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Thursday, June 28, 2018

Padre Jean Meslier - O Ateu Revoltado




O padre francês Jean Meslier (1664 – 1729) deixou para a posteridade escritos que revelavam seu ateísmo e seu ódio aos poderosos de todos os tipos.

Sua filosofia da revolta era oriunda do seu testemunho e vivência numa sociedade na qual o povo era explorado e ludibriado através de “verdades” pregadas e impostas pelas autoridades dominantes (estado e religião).

O livro “Ateísmo e Revolta – Os Manuscritos do Padre Jean Meslier”, de Paulo Jonas de Lima Piva, traça, de modo relativamente acessível, um panorama sobre a vida e ideias de Meslier, o que nos permite ter contato com a filosofia deste homem extraordinário.

Em “Ateísmo e Revolta” Paulo Jonas revela a verdadeira origem da frase "O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre", erroneamente atribuída a Diderot ou ao próprio Meslier.

 
Reproduzo aqui trecho do Capítulo III, “Deicídio e Materialismo : o Ser segundo Jean Meslier”, do livro de Lima Piva, que dá uma geral na filosofia do padre e apresenta o verdadeiro autor da famosa frase (na verdade uma corruptela da frase original), com alguns comentários meus, assinalados com **

No final do texto publico alguns links para quem quiser saber mais sobre Meslier e mais algumas fontes
 
Jean Meslier
Deicídio e Materialismo : o Ser segundo Jean Meslier”,

Crer em Deus é acreditar em Papai Noel, mas na enésima potência, ou antes, na potência infinita.
André Comte-Sponville, Apresentação da filosofia.

Com base sobretudo na crítica ao dualismo metafísico do século XVII e no combate aos principais dogmas da escolástica e do cristianismo, Jean Meslier e os demais pensadores da primeira geração francesa dos escritores clandestinos das Luzes ( ** anteriormente no livro, Lima Piva traça um histórico dos textos clandestinos anteriores ao Iluminismo) elaboraram uma importante filosofia pessoal, não menos ambiciosa, aliás, do que as doutrinas tradicionais e consagradas. 

 [...]

(** a seguir Piva apresenta todos os textos legado por Meslier)

Paulo Jonas de Lima Piva - Doutor Filosofia USP
Como vimos, as reflexões de Meslier que chegaram até nós encontram- se reunidas nas Oeuvres complètes, a qual compreende a Memória dos pensamentos e dos sentimentos de Jean Meslier, as Cartas aos curas da vizinhança, e o conjunto de notas de leitura referentes à Demonstração da existência de Deus, de Fénelon, e às Reflexões sobre o ateísmo, do padre Tournemine, intitulado posteriormente de Anti-Fénelon.

Nesses textos, o autor registrou o que poderíamos chamar seguramente de sua filosofia, valendo-se de sua experiência existencial e das ponderações resultantes das suas leituras [...]. 

O propósito deste capítulo é expor finalmente os argumentos mais relevantes do materialismo ateu e anticristão de Meslier desenvolvidos ao longo de sua obra, esta, de acordo com Maria das Graças de Souza  "um conjunto de textos de conteúdo muito radical, e, embora escrito com pouca elegância e nem sempre com rigor, procura efetuar a crítica de toda a tradição metafísica dualista, de todas as religiões, sobretudo o cristianismo, e manifesta um ateísmo cujas fontes são heterogêneas [...].

Isto posto, adotaremos como ponto de partida um exame minucioso da Memória (ou Testamento), obviamente o seu texto mais denso e expressivo. 

[...]
 

MEMÓRIA DOS PENSAMENTOS E DOS SENTIMENTOS DE JEAN MESLIER

O título completo da "Memória" é bastante elucidativo em seu excesso de extensão, esta, aliás, uma característica comum aos tratados da época. 

Trata-se, na verdade, de um título que é ao mesmo tempo um abstract, no qual são anunciados os escopos do autor, e, por isso, vale ser ressaltado:

"Memória dos pensamentos e dos sentimentos de Jean Meslier, padre, cura de Etrépigny e de Balaives, sobre uma parte dos erros e dos abusos da conduta e do governo dos homens, onde se vê demonstrações claras e evidentes da futilidade e da falsidade de todas as divindades e de todas as religiões do mundo, para ser dirigida aos seus paroquianos após a sua morte e para servir-lhes de testemunha da verdade e a todos os seus semelhantes".

O texto é constituído de dez partes, sendo uma longa e muito importante apresentação, oito seções ou "provas", cada uma delas demonstrações subdivididas em vários capítulos ou tópicos, e uma conclusão geral. 

Em tais "provas", as quais percorrem os três volumosos tomos da obra, o padre aborda fundamentalmente temas relacionados à religião, à metafísica e à política. 

 [...]  na divisão mais detalhada das provas [...] encontramos as seguintes teses, assim resumidas: 

1* Prova: as religiões são invenções humanas; 
2* Prova: a fé é um princípio de erro;
3* Prova: as pretensas visões sobrenaturais e revelações divinas são falsas;
4" Prova: as promessas e profecias são ilusões;
5* Prova: a doutrina cristã em sua teologia e em sua moral é absurda;
6* Prova: a religião em conluio com a política é a verdadeira causa histórica da opressão e da miséria;
7* Prova: a ideia da existência de uma divindade é quimérica, ou seja, Deus não existe;
8* Prova: a alma não é espiritual tampouco imortal, mas material/corporal e mortal.


"APRESENTAÇÃO"

Três partes compõem a "Apresentação" [...] da "Memória".

Na primeira delas, "Desígnio da Obra", Meslier anuncia os objetivos do seu empreendimento, assinala o seu caráter testamental, esforça-se para justificá-lo, e manifesta o seu profundo mal-estar, trazendo à tona o seu drama de consciência em ter de cumprir contra a própria vontade os deveres da sua condição de padre, o principal deles, o de inculcar na consciência dos seus paroquianos, todos eles ignaros e ingênuos camponeses, os dogmas bíblicos, dos quais discordava com radicalidade e veemência. 

Por temer as represálias dos seus superiores eclesiásticos, a perseguição do senhor do vilarejo onde habitava e pregava e a condenação das implacáveis instâncias repressivas do Antigo Regime, Meslier fez, como já é sabido (** em capítulo anterior o autor discorre amplamente sobre a tenebrosa situação social na qual Meslier viveu), a angustiante opção de não tornar públicas, em vida, as suas opiniões acerca dos governos, das religiões e dos costumes da humanidade, todas elas, aliás, de uma impressionante contundência para um cura, o que poderia custar-lhe não apenas a excomunhão e a perda do ofício, mas sobretudo a própria vida. 

Meslier contava então com quase sessenta anos e já pressentia a falência do seu corpo e a iminência da sua morte. De modo que guardou para si, no mais absoluto segredo, registrados em manuscritos, as suas reflexões e os seus sentimentos mais profundos de indignação e de repugnância em relação à opressão e às injustiças sociais promovidas pelos poderosos contra os humildes, e em relação aos erros doutrinários e aos embustes políticos cometidos historicamente pelas religiões, em particular pela Igreja Católica. 

A solução mais sensata e segura encontrada por ele em face das adversidades daquele momento foi tornar póstumo o conhecimento dos seus sentimentos e das suas ideias.

[...]

Dados os motivos que o levaram a sucumbir às obrigações do seu ofício [...] Meslier volta-se para a natureza humana e relata a sua experiência de convivência com os homens. 

No seu entender, a paz, a bondade, a equidade, a verdade e a justiça, ou seja, os valores humanistas tradicionais, seriam as características mais amáveis e desejáveis do universo humano, "fontes inestimáveis de bens e de felicidade".

Em contrapartida, a mentira, a injustiça, a impostura e a tirania seriam o que pode haver de mais odioso, de mais detestável e pernicioso no coração dos homens, causas estas de divisões, de depravações e gênese de todos os vícios, de todas as maldades, misérias e infortúnios que sempre afligiram a humanidade.

Meslier constata que é esse lado detestável e pernicioso do ser humano, infelizmente, que sempre tem preponderado nas relações sociais. 

Quanto mais velhos ficamos, quanto mais experiência e conhecimento acumulamos, argumenta o padre, mais nitidamente percebemos a cegueira e a maldade dos homens, os malefícios do obscurantismo e das superstições e as injustiças dos governos inescrupulosos. 

Verificamos cotidianamente, de forma inequívoca, uma infinidade de pessoas inocentes e desditosas perseguidas sem razão e oprimidas injustamente, sem ninguém para protegê-las. 

Meslier acusa os "maus ricos" e os "grandes da terra" por essa tirania e por tal abandono. 

O tom do texto passa então da indignação para o desalento, em última instância, da indignação para um certo pessimismo antropológico: "As lágrimas de tantos justos aflitos e as misérias de tantos povos tão tiranicamente oprimidos pelos maus ricos e pelos grandes da terra deram tanto a mim quanto a Salomão, tanto desgosto e tanto desprezo pela vida, que eu estimava como ele a condição dos mortos muito mais feliz do que a dos vivos [..].

Para piorar ainda mais essa atmosfera humana sombria, aqueles que se passam por sábios e piedosos, os quais, no seu entender, teriam o dever de censurar e de se manifestar contra esses abusos, mostram-se indiferentes, postura esta que na prática contribui decisivamente para a manutenção e para o fortalecimento da ordem de iniquidades e de miséria. 

Mas qual será a razão de tanta indiferença, de tanta omissão e cumplicidade por parte dos sábios e dos pretensos piedosos? Por que tais homens aprovariam uma ordem tão odiosa e desumana?

Perscrutando detidamente a conduta dos seres humanos e os "mistérios secretos da fina e astuciosa política" Meslier concluiu que muitos são os homens que ambicionam cargos de poder e de prestígio para se sentirem honrados e respeitados, que muitos são aqueles que desejam governar, que querem comandar com uma autoridade soberana e absoluta. 

Dentre eles estão os mais esclarecidos e os aclamados os mais samaritanos. 

Em outras palavras, os sábios e os "protetores caridosos" calar-se-iam diante da ordem de injustiças movidos essencialmente pelo interesse egoísta de compô-la e dela se beneficiar. 

A primeira parte da "Apresentação" da "Memória" finda-se com um vínculo estabelecido por Meslier entre a instrução e a ambição, entre o esclarecimento e a vaidade.

A maioria dos sábios seria ambiciosa e vaidosa, isto é, seria ávida por poder e por adoração, tendo como objetivo supremo a reverência servil dos humildes e a condução de um governo sem limites.

Isto faria deles santos ou até mesmo deuses.
 
A ambição como uma paixão determinante é, portanto, a constatação inicial de Meslier em relação ao comportamento social dos homens. 

Em última instância, é mediante a crítica de tal paixão que ele constrói toda a sua refutação religiosa e política.


A questão da ambição continua na segunda parte da "Apresentação", intitulada "Pensamentos e sentimentos do autor sobre as religiões do mundo". 

Nela, Meslier aprofunda a sua ponderação sobre essa paixão e os seus desdobramentos. 

No seu entender, a ambição seria a "verdadeira fonte e a verdadeira origem" de todos os males que afligiram e que continuam a afligir a humanidade, a causa fundamental das imposturas religiosas e das atitudes tirânicas dos grandes da terra. 

Ou seja, a ambição seria a raiz do ardil e da força de alguns homens esclarecidos, porém, inescrupulosos, cujas vítimas são sempre os povos ignaros, crédulos e indefesos, os quais se submetem pela fraqueza à violência e pela falta de instrução aos embustes das superstições.
Impelidos por um desejo cego de poder, esses homens astutos e desumanos tornam-se opulentos, poderosos, temidos e adorados, abusando assim da ignorância, da credulidade e da pusilanimidade dos subjugados. 

No caso específico da religião, a ambição estaria na base das piores imposturas e embustes, tais como as idolatrias, a criação de divindades, a consolidação de cerimônias absurdas, a sustentação de falsos mistérios, a invenção de leis e de condenações divinas, as promessas de paraísos, a consagração de santos, e a elaboração de teologias que procuram legitimar os poderes eclesiástico e temporal.
Sem instrução, crédulos e tementes, os povos dão assentimento a essas mentiras com facilidade e passam a ter suas fés manipuladas não apenas pelos sacerdotes, mas também pela nobreza, em particular pelos monarcas, cuja autoridade encontra um sólido respaldo em tais embustes. 

Dito de outro modo, eclesiásticos e nobres, papas e reis, tornam-se sócios na exploração da boa-fé e da submissão dos humildes. 

Utilizando o bem comum e a necessidade pública como pretextos, os reis tornam-se truculentos tiranos. 

Alegando vontade divina e prometendo a garantia de felicidade eterna numa outra vida, padres, bispos e o papa apropriam- se dos escassos bens temporais dos seus fiéis na forma de dízimos e de outras dissimuladas usurpações, recursos estes que poderiam ser melhor desfrutados em vida pelos seus sofridos possuidores. 

Nobreza e clero, política e religião, portanto, irmanar-se-iam na espoliação dos povos.

Não há céu nem inferno, não há penas nem recompensas em outra vida.  Aliás, não há outra vida além desta. Tais representações não passariam de pura invencionice.

 De acordo com Meslier, padres e bispos usariam esses expedientes para explorar o medo e a esperança popular a fim de manterem intactos os seus privilégios. 

Isto explica a adaptação das pessoas esclarecidas e pretensamente sábias à ordem do tirano. 

Outros partícipes dessa exploração e aliados do tirano seriam os oficiais, intendentes, magistrados e membros do fisco, todos eles pagos com o dinheiro dos impostos, isto é, com o dinheiro do povo, para defender a autoridade absoluta constituída. 

Tais pessoas, no fundo, desempenhariam um papel estratégico e precípuo na manutenção e no funcionamento do aparato de dominação. 

Ao defender os interesses da coroa, esses funcionários protegeriam ao mesmo tempo os seus próprios interesses. 

Trata-se de um exemplo expressivo de pessoas esclarecidas que não se opõem às arbitrariedades do regime, pois, caso o fizessem, obviamente perderiam, no mínimo, os seus cargos e, no limite, a própria vida. 

Não obstante, havia os esclarecidos como Meslier que repudiavam as iniciativas tirânicas e se sensibilizavam com o infortúnio alheio. Todavia, a discordância desses poucos se dava apenas em sentimento e em lucubrações silenciosas, afinal, enfrentar toda essa estrutura seria temerário demais.

Assim, aos mais esclarecidos que não desejavam perder a vida não restava outra escolha: adequar-se ao regime como parte direta ou indiretamente integrada dos abusos da tirania ou como um pacato e resignado servo. 

Meslier fez a sua opção.

Outro produto da ambição apontado por Meslier é a bajulação. 

Os aduladores existem aos montes e procuram obter privilégios e ascensão por meio de favores e de negociatas com os poderosos. Por isso, são sempre os primeiros a aplaudir tudo o que os tiranos realizam. Eles não se atrevem a rechaçar a injustiça porque dela se beneficiam.

Quem então poderia combater efetivamente a tirania? 

Qual seria esse personagem redentor concretamente falando? 

Os miseráveis, por carecerem de ciência e de autoridade, e por encontrarem-se iludidos com os ensinamentos, com as promessas e com as ameaças da religião, seriam fracos, logo, impotentes.
Os esclarecidos, dentre eles os membros do clero, por serem ambiciosos e por pensarem apenas nos seus próprios interesses, não se arriscariam a tal ousadia. 

Os bajuladores e os "devotos hipócritas", parasitas por natureza, menos ainda. 

Meslier percebe então uma rigorosa hierarquia, um inquebrantável encadeamento de subordinação, de dependências, invejas e perfídias entre os diferentes estamentos. De onde se segue que seriam os mais odiosos vícios o sustentáculo de toda tirania. 

E a ausência de resistência a essa lamentável realidade, argumenta Meslier, faz as superstições e os abusos dos tiranos se alastrarem e se perpetuarem no mundo.

Da ambição e de seus males a reflexão de Meslier caminha para a relação entre a religião e a política.
Na sua concepção, a religião, historicamente fonte de toda ética, deveria, por coerência, condenar as desumanidades de um governo tirânico. 

O governo, por sua vez, deveria proibir as imposturas e os embustes da religião, visto que tem como missão salvaguardar o bem dos seus súditos. 

Nesse sentido, religião e política deveriam ser instâncias "reciprocamente contrárias e opostas uma à outra". 

Entretanto, ambas convivem, entendem-se e agem na história como "dois gatunos". 

Elas se sustentam mutuamente por meio da mentira, da opressão e da manipulação do povo. 


 Os bispos e os padres intimidam os seus fiéis com a mentira do inferno e com a fábula do direito divino dos reis a obedecer cegamente aos intendentes, aos magistrados e aos tiranos (comentário : tipo Cristo dizendo “dai à Cesar o que é de Cesar, e dai à Deus o que é de Deus”). 

Os tiranos, por sua vez, além de concederem aos bispos e aos padres boas rendas, constrangem o povo a respeitá-los como santos e como representantes de Deus na Terra. 

Desse modo, a ordem política e social constituída pela aliança entre a tirania e a superstição enraíza-se.

Do ponto de vista institucional, é a Igreja Católica e o Antigo Regime que Meslier indubitavelmente tem em mente quando procura demonstrar a relação de promiscuidade e de sordidez entre a religião e a política. 

Já no âmbito propriamente teórico, o alvo principal da sua crítica é o cristianismo apostólico romano, o qual, no seu entender, impõe-se como a doutrina da pura verdade, do verdadeiro Deus e da verdadeira salvação, isto é, como uma religião infalível e superiora a todas as outras. 

Contudo, para Meslier, não somente o cristianismo oficial da Igreja, mas a religião cristã como tal, seria tão ilusória, tão supersticiosa, tão falsa, absurda, mendaz e ridícula quanto às demais religiões que a humanidade pôde criar em outras épocas e lugares.

Tal similaridade seria nítida, justifica Meslier, nos seus rituais.  A idolatria existente na religião cristã, por exemplo, não diferiria essencialmente em nada da idolatria pagã.

No fundo, as ideias de milagre, mistério, vida eterna, entre outras, seriam meras ilusões, mentiras e erros grosseiros, fábulas e imposturas com fins estrategicamente políticos. 

A história é testemunha do modo sórdido como os governantes utilizam a religião para satisfazer seu insaciável desejo de poder, como eles abusam impunemente da autoridade de um deus imaginário e das doutrinas teológicas que os representam como enviados divinos para serem temidos e servilmente obedecidos na Terra. 

As causas das injustiças, por exemplo, o clero e o tirano encobrem com o dogma do mistério ou as justificam com o mito do pecado original. Com isso, isentam-se da responsabilidade dos seus atos. 

E quando Meslier fala em povo pobre e injustiçado, ele se refere obviamente a todos os oprimidos e explorados do mundo, a todos aqueles desamparados pelos santos e por Deus que funcionam como "minas de ouro" para reis e padres, e não só aos camponeses da França ou da sua paróquia.

Não só o medo e a resignação caracterizariam a alma popular sob a tirania. 

Meslier demonstra que, apesar do obscurantismo, a consciência dos abusos praticados pelos tiranos e, por conseguinte, a indignação e o desejo de justiça, também pulsavam tácitos no coração e nas mentes de alguns homens do povo de sensibilidade e de inteligência naturalmente mais apuradas. 

 Ele cita o caso de um homem simples e sem estudo, porém incrivelmente cônscio do funcionamento da sociedade em que vivia, que certa feita disse com toda a sinceridade e singeleza que se pode esperar de um camponês embrutecido pela opressão que "desejava que todos os grandes da terra e que todos os nobres fossem enforcados e estrangulados com as tripas dos padres".

Essa passagem, como já tivemos a oportunidade de destacar e de tecer comentários a seu respeito, (comentário : anteriormente o autor discorre amplamente sobre esta frase, com suas alterações, adaptações e falsas atribuições de autoria) tornou- se a mais célebre de toda a sua obra. 

E com razão. 

A metáfora que o desabafo do camponês lança sugere que nos regimes fomentados ideologicamente pela teoria do direito divino dos reis haveria um elo visceral - e visceral aqui na acepção mais orgânica e fisiológica da palavra, convém enfatizar - entre o poder temporal e o poder espiritual.

O padre admite que o desejo manifesto pela frase é rude, grosseiro e afrontoso, porém, enaltece-o com indisfarçável entusiasmo. 

Segundo ele, este homem simples do povo expressou com imagens precisas o que os tiranos e o clero realmente mereceriam como condenação. 


E estimulado pelo desejo, pela aspiração desse homem sofrido e a seu modo consciente, Meslier revela: "eu desejaria ter o braço, a força, a coragem e a massa de Hércules para purgar o mundo de todos os vícios e de todas as iniquidades, e para ter o prazer de derrear todos esses monstros tiranos de cabeças coroadas, e todos os outros monstros, ministros de erros e de iniquidades que fazem gemer tão impiedosamente todos os povos da terra".

Contudo, embora Meslier denote concordância com o tiranicídio e com o extermínio de eclesiásticos inescrupulosos, ele ressalta que é o amor pela justiça e pela verdade e não o ressentimento e a sede de vingança que o faz simpatizar-se com a metáfora das tripas e cobiçar a força desse mito pagão, o que nos reporta ao pensamento revoltado de Albert Camus. 

Recordando, em O homem revoltado, Camus distingue o sentimento da revolta do sentimento de vingança. 

(** anteriormente o autor diferencia o que seria um ateu “revoltado que se revolta” e um ateu “revoltado que quer vingança”, último seria o ressentido

Na revolta, o revoltado, cujo valor maior é a solidariedade, recusa terminantemente a injustiça e a humilhação, sem exigir, por outro lado, que o injusto e o opressor provem da desumanidade que praticaram. 

Quanto a um dos antípodas do revoltado, a saber, o ressentido, seu desejo é que a injustiça e a humilhação da qual foi ou é vítima recaia maximizada sobre o seu verdugo. 

Nesse sentido, podemos dizer que Meslier é um revoltado e não um ressentido, pois, a despeito de exprimir em vários momentos um sentimento regicida e anticlerical, propugna o fim das injustiças e da opressão, e não a inversão dos seus alvos. 

Exemplo de autoria errada encontrada na Internet
Meslier retoma na "Apresentação" a problemática do parasitismo social 

Além dos poderosos e dos funcionários e aduladores destes, outra espécie de parasita destacada pelo padre ateu é a dos charlatães, aqueles indivíduos que exploram a ignorância e a simplicidade do povo, por exemplo, persuadindo pessoas enfermas e ingênuas a comprar falsos remédios e medicamentos milagrosos. 

Esses "infames enganadores", julga Meslier, devem ser caçados e banidos, como devem ser todos os ladrões, assassinos, e aqueles que dominam o corpo e a consciência dos desvalidos. Mais: eles devem ser odiados pelo povo.

No entanto, os "maiores enganadores do povo" são mesmo, no seu entender, os sacerdotes. 

Ao sustentar isso, Meslier não se exclui da própria sentença, atingindo assim a sua própria incumbência e, o mais dolorido, a sua própria pessoa. 

Como vimos, ele tem consciência e amarga a sua condição contraditória. 

Todavia, ele denuncia, mesmo que para a posteridade, as mazelas da sua profissão. 

Meslier não esconde em nenhum momento que ele exerceu o seu papel de sacerdote dentro de uma certa regularidade, que difundiu os ensinamentos da Igreja, que recebia o dízimo, e que, mesmo contra a vontade, aterrorizou e iludiu os seus fiéis com a mitologia dos evangelhos. 

Contudo, ressalta que nunca fora supersticioso, beato ou fanático, e que entrou para a carreira eclesiástica para satisfazer a vontade dos seus pais e para ter uma vida materialmente mais segura, tranquila e digna numa época de muitas privações.

Mesmo tendo a subsistência garantida e outras vantagens concedidas ao clero, ele confessa nunca ter amado o seu ofício, que sentia por este uma profunda ojeriza. 

As cerimônias e os rituais religiosos, por exemplo, enfastiavam-no profundamente por suas futilidades e absurdos. 
 
 Com a consciência torturada, ele se lamenta e pede desculpas aos seus paroquianos por tê-los enganado. E insiste que assim agiu contrariando os seus mais francos princípios, ao contrário do que faziam os demais sacerdotes, os quais se divertiam e lucravam sem nenhum remorso com a boa-fé dos seus fiéis. 

Papas como Júlio III, Leão X e Bonifácio VIII são citados por ele como exemplos de religiosos que zombavam da credulidade popular, e que, entre os íntimos, repetiam que tinham se enriquecido graças à fábula de Jesus Cristo.

Tanta hipocrisia e tanta exploração ao mesmo tempo entristecia e indignava Meslier. 

Como era o povo que proporcionava o seu sustento, como era do trabalho dos seus paroquianos que saíam os seus privilégios de sinecura, o clero deveria ter mais consideração por eles, enfim, ser mais solidário à miséria do seu rebanho. 

Numa explícita crise de consciência moral, Meslier esforça-se para se diferenciar dos seus colegas de batina declarando que sempre fora sensível à aflição do seu povo, que nunca o explorou, e que, ao contrário, sempre lhe deu muito mais do que dele recebeu. 

Nesse ponto, curiosamente, o padre ateu assinala ter seguido com rigor a recomendação de Cristo para que tivéssemos mais consideração pelos pobres do que pelos ricos. 

Mais uma vez Meslier reitera que não foi um beato ou um fanático, que cumpriu as tarefas do seu ofício com muito dissabor, repete a cantilena que foi coagido pelo medo das represálias a difundir os erros, os disparates e as futilidades da religião. 

Num tom de mea-culpa, admite e pede desculpas à posteridade por ter abusado da boa-fé dos seus fiéis. 

Sua repugnância pelo que era forçado a fazer era tanta que quase o levou a revelar, numa de suas missas, a sua indignação com as injustiças e a sua insatisfação com a sua ocupação. 

Entretanto, para não se expor à fúria do clero e à crueldade dos tiranos, escolheu para si a alternativa não menos martirizante, ou seja, o silêncio, o qual foi mantido até o último dia de sua vida.

A despeito do silêncio sob o qual foi obrigado a pensar e escrever, Meslier não economizou palavras em suas denúncias e diatribes póstumas. 

Uma das primeiras diz respeito ao papel histórico da religião e do poder político. 

Meslier argumenta que desde os primórdios da civilização os pobres e humildes sempre foram engabelados e manipulados pela superstições religiosas, além de oprimidos e explorados pelos ricos e poderosos. 

Paulo Jonas de Lima Piva
 Em outras palavras, Meslier entende historicamente a religião como uma "rédea", como um expediente dos poderosos para domar as massas pelo medo e pela esperança, e, por conseguinte, para fortalecer a preservação dos seus privilégios. 

Em contrapartida, a vontade e o objetivo principal de Meslier era desiludir o povo, fazê-lo ver, mediante a razão, a "verdade das coisas".

Tal compromisso, segundo o padre, todos os homens esclarecidos e de bem deveriam assumir. 

Revelando as causas e as estruturas das injustiças, o ódio pela tirania poderia ser despertado no coração dos injustiçados, condição necessária para que um dia os alicerces da ordem pudessem ser destruídos e a justiça enfim realizada. 

Os mais instruídos deveriam convencer os povos de "duas importantes e fundamentais verdades":
1) para aperfeiçoar-se nas ciências e nas artes os homens deveriam seguir unicamente "as luzes da razão humana"; 2) as boas leis devem ser engendradas e fundamentadas na prudência, na probidade, na "eqüidade natural", enfim, também na razão.

[...]

Entretanto, como vimos, poucos foram os que se dispuseram a esclarecer os desvalidos. Os livros voltados para esse fim não eram publicados ou, quando o eram, a censura e a perseguição os aniquilavam.

Meslier já previa o escândalo que a sua obra ocasionaria nos meios clericais quando fosse descoberta após a sua morte. 

Ao que parece, escandalizar era mesmo a sua intenção. 

Do mesmo modo eram previstos por ele os ataques e as difamações que surgiriam não só dirigidas à sua obra, mas sobretudo à sua reputação. 

Ele sabia que seria chamado "de ímpio, de apóstata, de blasfemador e de ateu". 

Mas o padre parece não se importar com os seus detratores tampouco com o que farão com o seu cadáver, como podemos ler no término da "Apresentação" da "Memória": "façam então com o meu corpo tudo o que eles quiserem; que eles o dilacerem, que eles o cortem em pedaços, que eles o assem ou que eles o misturem com legumes, e que eles o comam se quiserem [..]".

A única preocupação séria de Meslier parece ser com a integridade dos seus familiares e amigos, os quais poderiam ser vítimas de perseguição ou sofrer alguma retaliação por parte dos religiosos. 

Mesmo assim ele deixou como que de presente aos homens de bem e de espírito o seu testamento filosófico e político, pois acreditava que a verdade, a justiça, a liberdade e o bem público deveriam se realizar no porvir em todas as partes onde o obscurantismo e a opressão imperassem. 

[...]

Na terceira e última parte da "Apresentação", as religiões são definidas por Meslier como erros, ilusões, abusos e imposturas.

Tanto os deuses pagãos quanto o deus com "d" maiúsculo do cristianismo, juntamente com todos os seus rituais, cultos, explicações, leis e ordenações seriam, no seu entender, "invenções humanas" com finalidades puramente políticas.

E aqui vale mencionar que Meslier emprega propositadamente letra minúscula para aludir-se ao deus cristão e maiúscula para se referir ao deus pagão.

Seja como for, tais divindades são interpretadas pelo padre como falsidades, artifícios oriundos de raciocínios tolos que são apropriados pelos tiranos para dominar e espoliar mais facilmente os povos.
Meslier vai mais além e assevera que a religião cristã seria ainda mais falsa e vã do que as demais, visto que seria constituída de rituais ridículos, de crueldades, de princípios absurdos, bem como de preceitos contrários à natureza e à razão. 

Em suma: seria uma religião repleta de mentiras, como a ameaça do inferno e a promessa do paraíso.
Após a morte, contesta Meslier, não há nada para esperar, nenhum bem ou mal. Céu e inferno não passariam de fábulas, invencionices de supersticiosos, fantasmagorias de fanáticos. 

Somente uma vida seria concebível, ou seja, esta vida, em sua finitude, efemeridade e precariedade.
Diante disso, ele recomenda que a apreciemos ao máximo, aproveitando com sabedoria os bens que os dias e a natureza nos proporcionam, como, por exemplo, desfrutar com comedimento e de modo fraterno os resultados do nosso trabalho. 

Mas adverte: gozar a vida não significa entregar-se à libertinagem.

A morte, por seu turno, é interpretada da maneira mais natural, simples e empírica possível. 

Aos seus olhos, a morte é concebida em sua obviedade imediata, isto é, como o fim da vida, em outros termos, como o término irreversível da consciência, do conhecimento, das paixões, das necessidades, dos sentimentos morais, enfim, do funcionamento do corpo. 

A "Apresentação" finda-se com uma conclamação de Meslier para que as reflexões desenvolvidas na "Memória" não sejam entendidas de forma dogmática ou passivamente aceitas pelo seu leitor, mas que este utilize judiciosamente a sua razão para obter as suas próprias conclusões e, assim, conhecer a verdade, a qual, para ele, jamais poderá ser desvelada pela fé tampouco por uma fabulosa revelação. 

Em última análise, a "Apresentação" exerce um papel estratégico e fundamental na "Memória" na medida em que anuncia e sintetiza os tópicos a serem desenvolvidos nas oito provas que se seguem.

"PRIMEIRA PROVA"

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 Links : 

Para saber mais sobre Jean Meslier :




4. Artigo "O estranho testamento de um vigário de província -  as memórias de Jean Meslier" de Maria das Graças de Souza : http://www.scielo.br/pdf/trans/v8/v8a07.pdf


6. "O último rei e o último padre". Texto de Giba Assis Brasil sobre a célebre frase falsamente atribuída a Diderot. No texto, Giba afirma que a frase é na verdade de Meslier, o que é errado segundo Piva.

Wednesday, June 20, 2018

Filme - Safári


 

Alguém que não come absolutamente nenhum tipo de carne ir ao cinema para assistir um documentário sobre o prazer de matar animais em safáris na África parece sem sentido.

Porém, no meu caso, encarei como um desafio pois acredito que pior é a hipocrisia dos homens “de bem” que se recusam a ver este tipo de filme (“não tenho coragem”) mas comem carne normalmente todos os dias.

Decidido a me incomodar, encarei uma sessão na qual, além de mim, havia apenas mais duas pessoas.

O cinema era uma desolação só e o filme confirmou o horror.

Em “Safári”, o diretor Ulrich Seidl coloca a câmera para acompanhar alguns turistas hospedados num hotel na Namíbia e dispostos a torrar uma boa grana para matar animais “selvagens”.

Para eles é oferecido uma espécie de “cardápio” no qual constam os preços pela morte de cada espécie (os valores variam dependendo da raridade e da dificuldade de encontrar cada uma).

Para facilitar as incursões, eles são acompanhados de nativos encarregados de “benefícios”, tipo rastrear os animais, recolher cartuchos e estripar os cadáveres, reservando os troféus – cabeças, couro e a melhor carne – para os pagantes.

Um pacote completo.

No documentário, além de relaxarem em aprazíveis banhos de sol entre uma morte e outra, os europeus ocupam a tela para dissertar, de modo bem íntimo e familiar, sobre as técnicas, estratégias, filosofia e emoção da caça.

Ao ouvi-los falar fica evidente que, além de serem experts em armas, calibres e projéteis, para eles o fenômeno de tensão e alívio gerados na morte de um animal é praticamente o mesmo de um orgasmo.

E isto fica evidente nas cenas dos abates.

Realmente eles se transformam e só começam a voltar ao normal quando já podem acariciar o corpo ainda quente do bicho morto. 

Neste momento eles se abraçam, se elogiam, se congratulam e tiram fotos (são a cara da felicidade).

Já em relação aos africanos, para eles os nativos são pessoas elogiáveis (solícitas / honestas) e “necessitadas”. E eles, como bons ricos e civilizados, estão ali para trazer dinheiro e, se possível, oferecer um pouco de educação - um casal reclama que os políticos da Namíbia são ossos duros de roer e que, por isto, perdem a oportunidade de “aprenderem” através do contato com os europeus-.

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Os africanos, mesmo sendo os legítimos “donos” do local, são a parte muda do filme.

Eles são mostrados em condições miseráveis, executando o trabalho sujo e devorando os restos -as piores partes - das carnes abatidas. Tudo em sequências estáticas.

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E os animais?

Em nenhum momento suas vidas, necessidades e direitos são levadas em consideração. São apenas alvos de admiração, cobiça e fonte de prazer através da morte.

A cena da caça de uma girafa é particularmente devastadora.

O animal é baleado e não morre imediatamente. Os caçadores, então, ficam ao redor aguardando sua morte, isto enquanto as girafas companheiras do animal agonizante observam tudo de longe (chorei nesta cena).

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Sim, o filme é chocante.

Mas enquanto eu assistia me perguntava : “Qual a diferença entre ter prazer em matar animais num Safári na África e uma pesca – esportiva ou não – em qualquer parte do mundo?”. 
Para mim, nenhuma.

A intenção é absolutamente a mesma : prazer, passatempo, alegria, confraternização.

Ah, e é claro : matar animais.









Tuesday, June 12, 2018

Qual sofrimento é mais importante : o sofrimento humano ou o sofrimento dos animais?



Excerto tirado do livro "Em defesa dos animais - direitos da vida", de Matthieu Ricard

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“Há problemas mais graves que afetam a humanidade”
                                                                                                                                                                            
Uma das queixas que ouço com maior frequência é que seria indecente voltar a atenção para os animais e querer melhorar a situação deles, enquanto há seres humanos afligidos por tanto sofrimento na Síria, no Iraque, no Sudão e em muitos outros lugares.

O simples fato de ter consideração pelos animais seria um insulto à humanidade.

Dito de modo firme, com um tom de indignação que parece basear-se nas mais altas virtudes, esse argumento pode parecer totalmente acertado, mas após um ligeiro exame mostra-se desprovido de lógica.
                                                                                                                                                                                                   
Se o fato de dedicarmos alguns pensamentos, palavras e ações para reduzir o sofrimento indizível que infligimos de forma deliberada aos outros seres sensíveis, que são os animais, constitui uma ofensa ao sofrimento humano, o que então se diria de passar o tempo ouvindo música, praticando esportes e se bronzeando numa praia?
                                                                                                                                                                                                  
Aqueles que se dedicam a essas atividades e a outras tantas similares iriam então se tornar indivíduos abomináveis por não consagrarem seu tempo integral para resolver o problema da fome na Somália?

Como bem aponta Luc Ferry:  

"Eu gostaria que alguém me explicasse em que o fato de torturar animais ajudaria os seres humanos. O destino dos cristãos iraquianos é melhorado porque temos cães vivos aos milhares sendo cortados na China e deixados famintos durante muitas horas, sob a teoria de que, quão mais insuportável for a dor, melhor ficará a carne? É porque maltratamos aqui os cães que nos tornamos mais sensíveis à infelicidade dos curdos? [...] Todos nós podemos cuidar da família, de nós mesmos, do trabalho, e ainda assim se envolver mais em política ou na vida da comunidade, sem, todavia, massacrar os animais".


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Se alguém consagrasse 100% de seu tempo a um trabalho humanitário, só se poderia encorajá-lo a continuar. Podemos também certamente pressupor que uma pessoa dotada de tal altruísmo seria da mesma maneira benevolente com os animais.

A benevolência não é uma mercadoria que só se possa distribuir com parcimônia, como um bolo de chocolate.

É um modo de ser, uma postura, a intenção de fazer o bem para todos que entram em nosso campo de atenção e de sanar seu sofrimento.

Ao também amar os animais, não amamos menos os seres humanos; na verdade pas­samos a amá-los mais ainda, porque a benevolência cresce em magnitude e qualida­de.

Aquele que ama apenas uma pequena parcela dos seres sensíveis, ou até mesmo da humanidade, demonstra uma benevolência tendenciosa e estreita.

Como observa Élisabeth de Fontenay, Plutarco dizia, no início da era cristã, que "a gentileza com os animais habitua a pessoa, de forma 'incrível', a se tornar bene­volente com os seres humanos, porque a pessoa gentil, que se comporta com ternura frente às criaturas não humanas, não saberia tratar os homens de modo injusto".

É interessante ressaltar que um estudo realizado por neurocientistas com escaneamento de cérebros de onívoros, de vegetarianos e de veganos, enquanto observavam imagens de sofrimento humano e animal, demonstrou que entre os vegetarianos e veganos as áreas do cérebro associadas à empatia ficavam mais ativadas do que em onívoros, não só para imagens de sofrimento animal, mas também perante imagens de sofrimento humano.

Outras pesquisas utilizando questionários já haviam destacado essa correlação e indicado que quanto mais as pessoas se preocupam com os animais, mais elas se preocupam com os seres humanos

Para aqueles que não trabalham dia e noite para aliviar as misérias humanas, que mal haveria em aliviar o sofrimento dos animais em vez de jogar cartas?

Decretar imoral o interesse pela situação dos animais, enquanto milhões de seres humanos morrem de fome, não passa de uma falácia e, muitas vezes, trata-se apenas de fuga por parte de pessoas que, com grande frequência, não fazem nada de significativo, nem pelos animais, nem pelos seres humanos.

Em resposta a alguém que ironizava a utilidade última de suas ações de caridade, Irmã Emmanuelle respondeu: "E o senhor, o que faz pela humanidade?".

No meu humilde caso (Nota minha, Iuri, dono deste blog : aqui, o autor do livro, Matthieu Ricard, fala das suas ações sociais, além da militância pela causa animal) , as falsas acusações de impropriedade também são incongruentes, pois a organização humanitária que fundei, Karuna-Shechen, trata de 120 mil pacientes por ano, e 25 mil crianças estudam nas escolas que construímos.

Trabalhar com esforço para poupar o imenso sofrimento dos animais não diminui nem um pouco a minha determinação de superar a miséria humana.

O sofrimento desnecessário deve ser perseguido onde quer que seja, seja ele qual for.

A luta deve ser travada em todas as frentes, e assim pode ser feito.

Pressupomos que o bem da humanidade seria, por natureza, concorrente do bem dos animais. No entanto, incluir em nossas preocupações o destino de outras espécies não é, de nenhuma forma, incompatível com a determinação de fazer o possível para resolver os problemas humanos.

A luta contra o tratamento cruel dos animais segue a mesma abordagem que a luta contra a tortura de seres humanos.

A filósofa Florence Burgat e o jurista Jean-Pierre Marguénaud explicaram num artigo publicado no jornal Le Monde:

Àqueles que acham que os avanços legislativos no domínio da proteção dos animais, e até mesmo a ideia de reconhecer os seus direitos, seriam um insulto à miséria humana, é necessário responder que essa miséria resulta da exploração dos mais fracos ou da indiferença com o sofrimento dos mais fracos. Ao contrário, constitui um insulto à miséria humana, ou mesmo sua legitimidade, a indiferença feroz frente ao sofrimento de outros seres ainda mais fracos e que jamais poderiam dar seu con­sentimento. [...] A proteção dos animais e a proteção dos seres humanos mais fracos fazem parte do mesmo nobre combate do Direito para ajudar aqueles que podem ser objeto de ataques
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Existem mil maneiras de evitar que os animais sejam prejudicados e de garantir sua proteção, sem causar nenhum dano à espécie humana, sem diminuir um minuto o tempo de dedicação à família e sem utilizar a menor parte dos recursos destinados aos que estejam em situação precária.
 Jean-Luc Daub, que conduziu investigações nos abatedouros de animais, durante vários anos, escreveu:
Ainda ouvimos coisas como: "E o que você faz pelas crianças... pelos deficientes... pelos prisioneiros de Guantánamo... etc. etc.?" Como se o fato de nos dedicarmos à proteção dos animais nos tornasse responsáveis pelos demais sofrimentos humanos, ou pelo menos deveria nos fazer sentir culpados. E isso enquanto a maioria das pes­soas que assim pensam não conseguem realizar nada de significativo na vida. [...] No que diz respeito à minha profissão, sou educador técnico especializado. Faço o acompanhamento diário, no meu trabalho, de pessoas com deficiência intelectual e me ocupo de suas vidas. De toda forma, aqui eu estou tentando me justificar, ainda que não fosse necessário fazê-lo, pois qualquer pessoa suficientemente inteligente jamais faria perguntas tão baixas e ignorantes!

A má-fé dos que responsabilizam os defensores dos animais por dedicar tempo para se preocupar com os problemas humanos parece ainda mais absurdo quando constatamos que não pensariam em fazer esse mesmo comentário contra os que se ocupam com pintura, esportes, jardinagem ou coleção de selos.

Reduzir a exploração dos animais pode até trazer benefícios mútuos significati­vos, como explica Peter Singer sobre o vegetarianismo:

"Não é preciso mais tempo para ser vegetariano do que para comer carne animal. 
Na verdade, os que dizem se preocupar com o bem-estar dos seres humanos e com a preservação do nosso meio ambiente deveriam, ainda que por essa única razão, tornar-se vegetarianos. Ao fazer isso, eles aumentariam a quantidade de cereais disponíveis para alimentar as pessoas em outros lugares, reduziriam a poluição, economizariam água e energia, e deixariam de contribuir para o desmatamento. 
Além disso, como a dieta vegetariana é menos cara do que uma dieta baseada em carne, eles teriam mais dinheiro para gas­tar em alívio da fome, controle de natalidade ou qualquer outra causa social ou políti­ca que considerassem mais urgente".

Pessoalmente, dedico meus recursos e grande parte do meu tempo para atividades humanitárias através da Karuna-Shechen, uma associação composta de um grupo de voluntários dedicados e generosos benfeitores, que constrói e administra escolas, clínicas, hospitais no Tibete, Nepal e índia, e que já concluiu mais de 140 projetos.

Isso não me impede, de nenhuma forma, de me esforçar ao máximo pela causa de defesa dos animais.

Ainda que possamos reconhecer que existam coisas mais importantes a fazer do que cuidar dos animais, conclui Thomas Lepeltier, "podemos, ao menos, esperar que aqueles que assim argumentam cessem ou façam cessar o massacre dos animais".

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