação.
Não gostava da profissão de gravador, da qual era aprendiz, por isso, em 1728,
aos 15 anos de idade, fugiu e converteu-se ao catolicismo, com vistas a ter a
proteção de uma certa Madame Françoise-Louise de Warens, que vivia em Annecy.
Madame Françoise-Louise de Warens |
Os pormenores sobre o começo da vida de
Rousseau que estão narrados em suas Confissões
certamente não correspondem à realidade. Porém, suas cartas e o vasto material
que formam a imensa produção literária de Rousseau foram usados a fim de se
chegar aos fatos mais importantes(8).
Madame de Warens vivia numa casa de pensão
francesa majestosa e parece ter sido uma agente tanto do governo francês como
da Igreja Católica Romana. Rousseau viveu com ela, e foi sustentado por ela, a
maior parte dos 14 anos entre 1728 e 1742. Durante parte desse tempo, foi
amante dela; além disso, houve períodos em que perambulou por conta própria.
Até alcançar os 30 anos de idade, Rousseau
levou uma vida de fracassos e de dependência, especialmente no que se refere às
mulheres.
Experimentou no mínimo 13 empregos, como gravador,
lacaio, seminarista, músico, funcionário público, fazendeiro, professor
particular, caixa, copista de partituras, escritor e secretário particular.
Em 1743 ofereceram-lhe o que parecia ser o mais
alto cargo no secretariado do embaixador francês em Veneza, o Conde de
Montaigu. Exerceu a função durante 11 meses e terminou sendo exonerado e
fugindo, para não ser preso pelo senado de Veneza. Montaigu afirmou (e sua versão
deve ser preferida à de Rousseau) que seu secretário foi condenado à miséria
por conta de seu "temperamento vil" e "insolência inqualificável",
o produto de sua "insanidade" e "enorme auto estima". (9)
Em 1745, Rousseau conheceu uma jovem lavadeira, Thérèse Levasseur , 10 anos mais jovem do que ele, que aceitou ser sua
companheira de forma permanente. Isso deu uma certa estabilidade a sua vida tão
inconstante.
Thérèse Levasseur |
Nesse ínterim, conhecera e se tornara protegido
de Denis Diderot, a principal figura do Iluminismo que seria mais tarde o
editor-chefe da Encyclopédie. Assim como Rousseau, Diderot era filho de
artesão e tornou-se o protótipo do escritor que se fez por si mesmo.
Era um homem afável e um dedicado promotor de
talentos.
Rousseau deveu muito a ele. Por seu intermédio,
conheceu o crítico literário e diplomata alemão Friedrich Melchior Grimm, bem
posicionado na alta sociedade; Grimm levou-o ao famoso salon radical do Barão d'Holbach, conhecido
como "le Maître d'Hôtel de la
philosophie".
A influência dos intelectuais franceses apenas
começava a se fazer notar e aumentaria invariavelmente na segunda metade do século.
Porém, nas décadas de 1740 e 1750 a posição deles como críticos da sociedade ainda
era precária. O governo, quando se
sentia ameaçado, ainda atacava-os com uma súbita brutalidade.
Rousseau mais tarde reclamaria, alto e bom som,
da perseguição que sofreu, porém na verdade ele teve menos a tolerar do que
muitos de seus contemporâneos. Voltaire foi surrado publicamente com vara pelos servos de um aristocrata ao qual
ofendera, ficando detido quase um ano na Bastilha. Aqueles que vendiam livros
proibidos podiam ser penalizados com 10 anos de trabalho nas galés.
Em julho de 1749, Diderot foi preso e posto
numa cela solitária na fortaleza de Vincennes por ter publicado um livro
defendendo o ateísmo. Ficou très meses lá. Rousseau foi visitá-lo e, enquanto
caminhava pela estrada de Vincennes, viu no jornal um anúncio da Academia de
Letras de Dijon chamando concorrentes para um concurso de ensaios com o
seguinte tema: "O ressurgimento das ciências e artes contribuiu para o
aperfeiçoamento dos princípios morais?".
Denis Diderot
|
Esse episódio, ocorrido em 1750, representou um momento de mudança na vida de
Rousseau. Ele viu, num instante de
inspiração, o que tinha a fazer.
Os outros participantes naturalmente falariam a
favor das artes e ciências. Ele defenderia a superioridade da natureza.
Subitamente, como escreve em suas Confissões, foi tomado de um entusiasmo
irresistível pela "verdade, liberdade e virtude". Diz ter afirmado para si mesmo: "Virtude,
verdade! Gritarei cada vez mais alto: verdade, virtude!". Acrescentou que seu colete estava
"encharcado de lágrimas que tinha vertido sem perceber". Essa cena deve ser verdadeira: ele chorava com
facilidade.
O fato é que Rousseau decidiu, nessa hora e
lugar, escrever seguindo a linha que se tornaria a essência de sua doutrina.
Ganhou o prêmio por essa abordagem paradoxal do tema e ficou famoso quase da
noite para o dia.
Ali estava um homem de 39 anos até então
malsucedido e amargurado, ansiando por atenção e fama, que finalmente dava o
passo certo.
O ensaio é fraco e, hoje, quase ilegível. Como
sempre ocorre quando se analisa um acontecimento literário desse tipo, parece
inexplicável que um trabalho tão insignificante tenha acarretado para seu autor
tal explosão de fama; na verdade, o famoso crítico Jules Lemaitre chamou essa
glorificação imediata de Rousseau de "uma das maiores provas jamais
vistas da estupidez humana". (10)
A publicação dos Discursos sobre as artes e ciências não tornaram Rousseau rico,
visto que, embora o livro tenha sido amplamente divulgado e tenha havido a
necessidade de se imprimir cerca de 300 exemplares, o número de cópias
realmente vendidas foi menor do que este e foram os livreiros que lucraram com
esse tipo de livro.(11)
Jules Lemaitre |
Rousseau
tinha possibilidade de se sustentar como copista de partituras, e muitas vezes
o fez (tinha uma bela caligrafia), porém, depois de 1750, alcançaria uma
posição que lhe permitiu viver da hospitalidade da aristocracia, exceto (como
geralmente ocorria) quando resolvia encenar brigas violentas com aqueles que o
sustentavam.
Como
ocupação, tornou-se escritor profissional.
Ele sempre era fértil no que se referia a ideias e quando resolveu
encarar seriamente a profissão, escreveu bem e com facilidade.
Porém, o
impacto causado por seus livros, pelo menos antes de sua morte e um longo tempo
depois dela, variou bastante de intensidade(12).
O Contrato social, geralmente visto como um
resumo da filosofia política da maturidade de Rousseau, o qual ele começou a escrever
em 1752 e só publicou 10 anos mais tarde, quase não foi lido até sua morte e só
foi reeditado em 1791. Uma pesquisa
feita em 500 livrarias da época mostrou que apenas uma delas possuía uma cópia
do livro.
A
estudiosa Joan Mcdonald, que pesquisou 1114 panfletos políticos publicados
entre 1789 e 1791, encontrou apenas 12 referências ao livro(13). Ela observou:
"É necessário distinguir o culto a Rousseau da influência de seu pensamento
político".
O culto,
que começou com o ensaio premiado e continuou a crescer em força, deveu-se a
dois livros. O primeiro foi seu romance A nova
Heloísa, que tinha o subtítulo de
Cartas de dois amantes e seguia o modelo do livro Clarissa, de Richardson.
A Nova Heloísa |
O arcebispo de Paris acusou o livro de "insinuar o veneno da luxúria enquanto parece condená-lo", porém isso serviu apenas para fazer aumentar a vendagem, assim como o próprio prefácio escrito engenhosamente por Rousseau, no qual ele afirma que uma moça que lesse uma única página do livro se tornaria uma alma perdida, acrescentando que "moças puras não lêeem histórias de amor".
Na realidade, tanto as moças puras quanto as matronas respeitáveis leram o romance e se defenderam citando as conclusões morais que ele continha. Em suma, tratava-se de um best-seller nato, o que acabou se confirmando, embora a maior parte das cópias tenha sido adquirida graças a edições piratas.
O culto a Rousseau se intensificou em
1762 com a publicação do Emílio, no qual ele apresentava as inúmeras
ideias sobre a natureza e a reação do homem diante dela, as quais se tornariam
o alimento básico da era romântica, embora nessa época ainda fossem novidade.
Também esse livro foi construído brilhantemente de forma a garantir o maior
número de leitores.
Porém, a respeito de um ponto Rousseau era tão
talentoso que acabou se prejudicando.
Uma das características de sua crescente
influência como profeta da verdade e da virtude era apontar os limites da razão
e reservar um lugar para a religião no coração dos homens.
Desse modo, incluiu no Emílio um capitulo intitulado "Profissão
de fé", no qual acusava os colegas intelectuais do Iluminismo,
especialmente os ateus ou simples deístas, de estarem sendo arrogantes e dogmáticos,
"afirmando, com base em seu conhecido ceticismo, que sabem tudo" e não
reparado no mal que faziam aos homens e mulheres dignos ao abalarem a fé:
"Destroem e esmagam com os pés tudo aquilo que o homem venera, acabam com
o consolo que os sofredores tiram da religião e levam embora a única força
capaz de refrear os instintos dos ricos e poderosos".
Esse era um argumento bastante eficaz, porém, a
fim de compensar essa crítica, Rousseau achou necessário criticar também a
Igreja estabelecida, especialmente o culto aos milagres e o estímulo à superstição.
Isso foi uma grande imprudência,
especialmente porque Rousseau, para frustrar os editores piratas, resolveu
correr o risco de assinar a obra.
Ele já era suspeito aos olhos dos eclesiásticos
franceses por ter renegado duas vezes a religião católica: tendo se convertido
ao catolicismo, ele voltou mais tarde ao calvinismo a fim de reaver a cidadania
genebresa.
Por isso, o
Parlement de Paris, dominado pelos jansenistas, demonstrou uma forte
objeção aos sentimentos anticatólicos contidos no Emílio, mandou queimar exemplares do livro
em frente ao Palácio de Justiça e expediu um mandado para que Rousseau fosse
preso. Ele foi salvo por um aviso oportuno de amigos do alto escalão do governo.
Depois disso, passou alguns anos como fugitivo.
Visto que os calvinistas também desaprovavam o Emílio, mesmo fora do território católico
ele foi obrigado a ficar mudando de uma cidade para outra. Porém, nunca deixava de ter poderosos
protetores na Grã-Bretanha (onde ficou durante 15 meses em 1766-67) e também na
França, onde viveu de 1767 em diante. Durante a última década de gestão, o
governo perdeu interesse por ele, e seus maiores inimigos passaram a ser ex-companheiros
intelectuais, principalmente Voltaire.
Para responder a eles, Rousseau escreveu suas Confissões, terminadas em Paris, onde
finalmente se estabeleceu em 1770. Não se aventurou a publicá-las, mas ficaram
bastante conhecidas graças às leituras que ele fazia nas casas da alta
sociedade.
Perto de sua morte, em 1778, sua reputação
estava prestes a se elevar novamente, o que aconteceu quando os revolucionários
tomaram o poder.
Desse modo, Rousseau experimentou um sucesso considerável mesmo
enquanto vivo. Segundo uma visão imparcial moderna, ele não teve muito do que
se queixar. Apesar disso, Rousseau é um dos personagens mais lamurientos da
história da literatura.
Ele insistia em que sua vida tinha sido cheia
de sofrimento e perseguição. Reiterava tantas vezes a queixa, e de uma forma tão
angustiante, que nos sentimos obrigados a acreditar nele.
Em um ponto, era inflexível: sofria de uma má
saúde crônica. Era "um pobre desgraçado enfraquecido pela doença (. . .),
debatendo-se, cada dia de minha vida, entre a dor e a morte".
"A natureza", acrescenta ele,
"que me concebeu para o sofrimento, me legou uma constituição imune à dor
para que, incapaz de exaurir minhas forças, ela possa sempre se fazer sentir
com a mesma intensidade(14).
É verdade que ele sempre teve problemas com seu
pênis. Numa carta a seu amigo, o doutor Tronchin, de 1755, refere-se à "má-formação
de um órgão, com a qual nasci".
Seu biógrafo, Lester Crocker, depois de um
diagnóstico cuidadoso, escreveu: "Estou convencido de que Jean-Jacques
foi uma vítima de hipospadia congênita, uma deformidade do pênis na qual a
uretra tem uma abertura em alguma região de sua superfície ventral"(15).
Hipospadia |
Em sua vida adulta, a doença se transformou
numa estenose, sendo necessário o uso doloroso de um cateter, o que agravava física
e psicologicamente o problema. Tinha necessidade de urinar constantemente, e
isso lhe trouxe dificuldades na época em que convivia com a alta sociedade:
"Ainda tenho sobressaltos ao me imaginar", escreveu ele, "num círculo
de mulheres, sendo obrigado a esperar até que uma conversa agradável termine (.
. .). Quando finalmente chego a uma escada bem iluminada, lá estão outras mulheres
para me deter, e depois surge um pátio cheio de carruagens em constante
movimento prontas a me esmagar, e as criadas das damas que me observam, e os
lacaios enfileirados ao longo das paredes rindo de mim. Não encontro uma só
parede ou um mísero cantinho que sirva para meu propósito. Logo, logo, terei de
urinar diante de todos e sobre a meia branca de uma perna nobre"(16).
Essa passagem denota autocomiseração e, junto com outros episódios,
nos faz desconfiar que a saúde de Rousseau não era tão ruim quanto ele faz
parecer. Às vezes, quando lhe serve como argumento, ele alude a sua boa saúde.
Sua insônia era em parte fantasiosa, visto que muitas pessoas testemunharam que
ele roncava. David Hume, que o acompanhou na viagem à Inglaterra, escreveu:
"Ele é um dos homens mais saudáveis que já conheci. Passava 10 horas
durante a noite sob condições climáticas terríveis no convés, onde todos os
marinheiros morriam de frio, e não sentia nada depois"(17).
A preocupação incessante - justificada ou não - com relação à saúde
fazia parte da dinâmica original da autocomiseração que acabou enredando-o e
influenciando-o em cada episódio de sua vida.
David Hume |
Na verdade, ele descrevia esse destino
constantemente, e muitos acreditaram nele, antes de conhecer melhor seu caráter.
E mesmo depois disso, geralmente ainda sentiam uma certa compaixão.
Madame d'Epinay, uma protetora a quem ele
tratou de forma abominável, observou, mesmo depois que já tinha aberto os
olhos: "Ainda me sinto comovida com o jeito simples e original com que ele
narra seus reveses".
Ele era o que no exército se chama de
"soldado velho", um vigarista experiente no que diz respeito ao jogo
psicológico. Não admira que, quando jovem, tenha escrito cartas pedindo
assistência, sendo que uma delas foi encontrada. Enviara-a ao governador de Sabóia
e nela pedia uma pensão alegando que sofria de uma terrível doença
desfiguradora e não demoraria a morrer."
Por trás da autocomiseração estava um egoísmo exagerado, um sentimento de
que ele era bastante diferente dos outros homens, tanto nos sofrimentos quanto
nas qualidades.
Escreveu: "O que suas angústias podem ter
em comum com as minhas? Minha situação é singular, sem precedente desde o início
dos tempos (...)"- Do mesmo modo: "Está para nascer uma pessoa que me
ame com a intensidade que eu amo". "Ninguém teve tanto talento para
amar". "Nasci para ser o maior amigo que jamais existiu".
"Deixaria esta vida apreensivo se chegasse a conhecer um homem mais
virtuoso do que eu". "Mostre-me um homem melhor do que eu, com um
coração mais amoroso, mais terno, mais sensível (...)". "A
posteridade me honrará (...) porque mereço". "Regozijo-me comigo
mesmo". "(. . .) meu consolo está em minha autoestima". "(...)
se houvesse um único governo esclarecido na Europa, ele mandaria erigir estátuas
em minha homenagem"(19).
Não admira que Burke tenha afirmado: "A
vaidade era um vício seu que estava um degrau abaixo da loucura".
Fazia parte da vaidade de Rousseau acreditar que era incapaz de ter emoções
mesquinhas. "Sinto-me muito superior a ódio". "Amo a mim mesmo
em demasia para odiar quem quer que seja". "Não conheço as emoções
relacionadas com o ódio, e o ciúme, a crueldade e a vingança jamais invadiram
meu coração (. . .) já senti raiva ocasionalmente, mas nunca dissimulei nem
jamais guardei ressentimento".
Na verdade, ele guardava ressentimento com frequência
e dissimulava ao persistir nisso. Os homens percebiam tudo.
Rousseau foi o primeiro intelectual a se
autoproclamar, repetidas vezes, amigo de toda a humanidade. Porém, mesmo amando
a humanidade em geral, desenvolveu uma forte predisposição para brigar com
seres humanos em particular.
Uma das vítimas, seu amigo de outros tempos, o
dr. Tronchin, de Genebra, reclamou: "Como é possível que o amigo da humanidade
não seja amigo dos homens, ou que seja tão pouco amigo?". Como resposta, Rousseau defendeu seu direito
de fazer reprimendas àqueles que mereciam: "Sou o amigo da humanidade, e há
homens em toda parte. O amigo da verdade encontra também homens malévolos por
toda parte — e não é preciso ir muito longe"(20).
Sendo um egoísta, Rousseau costumava confundir
a hostilidade dirigida a ele com a hostilidade relacionada com a virtude e a
verdade enquanto tais. Por conseguinte, nada que seus inimigos fizessem era
pior do que tal hostilidade; a própria existência deles justificava a doutrina
da punição eterna: "Não sou violento por natureza", contou a Madame
d'Épinay, "mas quando percebo que não há justiça no mundo para esses monstros,
gosto de pensar que há um inferno esperando por eles".(21)
Visto que Rousseau era vaidoso, egoísta
e brigão, como se explica o fato
de ter havido tantas pessoas prontas a serem suas protetoras? A resposta para essa pergunta nos remete ao
centro de seu caráter e de seu significado histórico.
Em parte por acidente, em parte por instinto,
em parte por maquinação deliberada, ele foi o primeiro intelectual a explorar
sistematicamente a culpa pelo privilégio.
E o fez, sobretudo, e de um modo completamente
novo, pelo culto reiterado do primitivismo. Foi um protótipo daquele personagem
da era moderna, o jovem revoltado.
Não era antissocial por natureza. Na verdade,
desde muito cedo queria brilhar na alta sociedade. Em particular, gostava do
sorriso das mulheres de sociedade. "As costureiras", escreveu ele,
"as camareiras e as empregadas de loja não me atraíam. Precisava de jovens
damas." Porém, visivelmente ele era
um provinciano incorrigível, e era, em vários aspectos, rude e mal-educado.
Suas primeiras tentativas de entrar para a alta
sociedade, na década de 1740 - quando resolveu jogar o jogo dessa sociedade -,
representaram completos fracassos; sua primeira tentativa de ganhar os favores
de um mulher casada foi um desastre humilhante(22).
No entanto, depois que percebeu, com o sucesso de seu ensaio, as ricas
recompensas de se jogar a carta certa da natureza, ele inverteu sua tática. Ao
invés de tentar ocultar seu primitivismo, enfatizou-o. Transformou-o numa
virtude, e a estratégia funcionou.
Era costumeiro, entre a nobreza francesa mais
bem-educada, que se sentia cada vez mais constrangida no antigo sistema de privilégios
de classe, proteger escritores como se fossem talismãs para manter a maldade
afastada. O crítico social da época, C.P. Duclos, escreveu: "Entre os
magnatas, mesmo aqueles que realmente não gostam de intelectuais fingem que
gostam, já que está na moda"(23).
Muitos escritores, patrocinados dessa maneira,
procuravam imitar aqueles que mais se destacavam. Ao fazer o inverso, Rousseau
tornou-se um convidado muito mais interessante — e portanto, desejável — de
seus salões, um Bruto da Natureza ou um "Animal", como gostavam de
chamá-lo.
Ele exagerava de propósito suas emoções para se
opor às convenções, o impulso do coração sendo preferível às boas maneiras.
"Minhas emoções", dizia, "são do tipo que não podem ser
dissimuladas. Elas me desobrigam de ser cortês." Ele reconheceu que era
"grosseiro, desagradável e rude em essência. Não dou dois centavos por
seus cortesãos. Sou um bárbaro". Ou então: "Tenho coisas em meu coração
que me isentam de ser bem-educado".
Essa atitude se adequava muito bem a sua prosa, que era bem
mais simples do que as orações rebuscadas de muitos escritores da época. A
maneira como falava de forma direta se ajustava admiravelmente com o tratamento
sem meias-palavras que dispensava ao sexo (A
nova Heloísa foi um dos primeiros romances em que se mencionou o nome de
peças femininas como o espartilho).
Rousseau acentuava sua rejeição das normas
sociais por meio de uma simplicidade estudada e do uso de roupas largas, o que
se tornou a marca distintiva de todos os jovens românticos. Ele recordaria mais
tarde: "Comecei minha reforma por meu traje. Abandonei os galões dourados
e as meias brancas e joguei fora uma peruca redonda. Abandonei minha espada e
vendi meu relógio".
O próximo passo foi deixar o cabelo crescer, o
que ele chamou de "meu estilo descuidado habituai, com uma barba
irregular". Ele foi o primeiro dos intelectuais cabeludos.
Com o passar dos anos, desenvolveu vários artifícios
relacionados com seu vestuário para atrair para si a atenção das pessoas. Em
Neufchátel, Allan Ramsay pintou um retrato seu no qual usa um manto armênio,
uma espécie de cafetã. Chegou a usar esse robe para ir à missa. A população
local a princípio desaprovou, porém logo se acostumou com o traje, que em pouco
tempo se tornou um traço distintivo de Rousseau. Durante sua famosa viagem à
Inglaterra, usou esse manto no teatro Drury Lane e ficou tão ansioso para
responder aos aplausos da multidão que a sra. Garrick teve de agarrar o manto
para impedir que Rousseau caísse do camarote(24).
Allan Ramsay |
Conscientemente ou não, ele era bastante habilidoso em se autopromover:
suas excentricidades, sua grosseria em sociedade, seu extremismo pessoal, até
mesmo suas brigas atraíam muitíssima atenção e sem dúvida faziam parte do
interesse que despertava tanto em seus patronos aristocratas quanto em seus
leitores e admiradores.
Trata-se de um fato significativo, como veremos
adiante, que uma atuação como relações-públicas de si próprio — e não apenas
por meio de particularidades no vestir ou na aparência — tenha se tornado um
fator importante no sucesso de vários intelectuais de ponta. Nesse particular,
assim como em muitos outros aspectos, Rousseau foi o pioneiro.
Quem pode dizer que agiu errado? A maioria das
pessoas resiste às ideias, principalmente às novas. No entanto, é fascinada por
personagens. Ter uma personalidade extravagante é uma maneira de dourar a pílula
e induzir o público a voltar sua atenção para obras que tratam de ideias.
Como parte de sua técnica para assegurar a divulgação, a atenção e a
aceitação de suas obras, Rousseau, que era um bom psicólogo, transformou numa
virtude positiva o mais odioso dos vícios: a ingratidão. Para ele, esse não era
um defeito.
Apesar de manifestar espontaneidade, ele era,
na verdade, um homem calculista; e desde que se convencera de que era o mais
correto dos seres humanos segundo os critérios morais, a dedução lógica era que
as outras pessoas eram ainda mais calculistas do que ele, e por motivos mais
mesquinhos.
Assim, em todo negócio que fizessem com ele,
procurariam levar vantagem, e por isso ele teria de excedê-los em astúcia.
Desse modo, a base a partir da qual ele negociava com as outras pessoas era bem
simples: elas davam, ele recebia. Justificava tal atitude com um argumento
audacioso: visto ser uma pessoa incomparável, quem quer que o ajudasse estaria,
na verdade, fazendo um favor a si próprio.
Estabeleceu essa maneira de agir em sua
resposta à carta da Academia de Dijon em que o prêmio era-lhe concedido. Escreveu
ele que, em seu ensaio, tinha resolvido tomar o caminho impopular da verdade,
"e pela generosidade que tiveram em homenagear a minha coragem, vocês
homenagearam ainda mais a vocês mesmos. Sim, cavalheiros, o que fizeram por
minha glória representou uma coroa de louros que colocaram em vocês próprios".
Usou a mesma técnica quando sua fama já tinha
lhe proporcionado ofertas de hospitalidade; na verdade, essa técnica se
tornaria a segunda parte de sua estratégia.
Primeiro, insistia em que essa benevolência
para com ele era mais do que justa. "Sendo um homem doente, tenho direito
à indulgência que a humanidade deve àqueles que sentem dor". Ou ainda:
"Sou pobre, e (...) mereço uma ajuda especial". Desse modo, segundo
ele próprio, aceitar uma ajuda — o que só faria pressionado — era algo bastante
difícil para ele: "Quando me rendo diante de prolongadas súplicas e aceito
uma oferta que tinha sido repetida tantas vezes, eu o faço visando mais a paz e
a tranquilidade do que o benefício próprio. E quanto quer que tenha custado à
pessoa que me ajudou, na verdade ela está em débito comigo - pois custou mais
para mim". Daí em diante, já podia impor condições para aceitar, por
exemplo, o empréstimo de um cottage orné
ou de um pequeno castelo.
Ele não se incumbia de nenhuma obrigação
social, já que "minhas ideias de felicidade é (...) nunca ter de fazer
nada que eu não queira fazer". Nesse sentido, escreveu certa vez para um
anfitrião: "Devo insistir em que você me deixe completamente livre".
"Se você me fizer a menor contrariedade, não me verá nunca mais."
Suas cartas de agradecimento (se é que essa é a
melhor palavra para denominá-las) geralmente eram documentos desagradáveis:
"Eu lhe agradeço", escreveu numa delas, "pela visita que você me
convenceu a fazer, e meus agradecimentos teriam sido mais sinceros se você não
tivesse me obrigado a pagar tão caro por ela"(25).
Como assinalou um dos biógrafos de Rousseau, ele estava sempre
armando pequenas armadilhas para as pessoas. Enfatizava suas dificuldades e sua
pobreza e então, quando alguém oferecia ajuda, simulava, com ar surpreso ou
mesmo indignado, ter recebido uma ofensa. Assim: "Sua proposta gelou meu
coração. Você está interpretando erroneamente seus próprios interesses ao
tentar transformar um amigo num criado particular". E acrescentava:
"Não estou de má vontade para ouvir o que você tem a propor, a menos que
você entenda que eu não estou à venda". O pretendente a anfitrião, a essa
altura embaraçado, era então levado a reformular seu convite nos termos de
Rousseau(26).
Enciclopédie |
Porém, Rousseau não estava disposto a
ter uma existência apenas agradável e ao estilo de Harold Skimpole.
Ele era complicado e interessante demais para isso. Ao lado de seu caráter fria
e obstinadamente calculista, havia um autêntico elemento de paranoia, o qual não
permitia que ele se estabelecesse numa vida tranquila caracterizada por um
parasitismo autocentrado.
Ele brigava, com violência e no mais das vezes
de forma permanente, com quase todos aqueles com quem convivia de perto, e
especialmente com aqueles que o sustentavam. É impossível examinar a ladainha
dolorosa e repetitiva dessas brigas sem chegar à conclusão de que ele era um
homem mentalmente doente. Essa doença não excluía uma grande e singular capacidade
intelectual, sendo que a combinação das duas era perigosa tanto para Rousseau
quanto para as outras pessoas.
A convicção de uma total honradez era, é claro,
um sintoma primário de sua doença, e se Rousseau não possuísse talento em
nenhuma área, ele podia ter-se curado, ou então, na pior das hipóteses, se
limitado a representar uma pequena tragédia pessoal. Mas seus dotes extraordinários
como escritor proporcionaram-lhe aceitação, fama e até popularidade. Para ele,
isso foi uma prova de que sua convicção de estar sempre certo não era apenas um
juízo subjetivo, mas sim a opinião do mundo inteiro — excetuando-se, é claro,
seus inimigos.
Esses inimigos eram sempre antigos amigos ou benfeitores que (concluía Rousseau,
depois de brigar com eles) tinham tentado, sob a falsa aparência da amizade,
explorá-lo e destruí-lo. A ideia de uma amizade desinteressada lhe era
estranha, e visto que ele era melhor que os outros homens e não era capaz de
sentir tal emoção, concluía, com tanto mais razão, que esses homens também não
podiam senti-la. Por isso, os atos de todos os seus "amigos" eram
cuidadosamente observados por ele desde o início, e no momento em que davam um
passo em falso, já estava ciente de tudo.
Brigou com Diderot, a quem devia mais do que a
qualquer outro. Brigou com Grimm. Teve uma desavença particularmente violenta e
dolorosa com Madame d'Épinay, sua mais afetuosa benfeitora. Brigou com Voltaire
— o que não era muito difícil. Brigou com David Hume, que tinha lhe dado o
devido valor como mártir literário, levara-o para a Inglaterra, preparara uma
recepção digna de um herói e fizera tudo que estava a seu alcance para tornar a
visita um sucesso e para fazer Rousseau feliz.
Houve várias desavenças menores, por exemplo, com
seu amigo genebrês, o dr. Tronchin. Rousseau registrou grande parte das brigas
escrevendo imensas cartas de exposição de protesto. Esses documentos estão
entre suas obras mais brilhantes, são verdadeiros milagres da capacidade retórica,
em que as provas são engenhosamente inventadas, a história é reescrita e a
cronologia confundida — tudo com uma ingenuidade extraordinária — a fim de
provar que o receptor é um monstro.
A carta que escreveu para Hume, em 10 de julho
de 1766, que corresponde a 18 páginas de fólio (25 páginas impressas) e foi
descrita pelo biógrafo de Hume como sendo "coerente, com a coerência lógica
perfeita da demência (. . .), permanece como um dos documentos mais brilhantes
e fascinantes jamais produzidos por uma mente perturbada". (28)
Com o tempo, Rousseau passou a achar que esses atos individuais de inimizade por parte de homens e mulheres que tinham fingido gostar dele não eram isolados uns dos outros, mas faziam parte de uma estrutura que se encadeava. Tratava-se de agentes de uma conspiração ramificada e a longo prazo com o fim de enganá-lo, importuná-lo e mesmo destruí-lo, além de querer difamar sua obra.
Tendo atuado também durante sua vida pregressa,
ele acreditava que essa conspiração datava da época em que, com 16 anos de
idade, fora lacaio da Condessa de Vercellis: "Acredito que desde essa
época eu era vítima de um jogo pernicioso de interesses secretos, voltados
contra mim desde então e que me causaram uma compreensível antipatia em relação
à ordem aparente responsável por esse jogo".
Na realidade, Rousseau era tratado muito bem
pelas autoridades francesas, em comparação com outros escritores. Houve apenas
uma tentativa de prendê-lo, e o ilustre crítico Malesherbes geralmente fazia
todo o possível para ajudá-lo a publicar sua obra. Porém, a sensação de
Rousseau de ser vítima de uma rede internacional tornou-se mais forte,
principalmente durante sua visita à Inglaterra.
Malesherbes |
Por sua vez, as atitudes de Rousseau em Dôver,
pouco antes de partir definitivamente, sem dúvida foram histéricas. Ele correu
a bordo de um barco, se trancou numa cabine, depois saltou para um poste e se
dirigiu à multidão com a afirmação extravagante de que Thérèse agora colaborava
com o plano e estava tentando mantê-lo à força na Inglaterra. (29)
De volta ao continente, ele deu para pregar cartazes em sua porta da frente
com listagens das queixas que tinha contra os mais diversos grupos sociais que
o perseguiam: os padres, os intelectuais que estavam na moda, as pessoas
comuns, as mulheres, os suíços,
etc. Convenceu-se de que o Duque de Choiseul , que era ministro das Relações Exteriores da
França, se encarregava pessoalmente da conspiração internacional e passava
grande parte de seu tempo organizando a vasta rede de pessoas cujo trabalho era
transformar a vida de Rousseau numa desgraça. Os acontecimentos de âmbito
mundial, como a tomada de Córsega - para a qual Rousseau redigira uma constituição
- pela França, eram ingenuamente encaixados na história imaginária.
Estranhamente,
foi graças a um pedido de Choiseul que Rousseau fez, para os nacionalistas
poloneses, uma constituição similar destinada a uma Polônia independente, e
quando Choiseul saiu do poder em 1770, Rousseau ficou aflito: mais uma
artimanha agourenta!
Rousseau
dizia que nunca descobriria o crime original pelo qual "eles" estavam
dispostos a puní-lo (excetuando-se sua identificação com a verdade e a
justiça). Porém, não havia dúvidas quanto aos detalhes da intriga; ela era
"enorme, inimaginável": "Eles construirão ao meu redor uma
impenetrável edificação de sombras. Eles me enterrarão vivo num caixão (. . .).
Se eu viajar, tudo será preparado de antemão de modo a me controlar aonde quer
que eu vá. Os passageiros, os cocheiros, os estalajadeiros, todos eles serão
avisados (. . .). Essa aversão por mim será espalhada ao longo de minha estrada
para que, a cada passo que eu dê, por cada lugar que eu conhecer, meu coração
seja dilacerado".
Duque de Choiseul |
Quando terminou os Diálogos, passou a achar que "eles" pretendiam destruir os originais, e no dia 24 de fevereiro de 1776 foi à Catedral de Notre Dame com a intenção de exigir proteção para o manuscrito no altar-mor. Porém o acesso ao coro, misteriosamente, estava fechado. Tratava-se de um mau agouro, sem dúvida. Então ele fez seis cópias e colocou-as - seguindo alguma superstição - nas mãos de seis pessoas.
Resultado: uma delas foi parar com Brooke Boothby, de Lichfield, uma literata que era amiga do dr. Johnson, e foi ela quem primeiro publicou o livro, em 1780. Nessa época, como se sabe, Rousseau já tinha morrido, e até o último minuto estivera certo de que havia milhares de pessoas atrás dele . (30)
Os tormentos causados por esse tipo de demência são um fato comprovado, e
de vez em quando é impossível deixar de ter pena de Rousseau. Porém, em seu caso, isso não pode servir de
desculpa.
Ele foi um dos mais influentes escritores que já existiram. Auto-intitulava-se o "amigo da humanidade" e, em particular, o defensor dos princípios de verdade e virtude. Era - e, na verdade, continua sendo - aceito enquanto tal pela maioria. Por isso, é necessário examinar mais de perto seu comportamento como perpetuador da verdade e homem de virtude.
Ele foi um dos mais influentes escritores que já existiram. Auto-intitulava-se o "amigo da humanidade" e, em particular, o defensor dos princípios de verdade e virtude. Era - e, na verdade, continua sendo - aceito enquanto tal pela maioria. Por isso, é necessário examinar mais de perto seu comportamento como perpetuador da verdade e homem de virtude.
O que se
percebe? No que diz respeito à verdade, as consequências foram bastante significativas,
visto que, depois de sua morte, Rousseau se tornou conhecido principalmente por
suas Confissões. Esse livro foi um
esforço autoconsciente — nunca tentado antes — de contar a verdade mais íntima
sobre a vida de um homem.
O livro
constituía um novo tipo de autobiografia excessivamente sincera, do mesmo modo
que o livro de James Boswell sobre a vida do dr. Johnson, publicado 10 anos
mais tarde (1791), representou um novo tipo de biografia excessivamente
minuciosa.
Rousseau defendeu enfaticamente a
veracidade desse livro. No inverno de 1770-71, deu conferência acerca dele em salões lotados que duravam de 15
a 17 horas, com intervalos para as refeições.
Seus ataques contra suas vítimas eram tão insuportáveis que uma delas, a Madame d'Épinay, pediu às autoridades que acabassem com tais encontros. Rousseau concordou em parar, porém na última conferência acrescentou essas palavras: "Eu disse a verdade. Se alguém sabe de algum fato que contradiga o que acabo de dizer, mesmo se prová-lo mil vezes, tal fato será mentiroso e constituirá uma impostura (. . .) [quem quer que] observe com os próprios olhos minha natureza, meu caráter, meus princípios morais, minhas inclinações, prazeres e hábitos e acredite que sou um homem desonesto, essa pessoa merece, ela própria, ser estrangulada". Isso causava um grande silêncio.
Seus ataques contra suas vítimas eram tão insuportáveis que uma delas, a Madame d'Épinay, pediu às autoridades que acabassem com tais encontros. Rousseau concordou em parar, porém na última conferência acrescentou essas palavras: "Eu disse a verdade. Se alguém sabe de algum fato que contradiga o que acabo de dizer, mesmo se prová-lo mil vezes, tal fato será mentiroso e constituirá uma impostura (. . .) [quem quer que] observe com os próprios olhos minha natureza, meu caráter, meus princípios morais, minhas inclinações, prazeres e hábitos e acredite que sou um homem desonesto, essa pessoa merece, ela própria, ser estrangulada". Isso causava um grande silêncio.
Rousseau justificava sua fama de só
contar a verdade dizendo-se possuidor de uma memória extraordinária. Mais
importante: convenceu os leitores de que estava sendo sincero pelo fato de ser o primeiro homem a revelar detalhes de sua vida sexual, não num estilo alardeador machista mas, ao contrário, com vergonha
e relutância. Como ele diz corretamente, referindo-se "ao labirinto escuro
e sujo" de suas experiências sexuais: "O mais difícil de contar não é
o que fizemos de criminoso, mas o que nos faz sentir ridículos e
envergonhados".
Porém, até que ponto essa relutância era
sincera?
Em Turim, ainda jovem, perambulava pelas ruas
escuras da periferia exibindo as nádegas para as mulheres: "O prazer
descomunal que eu sentia expondo-as diante de seus olhos não pode ser
descrito". Rousseau era um exibicionista nato, tanto no âmbito sexual
quanto em outros, e havia uma certa graça no modo como narrava sua vida sexual.
Descreveu seu masoquismo: como gostava que a severa irmã do pastor - a Mademoiselle Lambercier - lhe desse palmadas nas nádegas despidas e como provocava propositadamente essa punição, fazendo travessuras. Ou como incitou uma garota mais velha — a Mademoiselle Groton — a bater nele: "Cair aos pés de uma senhora autoritária, obedecer a suas ordens, pedir seu perdão — isso era para mim um doce motivo de prazer"(31).
Descreveu seu masoquismo: como gostava que a severa irmã do pastor - a Mademoiselle Lambercier - lhe desse palmadas nas nádegas despidas e como provocava propositadamente essa punição, fazendo travessuras. Ou como incitou uma garota mais velha — a Mademoiselle Groton — a bater nele: "Cair aos pés de uma senhora autoritária, obedecer a suas ordens, pedir seu perdão — isso era para mim um doce motivo de prazer"(31).
Conta como, ainda garoto, começou a se
masturbar. Defende essa prática porque ela impede que os jovens contraiam
doenças venéreas e porque "esse vício, que os envergonhados e os tímidos
acham tão cômodo, tem mais de um atrativo para aqueles que têm imaginação: ele
os torna capazes de sujeitar todas as mulheres aos seus caprichos e faz com que
a mulher bonita satisfaça o seu desejo sem o consentimento dela".(32)
Relatou uma tentativa que um homossexual fez de seduzi-lo no hospício de Turim.(33) Admitiu ter dividido os favores de Madame de Warens com o jardineiro dela. Descreveu como foi incapaz de fazer amor com uma garota ao perceber que um de seus seios não tinha mamilo, e relembrou como, em seguida, ela o rejeitou violentamente, dizendo: "Deixe as mulheres sozinhas e vá estudar matemática".
Relatou uma tentativa que um homossexual fez de seduzi-lo no hospício de Turim.(33) Admitiu ter dividido os favores de Madame de Warens com o jardineiro dela. Descreveu como foi incapaz de fazer amor com uma garota ao perceber que um de seus seios não tinha mamilo, e relembrou como, em seguida, ela o rejeitou violentamente, dizendo: "Deixe as mulheres sozinhas e vá estudar matemática".
Rousseau e Warens |
Confessou que voltou a praticar a masturbação
quando era mais velho como uma alternativa mais cômoda do que manter uma vida
amorosa ativa. Dava a impressão, em parte de propósito e em parte inconscientemente,
de que sua atitude em relação ao sexo continuou sendo, em essência, infantil.
Por exemplo: sempre chamou sua amante, Madame de Warens, de "Mãezinha".
Essas confissões infamantes criaram a confiança em seu respeito pela
verdade. Ele a reforçou ao relatar outros episódios vergonhosos, não de cunho
sexual mas envolvendo roubos, mentiras, covardia e abandono. Porém, havia um aspecto de engenhosidade nisso tudo.
As acusações que fazia contra si mesmo tornavam as acusações posteriores contra os inimigos muito mais convincentes. Como Diderot observa, com raiva, "ele descreve a si mesmo com cores odiosas para dar a suas acusações injustas e cruéis a aparência de verdade".
As acusações que fazia contra si mesmo tornavam as acusações posteriores contra os inimigos muito mais convincentes. Como Diderot observa, com raiva, "ele descreve a si mesmo com cores odiosas para dar a suas acusações injustas e cruéis a aparência de verdade".
Além
disso, as autoacusações eram fingidas, pois toda vez que havia uma crítica a
si próprio, ele acompanhava o mero reconhecimento dessa crítica com uma
habilidosa apresentação de desculpas, e o leitor acabava se compadecendo com
ele e lhe dando crédito por sua franca sinceridade. (34)
Desse modo, outra vez as verdades que Rousseau apresenta com frequência passam a ser meias-verdades: sua sinceridade seletiva é, em certa medida, o aspecto mais insincero das Confissões e de suas cartas.
Desse modo, outra vez as verdades que Rousseau apresenta com frequência passam a ser meias-verdades: sua sinceridade seletiva é, em certa medida, o aspecto mais insincero das Confissões e de suas cartas.
Os
"fatos", que ele confessa com tanta franqueza, geralmente se mostram,
à luz do pensamento moderno, inexatos, deturpados ou inexistentes. Isso às
vezes é provado até mesmo por exemplos intrínsecos às obras.
Assim, faz dois relatos diferentes da investida homossexual, um no Emílo e outro nas Confissões.
Sua memória capaz de lembrar-se de tudo não passava de um mito. Ele cita a data errada da morte de seu pai e o descreve como tendo nessa ocasião "cerca de 60 anos", quando na verdade tinha 75. Mente a respeito de literalmente todos os detalhes de sua estada no hospício em Turim, um dos episódios mais críticos do começo de sua vida.
Assim, faz dois relatos diferentes da investida homossexual, um no Emílo e outro nas Confissões.
Sua memória capaz de lembrar-se de tudo não passava de um mito. Ele cita a data errada da morte de seu pai e o descreve como tendo nessa ocasião "cerca de 60 anos", quando na verdade tinha 75. Mente a respeito de literalmente todos os detalhes de sua estada no hospício em Turim, um dos episódios mais críticos do começo de sua vida.
Aos
poucos fica claro que não se pode acreditar em nenhuma afirmativa contida nas Confissões que não seja comprovada por uma
fonte externa. Na verdade, é difícil não concordar com um dos mais lúcidos críticos
modernos de Rousseau, J.H. Huizinga, quanto ao fato de que a afirmação
insistente nas Confissões de que o que se
narra é verdadeiro e sincero torna as deturpações e falsificações contidas no
livro particularmente vergonhosas: "Quão atentamente se leia e releia, quão
fundo se penetre em sua obra, mais camadas de ignomínia vão se revelando".(35)
O que
torna a insinceridade de Rousseau tão perigosa - o que tornava sua falsidade tão
temida por seus ex-amigos - era a habilidade e o brilhantismo diabólicos com
que era expressada.
Como afirma seu imparcial biógrafo, o professor Crocker: "Todos os relatos que faz sobre suas brigas (como no caso do episódio de Veneza) têm um irresistível poder de persuasão e eloquência e têm um ar de sinceridade; desse modo, os fatos causam um choque no leitor"(36).
Como afirma seu imparcial biógrafo, o professor Crocker: "Todos os relatos que faz sobre suas brigas (como no caso do episódio de Veneza) têm um irresistível poder de persuasão e eloquência e têm um ar de sinceridade; desse modo, os fatos causam um choque no leitor"(36).
Isso acontece no que diz respeito à
consideração que Rousseau tinha pela verdade. E quanto à virtude? Muito poucos
de nós levam uma vida que resiste a ser examinada mais de perto, e há algo de
maldoso em submeter a vida de
Rousseau - posta a nu de forma terrível pelo trabalho de milhares de estudiosos - a um julgamento moral.
Porém, uma vez que se aceita suas reivindicações,
e ainda mais sua influência na ética e no comportamento, não nos resta outra
alternativa. Ele era um homem - segundo dizia - que tinha nascido para amar, e
por isso ensinou a doutrina do amor com mais persistência do que muitos eclesiásticos.
Então, de que modo expressava seu amor por
aqueles que a natureza tinha posto perto dele?
A morte da mãe o privou, desde o nascimento, de
ter uma vida familiar normal. De um modo ou de outro, não pôde sentir nada em
relação a ela, pois nunca a conheceu. Porém, não demonstrava nenhuma afeição ou
interesse real em relação a outros membros da família. Seu pai não tinha nenhum
valor para ele, e sua morte representou apenas uma oportunidade de receber a
herança. Nessa época, o interesse de Rousseau por seu irmão, desaparecido havia
tanto tempo, foi reavivado na medida em que, ao certificar-se de que ele estava
morto, o dinheiro da família seria seu. Interessou-se pela própria família em
termos monetários.
Nas Conflssões,
descreve "uma de minhas aparentes contradições — a união de uma avareza
quase sórdida com um grande desprezo pelo dinheiro"(37).
Não há muitas provas de tal desprezo em sua vida. Segundo relatou, quando a herança da família foi homologada em seu favor, recebeu a ordem de pagamento e, com uma suprema força de vontade, evitou abrir o envelope até o dia seguinte. Então: "Abri-o com uma lentidão propositada e lá estava a ordem. Senti prazer por vários motivos, na hora, mas juro que o principal foi ter vencido a mim mesmo"(38).
Não há muitas provas de tal desprezo em sua vida. Segundo relatou, quando a herança da família foi homologada em seu favor, recebeu a ordem de pagamento e, com uma suprema força de vontade, evitou abrir o envelope até o dia seguinte. Então: "Abri-o com uma lentidão propositada e lá estava a ordem. Senti prazer por vários motivos, na hora, mas juro que o principal foi ter vencido a mim mesmo"(38).
Se essa era a atitude em relação a
sua família natural, como tratava a mulher que se tornou, em certo sentido, sua
mãe de criação, Mme. de Warens?
A
resposta é: de forma detestável.
Ela o tinha salvado da miséria no mínimo em quatro ocasiões, porém quando mais tarde ele enriqueceu e ela tornou-se pobre, pouco fez por ela. Segundo ele próprio, enviou-lhe uma "pequena" quantia quando herdou as propriedades da família, na década de 1740, porém recusou-se a enviar mais porque seria tomado dela por aqueles "patifes" que a rodeavam(39). Isso era desculpa. Depois disso, seus apelos para que ele a ajudasse não tiveram resposta.
Ela passou os dois últimos anos de vida acamada, e sua morte, em 1761, deve ter sido devido à má nutrição. O Conde de Charmette, que conhecia a ambos, condenou veementemente o fato de Rousseau não ter "retribuído pelo menos uma parte do que ele havia custado a sua generosa benfeitora".
Rousseau então continuou a tratá-la, em suas Confissões, com uma completa falsidade, aclamando-a como "a melhor das mulheres e mães". Afirmou que não lhe tinha escrito porque não queria que ela se sentisse infeliz ao tomar conhecimento de todos os problemas dele.
E terminava: "Vá, aproveite os
frutos de sua caridade e prepare para seu aluno o lugar que ele espera algum
dia alcançar a seu lado! Seja feliz em seus infortúnios porque o Céu, ao eliminá-los,
a dispensou de partilhar do espetáculo cruel no qual esse aluno representa".
Era característico em Rousseau tratar a morte dela num contexto puramente
egocêntrico.
Ela o tinha salvado da miséria no mínimo em quatro ocasiões, porém quando mais tarde ele enriqueceu e ela tornou-se pobre, pouco fez por ela. Segundo ele próprio, enviou-lhe uma "pequena" quantia quando herdou as propriedades da família, na década de 1740, porém recusou-se a enviar mais porque seria tomado dela por aqueles "patifes" que a rodeavam(39). Isso era desculpa. Depois disso, seus apelos para que ele a ajudasse não tiveram resposta.
Ela passou os dois últimos anos de vida acamada, e sua morte, em 1761, deve ter sido devido à má nutrição. O Conde de Charmette, que conhecia a ambos, condenou veementemente o fato de Rousseau não ter "retribuído pelo menos uma parte do que ele havia custado a sua generosa benfeitora".
Rousseau então continuou a tratá-la, em suas Confissões, com uma completa falsidade, aclamando-a como "a melhor das mulheres e mães". Afirmou que não lhe tinha escrito porque não queria que ela se sentisse infeliz ao tomar conhecimento de todos os problemas dele.
Sophie d'Houdetot |
Será que Rousseau foi capaz de amar
uma mulher sem restrições egoístas?
Segundo ele próprio, "o primeiro e único amor de minha vida" foi Sofia, ou Condessa d'Houdetot, cunhada de sua benfeitora, a Mme. d'Épinay.
Pode tê-la amado, porém sempre disse que tinha "tomado a precaução" de escrever-lhe cartas de amor de um modo que sua publicação fosse tão prejudicial para ele quanto para ela.
Segundo ele próprio, "o primeiro e único amor de minha vida" foi Sofia, ou Condessa d'Houdetot, cunhada de sua benfeitora, a Mme. d'Épinay.
Pode tê-la amado, porém sempre disse que tinha "tomado a precaução" de escrever-lhe cartas de amor de um modo que sua publicação fosse tão prejudicial para ele quanto para ela.
Sobre Thérèse Levasseur - a lavadeira de 23 anos que se tornou sua
amante em 1745 e assim continuou até que ele morresse, 33 anos depois — ele
disse: "Nunca senti por ela o menor lampejo de amor (...) as
necessidades sensuais que satisfiz com ela eram puramente sexuais e não se
relacionavam com ela como indivíduo". "Disse-lhe", escreveu,
"que nunca a deixaria e nunca me casaria com ela." Um quarto de
século depois, realizou um pseudocasamento com Thérèse diante de uns poucos
amigos, porém aproveitou a ocasião para fazer um discurso vangloriador no qual
afirmava que a posteridade erigiria estátuas em homenagem a ele e "então não
será nenhuma honra inútil ter sido amigo de Jean-Jacques Rousseau".
De certo modo, ele desprezava Thérèse
por ser uma jovem criada vulgar e ignorante e desprezava a si próprio por ser
seu cônjuge. Acusava a mãe dela de ser avarenta e o irmão de roubar suas 42
camisas finas (não havia provas de que a família dela fosse tão ruim quanto ele
faz parecer). Dizia que Thérèse não apenas não sabia ler ou escrever como era
incapaz de ver as horas e não sabia em que dia do mês se estava. Nunca saía com ela e quando convidava alguém
para jantar, ela não tinha permissão de se sentar à mesa. Trazia a comida, e
ele "fazia gracinhas com ela".
Para agradar a Duquesa de Montmorency-Luxemburgo, compilou uma lista de erros de sintaxe cometidos por Thérèse.
Mesmo alguns de seus maiores amigos chocavam-se com a maneira desdenhosa como a tratava. As pessoas da época dividiam-se ao julgá-la, algumas considerando-a uma companheira maliciosa; os incontáveis "hagiógrafos" de Rousseau descreveram-na da pior forma possível a fim de justificar seu comportamento vil em relação a ela. Porém, ela também teve fortes defensores(40) .
Para agradar a Duquesa de Montmorency-Luxemburgo, compilou uma lista de erros de sintaxe cometidos por Thérèse.
Mesmo alguns de seus maiores amigos chocavam-se com a maneira desdenhosa como a tratava. As pessoas da época dividiam-se ao julgá-la, algumas considerando-a uma companheira maliciosa; os incontáveis "hagiógrafos" de Rousseau descreveram-na da pior forma possível a fim de justificar seu comportamento vil em relação a ela. Porém, ela também teve fortes defensores(40) .
Na verdade, para fazer justiça a
Rousseau, ele também a elogiava: tinha "o coração de um anjo", era
"terna e virtuosa", "uma ótima conselheira" e "uma
garota simples e nada namoradeira". Achava-a "tímida e facilmente dominável".
De fato, não está claro que Rousseau a tenha
entendido, provavelmente porque preocupava-se demais consigo próprio para
voltar a atenção para ela.
Seu retrato mais fidedigno foi feito por James Boswell, que visitou Rousseau cinco vezes em 1764 e mais tarde acompanhou Thérèse numa viagem à Inglaterra(41). Ele achou-a "uma garota francesa pequena, vívida e simples", seduziu-a a fim de se aproximar mais de Rousseau e conseguiu obter dela duas cartas que Rousseau tinha escrito para ela (sô escreveria mais uma)(42).
Essas cartas revelam como ele era afetuoso e como mantinha com ela um relacionamento íntimo. Ela contou a Boswell: "Estou há 22 anos com Monsieur Rousseau. Não abandonaria minha posição nem para ser rainha da França". Por outro lado, assim que Boswell se tornou seu companheiro de viagem, seduziu-a sem a menor dificuldade.
O relato minucioso que ele fez desse caso foi retirado de seu diário manuscrito por seus testamenteiros literários, que assinalaram no espaço em branco: "Passagem Censurável". Mas deixaram uma frase na qual Boswell, em Dôver, tinha relembrado: "Ontem de manhã, tinha ido para sua cama bem cedo (em terra) e tinha feito isso uma vez: ao todo, já foram 13", e sobrou o bastante em suas anotações para revelá-la uma mulher bem mais sofisticada e experiente do que muita gente supôs. Na realidade, parece que ela era fiel a Rousseau em muitos aspectos, porém havia aprendido - pela maneira como ele próprio agia - a tratá-lo do mesmo modo que ele a tratava.
O afeto mais sincero de Rousseau cabia aos
animais. Boswell menciona uma cena encantadora em que ele brincava com seu gato
e seu cachorro Sultão. Deu a Sultão (e a seu predecessor, Turc) um amor que não
pôde dar aos humanos, e o gemido desse cão, que ele tinha levado consigo para
Londres, quase o impediu de assistir a uma apresentação beneficente que Garrick
tinha oferecido para ele em Drury Lane(43).
Rousseau manteve seu caso com Thérèse
e tratou-a tão bem porque ela podia fazer por ele coisas que os animais não
podiam, por exemplo: operar o cateter a fim de aliviar sua estenose.
Não
tolerava terceiros intrometendo-se na relação com ela: ficava furioso quando,
por exemplo, um editor a presenteava com um vestido; vetou prontamente um projeto para garantir a ela uma pensão, o
que teria representado sua independência em relação a ele. Sobretudo, não
deixaria que os filhos usurpassem seus direitos sobre ela, o que o levou a
cometer seu maior crime.
Uma vez que grande parte da reputação de
Rousseau se devia a suas teorias sobre a educação das crianças — um maior
desenvolvimento da educação é o tema principal e mais acentuado nos Discursos, no
Emílio, no Contrato Social e
mesmo em A nova Heloísa —, é curioso que
na vida real, em contraste com sua obra, ele tivesse tão pouco interesse em
crianças.
Não há nenhuma prova de que tenha observado
crianças de perto para verificar suas teorias. Afirmou que ninguém gostava mais
de brincar com crianças do que ele próprio, mas o único caso de que temos notícia
sobre essa particularidade não o confirma.
O pintor Delacroix conta, em seu diário (31 de maio de 1824), que um homem lhe contara ter visto Rousseau nos jardins das Tulherias: "A bola de uma criança bateu na perna do filósofo. Ele teve um acesso de raiva e começou a perseguir o garoto com sua bengala"(44).
Pelo que conhecemos de seu caráter, não era nada provável que Rousseau tivesse sido um bom pai. Mesmo assim, descobrir o que Rousseau fez com seus próprios filhos causa um choque terrível.
O pintor Delacroix conta, em seu diário (31 de maio de 1824), que um homem lhe contara ter visto Rousseau nos jardins das Tulherias: "A bola de uma criança bateu na perna do filósofo. Ele teve um acesso de raiva e começou a perseguir o garoto com sua bengala"(44).
Eugène Delacroix |
Pelo que conhecemos de seu caráter, não era nada provável que Rousseau tivesse sido um bom pai. Mesmo assim, descobrir o que Rousseau fez com seus próprios filhos causa um choque terrível.
Thérèse deu à luz ao primeiro no inverno de 1746-47. Não sabemos seu sexo.
Nunca teve nome. Com (diz ele) "a maior dificuldade do mundo",
convenceu Thérèse de que a criança devia ser abandonada "para que a honra dela fosse salva". Ela
"obedeceu com um suspiro". Ele colocou um cartão cifrado na roupa da
criança e disse à parteira que colocasse aquela trouxa no Hospital das Crianças
Encontradas.
As outras
quatro crianças que teve com Thérèse foram abandonadas exatamente da mesma
maneira, exceto pelo fato de que não se preocupou em anexar um cartão cifrado
nos outros filhos.
Nenhum
deles recebeu nome. É improvável que algum deles tenha sobrevivido por muito
tempo.
Uma história dessa instituição, a qual apareceu em 1746 no Mercure de France, torna claro que ela vivia lotada de crianças abandonadas — mais de 3 mil por ano. Em 1758, o próprio Rousseau observou que o total tinha aumentado para 5082. Por volta de 1772, a média era de oito mil. Dois terços dos bebês morriam no primeiro ano de vida. Uma média de 14 em cada 100 sobrevivia até a idade de sete anos, e desses, cinco alcançavam a maioridade, muitos deles tornando-se mendigos e vagabundos(45).
Uma história dessa instituição, a qual apareceu em 1746 no Mercure de France, torna claro que ela vivia lotada de crianças abandonadas — mais de 3 mil por ano. Em 1758, o próprio Rousseau observou que o total tinha aumentado para 5082. Por volta de 1772, a média era de oito mil. Dois terços dos bebês morriam no primeiro ano de vida. Uma média de 14 em cada 100 sobrevivia até a idade de sete anos, e desses, cinco alcançavam a maioridade, muitos deles tornando-se mendigos e vagabundos(45).
Rousseau
nem mesmo anotou as datas dos nascimentos de seus cinco filhos e nunca teve
nenhum interesse no que aconteceu com eles, exceto por uma vez, em 1761, quando
achou que Thérèse estava morrendo e fez uma tentativa, sem maior empenho e logo
interrompida, de usar a cifra para descobrir o paradeiro do primeiro filho.
Então, em
1764, Voltaire, irritado com o ataque de Rousseau contra seu ateísmo, publicou
um panfleto anônimo, escrito à maneira de um pastor genebrês, chamado Le sentiment des citoyens.
Nele, havia uma acusação direta ao fato de ter abandonado seus cinco filhos; porém, também era afirmado que ele era sifilítico e assassino, e o desmentido de Rousseau a todas essas acusações foi aceito de uma forma geral.
De todo modo, ele refletiu sobre
o episódio e esse foi um dos fatores determinantes que o levaram a escrever as Confissões, que, em essência, pretendiam
refutar ou minimizar a importância dos fatos que já eram de conhecimento público.
Por duas vezes nesse livro se defende no que diz respeito aos bebês, e volta a
tocar no assunto nos Devaneios... e em várias
cartas.
Nele, havia uma acusação direta ao fato de ter abandonado seus cinco filhos; porém, também era afirmado que ele era sifilítico e assassino, e o desmentido de Rousseau a todas essas acusações foi aceito de uma forma geral.
Thérèse Levasseur |
No
conjunto, seus esforços de autojustificação, tanto em âmbito público como
privado, se estenderam por mais de 25 anos e variaram consideravelmente na
forma. Tais esforços só faziam as coisas piorarem, visto que combinavam a
crueldade e o egoísmo com a hipocrisia(46).
Primeiro,
culpou o círculo pernicioso dos intelectuais ateus, ao qual passou a atribuir a
ação de ter incutido, em sua cabeça inocente, a ideia do orfanato. Além disso,
ter filhos era uma "inconveniência". Ele não aguentaria. "Como
posso ter a tranquilidade mental necessária para o trabalho com minha cabeça
ocupada com as responsabilidades domésticas e o barulho das crianças?".
Teria de
rebaixar-se a realizar tarefas degradantes, "todos esses atos infames que
me infundem um horror tão justificável". "Sei muito bem que nenhum
pai é mais afetuoso do que eu teria sido", mas ele não queria que seus filhos
tivessem nenhum contato com a mãe de Thérèse: "Tremia diante da idéia de
deixar meus filhos aos cuidados daquela família grosseira".
Crueldade? Mas como alguém com seu notável caráter moral podia ser acusado de tal sentimento?
"(...) meu amor ardente com relação ao grandioso, à verdade, à beleza e à justiça; meu horror a todo tipo de maldade, minha absoluta incapacidade de odiar ou ferir, ou mesmo pensar em tais coisas; a emoção agradável e vívida que sinto diante de tudo aquilo que é virtuoso, generoso e benévolo; será possível, eu pergunto, que tudo isso conviva no mesmo coração com a vileza que, sem o menor escrúpulo, esmaga sob os pés a mais encantadora das obrigações? Não! Eu sinto e afirmo em alto e bom som — isso é impossível! Nunca, por nenhum momento em sua vida, poderia Jean-Jacques ter sido um homem sem sentimentos, sem compaixão ou um pai desnaturado."
Crueldade? Mas como alguém com seu notável caráter moral podia ser acusado de tal sentimento?
"(...) meu amor ardente com relação ao grandioso, à verdade, à beleza e à justiça; meu horror a todo tipo de maldade, minha absoluta incapacidade de odiar ou ferir, ou mesmo pensar em tais coisas; a emoção agradável e vívida que sinto diante de tudo aquilo que é virtuoso, generoso e benévolo; será possível, eu pergunto, que tudo isso conviva no mesmo coração com a vileza que, sem o menor escrúpulo, esmaga sob os pés a mais encantadora das obrigações? Não! Eu sinto e afirmo em alto e bom som — isso é impossível! Nunca, por nenhum momento em sua vida, poderia Jean-Jacques ter sido um homem sem sentimentos, sem compaixão ou um pai desnaturado."
Uma vez admitida sua virtude, Rousseau era obrigado a ir mais longe e
defender suas ações sobre bases positivas.
Nesse
ponto, quase por acidente, Rousseau leva-nos ao centro de sua questão pessoal e
de sua filosofia política.
Vale insistir no fato de ele ter abandonado os próprios filhos, não apenas porque se trata do exemplo mais impressionante de sua crueldade, mas também porque fazia parte, organicamente, do processo que deu origem a sua teoria da política e do papel do Estado.
Vale insistir no fato de ele ter abandonado os próprios filhos, não apenas porque se trata do exemplo mais impressionante de sua crueldade, mas também porque fazia parte, organicamente, do processo que deu origem a sua teoria da política e do papel do Estado.
Rousseau
se considerava uma criança abandonada. Em vários aspectos, nunca chegou
realmente a crescer, e continuou sendo uma criança dependente por toda a sua
vida, tratando Mme. de Warens como uma mãe e Thérèse como uma babá.
Há várias
passagens em suas Confîssões, e mais
ainda em suas cartas, em que o aspecto infantil é enfatizado. Muitos daqueles
que se relacionavam com ele - Hume, por exemplo - viam-no como uma criança. No início,
pensavam que era uma criança inofensiva, que podia ser persuadida, porém
descobriram, depois de pagar um preço alto, que estavam tratando com um delinquente
brilhante e cruel.
Visto que
Rousseau se sentia (em alguns aspectos) uma criança, compreende-se que não
pudesse educar os próprios filhos. Algo tinha de tomar o lugar dele, e esse
algo era o Estado, na forma de um orfanato.
Por isso, afirmava ele, o que fez foi
"uma boa e sensível arrumação". Era exatamente o que Platão defendia.
As crianças seriam "melhores se não fossem educadas com delicadeza, pois desse modo se tornariam mais
fortes". Elas seriam "mais felizes que seus pais". "Já
desejei", escreveu ele, "e ainda desejo que eu tivesse sido criado e
educado como eles foram." "Se eu tivesse tido a mesma sorte. .
." Em pouco tempo, ao transferir suas responsabilidades para o Estado,
"Percebi que estava representando o papel de um cidadão e um pai e que me
via como um membro da República de Platão".
Platão |
Rousseau afirma que a contrariedade
que causou sua atitude em relação aos filhos levou-o finalmente a formular a
teoria da educação que é apresentada no Emílio. Ela também ajudou a dar
forma ao Contrato social, publicado no
mesmo ano.
O que começou como processo de autojustificação
de um caso particular - uma série de desculpas improvisadas e mal planejadas
para um comportamento que ele já devia saber, previamente, que não era normal -
evoluiu gradualmente, com a repetição e a crescente autoestima as solidificando
em convicções reais, até chegar à proposição de que a educação era o ponto
principal para o desenvolvimento social e moral e, sendo assim, representava
uma responsabilidade do Estado.
O Estado devia formar as opiniões de todos, não
apenas das crianças (como fez no caso dos filhos de Rousseau, por meio do
orfanato) mas também dos cidadãos adultos.
Graças a uma lógica moral infame, a perversidade de Rousseau como pai estava ligada a sua consequência ideológica futura: o Estado totalitário.
As ideias políticas de Rousseau sempre estiveram envolvidas em confusão, visto que ele era um escritor incoerente e contraditório - uma das razões pelas quais o empreendimento de Rousseau alcançou proporções gigantescas: os eruditos vivem de resolver "problemas".
Graças a uma lógica moral infame, a perversidade de Rousseau como pai estava ligada a sua consequência ideológica futura: o Estado totalitário.
As ideias políticas de Rousseau sempre estiveram envolvidas em confusão, visto que ele era um escritor incoerente e contraditório - uma das razões pelas quais o empreendimento de Rousseau alcançou proporções gigantescas: os eruditos vivem de resolver "problemas".
Em algumas passagens de sua obra, ele aparece
como um conservador, opondo-se fortemente à revolução: "Pense nos perigos
de pôr as massas em movimento". "As pessoas que fazem revoluções
quase sempre acabam se rendendo aos tentadores, que tornam suas correntes mais
pesadas do que antes." "Não saberia o que fazer com conspirações
revolucionárias que sempre conduzem à desordem, à violência e ao derramamento
de sangue." "A liberdade de toda a raça humana não vale a vida de um
simples homem."
Porém, seus escritos também são pródigos em uma
mordacidade radical. "Odeio os grandes, odeio o grupo social deles, sua
estridência, seus preconceitos, sua mesquinhez, todos os seus vícios."
Escreveu para uma dama da alta sociedade: "E a classe rica, sua classe,
que rouba da minha o pão de meus filhos", e confessava ter "um certo
ressentimento em relação aos ricos e bem-sucedidos, como se a riqueza e
felicidade deles tivessem sido alcançadas à minha custa". Os ricos eram
"lobos famintos que, tendo provado carne humana, recusam qualquer outro
tipo de alimento".
Seus vários aforismos vigorosos, que tornam
seus livros tão vivamente sedutores, em especial para os jovens, têm um tom
radical. "Os frutos da terra pertencem a nós todos, a terra propriamente
dita não pertence a ninguém." "O homem nasce livre e está, em toda a
parte, preso a correntes."
No verbete que criou para a Encyclopédie sobre economia política, ele resume
a atitude da classe dirigente nos seguintes termos: "Você precisa de mim
pois sou rico e você, pobre. Façamos um acordo: permitirei que você tenha a
honra de me servir, contanto que, pelo inconveniente de ter de dominá-lo, você
me dê tudo que possui".
Entretanto, assim que compreendemos que tipo de
Estado que Rousseau desejava criar, suas opiniões começam a demonstrar coerência.
Era necessário substituir a sociedade vigente por algo completamente diverso e,
em essência, um modelo que fosse igualitário; porém, uma vez feito isso, a
desordem revolucionária não poderia ser permitida.
Os ricos e privilegiados, assim como as forças
de manutenção da ordem, seriam substituídos pelo Estado, encarnando a Vontade Geral,
à qual todos obedeceriam por convenção. Tal
obediência se tornaria espontânea e voluntária desde que o Estado, por um
processo sistemático de planejamento cultural, incutisse a virtude em todos.
Totalitarismo |
É verdade que os cidadãos-filhos, ao contrário
dos próprios bebês de Rousseau, concordam previamente em se submeter ao
Estado-orfanato por meio de um contrato livre.
Desse modo, estabelecem, por sua vontade coletiva, a legalidade desse contrato, e depois disso não têm direito de se sentir coagidos, uma vez que, tendo desejado as leis, devem se sentir bem com as obrigações que se autoimpuseram(47).
Desse modo, estabelecem, por sua vontade coletiva, a legalidade desse contrato, e depois disso não têm direito de se sentir coagidos, uma vez que, tendo desejado as leis, devem se sentir bem com as obrigações que se autoimpuseram(47).
Embora Rousseau escreva sobre a Vontade Geral
em termos de liberdade, ela é basicamente um instrumento totalitário, um
primeiro presságio do "centralismo democrático" de Lenin.
As leis feitas de acordo com a Vontade Geral
devem ter, por definição, autoridade moral. "O povo, criando leis para si
mesmo, não pode estar sendo injusto". "A Vontade Geral é sempre
justa." Além disso, desde que o Estado esteja "bem-intencionado"
(i.e., seus objetivos a longo prazo sejam desejáveis), a interpretação dessa
Vontade Geral pode ser tranquilamente deixada a cargo dos líderes desde que
"eles saibam que a Vontade Geral sempre favorece a decisão mais propícia
ao interesse público".
Por isso, qualquer indivíduo que esteja em oposição à Vontade Geral está incorrendo em erro: "Quando uma opinião contrária à minha prevalece, isso apenas prova que eu estava errado e que o que eu pensava ser a Vontade Geral, não era". Na verdade, "se minha opinião particular tivesse prevalecido, eu teria alcançado um resultado contrário a minha vontade e, por isso, não estaria livre".
Estamos próximos da região de insensibilidade de Darkness at noon, de Arthur Koestler, ou da "Novilíngua", de George Orwell.
Por isso, qualquer indivíduo que esteja em oposição à Vontade Geral está incorrendo em erro: "Quando uma opinião contrária à minha prevalece, isso apenas prova que eu estava errado e que o que eu pensava ser a Vontade Geral, não era". Na verdade, "se minha opinião particular tivesse prevalecido, eu teria alcançado um resultado contrário a minha vontade e, por isso, não estaria livre".
Estamos próximos da região de insensibilidade de Darkness at noon, de Arthur Koestler, ou da "Novilíngua", de George Orwell.
O Estado de Rousseau não é apenas autoritário:
é também totalitário, uma vez que regula todos os aspectos da atividade humana,
inclusive o pensamento. Submetido ao contrato social, o indivíduo seria
obrigado a "se alienar de si, juntamente com todos os seus direitos, em
prol do conjunto da comunidade" (i.e., o Estado).
Rousseau afirmava que esse era um conflito
interminável entre o egoísmo natural do homem e suas obrigações sociais, entre
o Homem e o Cidadão. E isso o fazia infeliz.
A função do contrato social, e do Estado que
viria como consequência dele, era tornar o homem novamente inteiro: "Faça
do homem uma unidade e você lhe dará a maior felicidade que ele pode sentir.
Entregue-o inteiramente ao Estado ou deixe-o inteiramente só. Mas se você
dividir seu coração, você o rasgará em duas partes".
Devemos, por conseguinte, tratar cidadãos como
filhos e controlar sua criação e seus pensamentos, incutindo a "lei social
no fundo de seus corações". Eles então se tornam "homens sociais por
natureza e cidadãos por vocação; serão uma unidade, serão bons, felizes e sua
felicidade será a da República".
Esse procedimento pressupunha uma submissão
total. Em seu primeiro juramento de contrato social para o projeto da Constituição
de Córsega, se lê: "Junto-me, com meu corpo, meus bens, minhas vontades e
todas as minhas forças, à nação córsica, concedendo a ela o direito sobre mim,
ou seja, sobre a minha pessoa e sobre aqueles que dependem de mim"(48).
O Estado, nesse sentido, seria "o dono dos
homens e de suas forças", e controlaria cada aspecto da vida econômica e
social, a qual devia ser austera, contida nos luxos e nada urbana, estando as
pessoas impedidas de entrar nas cidades exceto por permissão especial.
Em vários aspectos, o Estado que Rousseau
planejou para a Córsega antecipava aquele que o regime de Pol Pot tentou de
fato implantar no Camboja, o que não é de todo surpreendente, já que os líderes
desse regime - os quais haviam estudado em Paris - tinham absorvido as ideias
de Rousseau.
Pol Pot |
E claro que Rousseau acreditava verdadeiramente
que esse tipo de Estado só seria alcançado quando o povo estivesse pronto a
aceitá-lo. Ele não chegou a usar a expressão "lavagem cerebral", mas
escreveu: "Aqueles que controlam as opiniões de um povo, controlam as ações
desse povo".
Esse controle é estabelecido tratando-se os
cidadãos, desde a infância, como filhos do Estado, educados para "ver a si
próprios somente em relação ao Corpo do Estado". "Por não terem
autonomia em relação ao Estado, eles nada farão que não seja pelo Estado. Este
terá tudo o que eles têm e será tudo o que eles são." Mais uma vez, isso
antecipa a doutrina fascista principal de Mussolini: "Tudo dentro do
Estado, nada fora do Estado e nada contra o Estado".
Desse modo, o processo educacional era o
segredo para o êxito de uma organização social necessária para tornar o Estado
aceitável e bem-sucedido; o eixo das ideias de Rousseau era o cidadão como o
filho e o Estado como os pais, e ele insistiu em que o governo devia ter uma
responsabilidade total pela educação de todos os filhos.
Benito Mussolini |
A política resolve tudo. Desse modo, Rousseau
traçou o plano para as principais fraudes e loucuras do século XX.
A fama de Rousseau durante a vida, assim como a
influência que alcançou depois de sua morte, suscita questionamentos inquietantes
a respeito do logro humano, assim como da propensão no homem de rejeitar a
evidência de algo que prefere não admitir.
A aceitação do que Rousseau escreveu se deveu,
em grande parte, a sua reivindicação enérgica no sentido de não ser visto
apenas como um homem respeitável, mas como o homem mais respeitável de sua
época.
Por que motivo tal reivindicação não caiu no
ridículo e não foi considerada infame depois que as fraquezas e perversidades
de Rousseau tornaram-se não apenas de conhecimento público mas objeto de um
debate internacional?
Afinal de contas, as pessoas que o atacavam não
eram nem suas desconhecidas nem adversários políticos, mas antigos amigos e
aliados que não tinham poupado esforços para ajudá-lo. As acusações que faziam
eram graves, e a denúncia coletiva foi violentíssima.
Hume, que já o havia descrito como "dócil,
modesto, afetuoso, desinteressado e extremamente sensível", passou a
achar, por uma observação direta durante bastante tempo, que ele era "um
monstro que se via como o único ser importante do universo".
Diderot, depois de um longo convívio,
descreveu-o como "enganador, vaidoso como Satã, mal-agradecido, cruel, hipócrita
e cheio de maldade".
Para Grimm, ele era "odioso,
desumano". Para Voltaire, era
"um poço de presunção e vileza".
Ainda mais violentas são as opiniões das mulheres
benevolentes que o ajudaram, como por exemplo Madame d'Epinay e seu inocente
marido. As últimas palavras que ela dirigiu a Rousseau foram: "Não tenho
nenhum sentimento por você a não ser pena".
Essas opiniões não se baseavam nas palavras de Rousseau, mas em seus atos. E desde sua época - mais de 200 anos atrás - a quantidade de documentos descobertos pelos estudiosos tem servido para confirmá-las de forma inexorável.
Essas opiniões não se baseavam nas palavras de Rousseau, mas em seus atos. E desde sua época - mais de 200 anos atrás - a quantidade de documentos descobertos pelos estudiosos tem servido para confirmá-las de forma inexorável.
Um acadêmico moderno arrola os defeitos de
Rousseau da seguinte forma: ele era "masoquista, exibicionista,
neurastênico, hipocondríaco, onanista, homossexual não manifesto afligido pelo
impulso típico para se deslocar constantemente, incapaz de ter afetos normais
ou paternos, com forte propensão à paranoia, um narcisista introvertido tornado
antissocial graças a sua doença, cheio de sentimento de culpa, tímido num grau
patológico, cleptomaníaco, infantil, irritadiço e avarento" (50).
Tais acusações, e a ampla exposição das provas
nas quais elas se baseiam, afetaram num grau bastante pequeno o respeito que se
tinha - e ainda se tem - por Rousseau e sua obra, o qual era defendido pelos
que sentiam por ele uma atração intelectual e emocional.
Durante sua vida, não importa quantos
relacionamentos tivesse destruído, ele nunca sentiu a menor dificuldade em
começar novas relações e atrair novos admiradores, discípulos e magnatas
prontos a ceder as casas, os jantares e os elogios que ele desejava.
Quando morreu, foi enterrado na Ilha des
Peuplies, no lago que fica em Ermononville, lugar que logo se tornaria um ponto
de peregrinação secular para homens e mulheres de toda a Europa, como o túmulo
de um santo na Idade Média.
As descrições feitas por esses grotescos dévotés são textos hilariantes: "Pus-me
de joelhos (...) pressionei os lábios contra a pedra gelada do monumento (...)
e beijei-a repetidas vezes"(51).
As relíquias, como a cartucheira de fumo e uma
jarra, foram preservadas com cuidado no "Santuário", como era
conhecido seu túmulo.
Isso faz lembrar Erasmo e John Colet visitando
o grande túmulo de São Tomás em Becket, Canterbury, em 1512, e zombando dos
exageros dos peregrinos.
O que teriam eles falado a respeito de "São Rousseau" (como seria chamado, reverentemente, por George Sand) 300 anos depois que a Reforma supostamente proibira esse tipo de comportamento?
O que teriam eles falado a respeito de "São Rousseau" (como seria chamado, reverentemente, por George Sand) 300 anos depois que a Reforma supostamente proibira esse tipo de comportamento?
Os aplausos continuaram bem depois de as cinzas
terem sido transferidas para o Panteão.
Para Kant, ele tinha "uma sensibilidade
espiritual de inigualável perfeição".
Para Shelley, era um "gênio sublime".
Para Schiller, tinha "uma alma próxima à do Cristo, para quem apenas os anjos eram uma companhia à altura".
Para Shelley, era um "gênio sublime".
Para Schiller, tinha "uma alma próxima à do Cristo, para quem apenas os anjos eram uma companhia à altura".
John Stuart Mill e George Elliot, Hugo e
Flaubert, todos fizeram suas sinceras homenagens a ele.
Tolstói disse que Rousseau e o Evangelho tinham
sido "as duas maiores e mais salutares influências de minha vida".
Um dos intelectuais mais influentes de nosso
tempo, Claude Lévi-Strauss, em sua principal obra, Tristes trópicos, o aclama como "nosso
mestre e irmão (...) cada página deste livro podia ter sido dedicada a ele,
caso isso não fosse indigno para com sua grande memória"(52).
Tudo isso
é muito desconcertante e nos faz lembrar que os intelectuais são tão
insensatos, ilógicos e supersticiosos quanto qualquer pessoa.
Na verdade,
parece que Rousseau foi um escritor genial mas, indubitavelmente, era um
desequilibrado no que diz respeito a sua vida e suas opiniões.
Ele foi
descrito com perfeição pela mulher que, segundo ele, foi seu único amor, Sophie
d'Houdetot.
Ela viveu até 1813 e, já numa idade bastante avançada, emitiu o seguinte julgamento: "Ele era repulsivo o bastante para me meter medo, e o amor não o tornou mais atraente. Mas ele era uma figura patética e eu o tratava de forma afável e generosa. Era um louco interessante"(53).
Ela viveu até 1813 e, já numa idade bastante avançada, emitiu o seguinte julgamento: "Ele era repulsivo o bastante para me meter medo, e o amor não o tornou mais atraente. Mas ele era uma figura patética e eu o tratava de forma afável e generosa. Era um louco interessante"(53).
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