Excerto tirado do livro "Em defesa dos animais - direitos da vida", de Matthieu Ricard
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“Há problemas mais graves que afetam a humanidade”
Uma
das queixas que ouço com maior frequência é que seria indecente voltar a
atenção para os animais e querer melhorar a situação deles, enquanto há seres humanos
afligidos por tanto sofrimento na Síria, no Iraque, no Sudão e em muitos outros
lugares.
O
simples fato de ter consideração pelos animais seria um insulto à humanidade.
Dito
de modo firme, com um tom de indignação que parece basear-se nas mais altas
virtudes, esse argumento pode parecer totalmente acertado, mas após um ligeiro
exame mostra-se desprovido de lógica.
Se
o fato de dedicarmos alguns pensamentos, palavras e ações para reduzir o sofrimento
indizível que infligimos de forma deliberada aos outros seres sensíveis, que
são os animais, constitui uma ofensa ao sofrimento humano, o que então se diria
de passar o tempo ouvindo música, praticando esportes e se bronzeando numa
praia?
Aqueles
que se dedicam a essas atividades e a outras tantas similares iriam então se tornar
indivíduos abomináveis por não consagrarem seu tempo integral para resolver o
problema da fome na Somália?
Como
bem aponta Luc Ferry:
"Eu
gostaria que alguém me explicasse em que o fato de torturar animais ajudaria os
seres humanos. O destino dos cristãos iraquianos é melhorado porque temos cães
vivos aos milhares sendo cortados na China e deixados famintos durante muitas
horas, sob a teoria de que, quão mais insuportável for a dor, melhor ficará a
carne? É porque maltratamos aqui os cães que nos tornamos mais sensíveis à
infelicidade dos curdos? [...] Todos nós podemos cuidar da família, de nós
mesmos, do trabalho, e ainda assim se envolver mais em política ou na vida da
comunidade, sem, todavia, massacrar os animais".
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Se
alguém consagrasse 100% de seu tempo a um trabalho humanitário, só se poderia
encorajá-lo a continuar. Podemos
também certamente pressupor que uma pessoa dotada de tal altruísmo seria da
mesma maneira benevolente com os animais.
A
benevolência não é uma mercadoria que só se possa distribuir com parcimônia,
como um bolo de chocolate.
É
um modo de ser, uma postura, a intenção de fazer o bem para todos que entram em
nosso campo de atenção e de sanar seu sofrimento.
Ao também
amar os animais, não amamos menos os seres humanos; na verdade passamos a
amá-los
mais ainda, porque a benevolência cresce em magnitude e qualidade.
Aquele
que ama apenas uma pequena parcela dos seres sensíveis, ou até mesmo da
humanidade, demonstra uma benevolência tendenciosa e estreita.
Como
observa Élisabeth de Fontenay, Plutarco dizia, no início da era cristã, que
"a gentileza com os animais habitua a pessoa, de forma 'incrível', a se
tornar benevolente com os seres humanos, porque a pessoa gentil, que se
comporta com ternura frente às criaturas não humanas, não saberia tratar os
homens de modo injusto".
É
interessante ressaltar que um estudo realizado por neurocientistas com escaneamento
de cérebros de onívoros, de vegetarianos e de veganos, enquanto observavam
imagens de sofrimento humano e animal, demonstrou que entre os vegetarianos e
veganos as áreas do cérebro associadas à empatia ficavam mais ativadas do que
em onívoros, não só para imagens de sofrimento animal, mas também perante
imagens de sofrimento humano.
Outras
pesquisas utilizando questionários já haviam destacado essa correlação e
indicado que quanto mais as pessoas se preocupam com os animais, mais elas se
preocupam com os seres humanos
Para
aqueles que não trabalham dia e noite para aliviar as misérias humanas, que mal
haveria em aliviar o sofrimento dos animais em vez de jogar cartas?
Decretar
imoral o interesse pela situação dos animais, enquanto milhões de seres humanos
morrem de fome, não passa de uma falácia e, muitas vezes, trata-se apenas de
fuga por parte de pessoas que, com grande frequência, não fazem nada de
significativo, nem pelos animais, nem pelos seres humanos.
Em
resposta a alguém que ironizava a utilidade última de suas ações de caridade,
Irmã Emmanuelle respondeu: "E o senhor, o que faz pela humanidade?".
No
meu humilde caso (Nota minha, Iuri, dono deste blog : aqui, o autor do livro, Matthieu Ricard, fala
das suas ações sociais, além da militância pela causa animal) , as falsas
acusações de impropriedade também são incongruentes, pois a organização humanitária
que fundei, Karuna-Shechen, trata de 120 mil pacientes por ano, e 25 mil
crianças estudam nas escolas que construímos.
Trabalhar
com esforço para poupar o imenso sofrimento dos animais não diminui nem um
pouco a minha determinação de superar a miséria humana.
O
sofrimento desnecessário deve ser perseguido onde quer que seja, seja ele qual
for.
A
luta deve ser travada em todas as frentes, e assim pode ser feito.
Pressupomos
que o bem da humanidade seria, por natureza, concorrente do bem dos animais. No
entanto, incluir em nossas preocupações o destino de outras espécies não é, de
nenhuma forma, incompatível com a determinação de fazer o possível para
resolver os problemas humanos.
A
luta contra o tratamento cruel dos animais segue a mesma abordagem que a luta
contra a tortura de seres humanos.
A
filósofa Florence Burgat e o jurista Jean-Pierre Marguénaud explicaram num
artigo publicado no jornal Le Monde:
Àqueles que acham que os avanços legislativos no domínio da
proteção dos animais, e até mesmo a ideia de reconhecer os seus direitos,
seriam um insulto à miséria humana, é necessário responder que essa miséria
resulta da exploração dos mais fracos ou da indiferença com o sofrimento dos
mais fracos. Ao contrário, constitui um insulto à miséria humana, ou mesmo sua
legitimidade, a indiferença feroz frente ao sofrimento de outros seres ainda
mais fracos e que jamais poderiam dar seu consentimento. [...] A proteção dos
animais e a proteção dos seres humanos mais fracos fazem parte do mesmo nobre
combate do Direito para ajudar aqueles que podem ser objeto de ataques
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Existem mil maneiras de evitar que os animais sejam prejudicados e
de garantir sua proteção, sem causar nenhum dano à espécie humana, sem diminuir
um minuto o tempo de dedicação à família e sem utilizar a menor parte dos
recursos destinados aos que estejam em situação precária.
Jean-Luc Daub, que conduziu investigações nos abatedouros de
animais, durante vários anos, escreveu:
Ainda ouvimos coisas como: "E o que você faz pelas
crianças... pelos deficientes... pelos prisioneiros de Guantánamo... etc.
etc.?" Como se o fato de nos dedicarmos à proteção dos animais nos
tornasse responsáveis pelos demais sofrimentos humanos, ou pelo menos deveria
nos fazer sentir culpados. E isso enquanto a maioria das pessoas que assim
pensam não conseguem realizar nada de significativo na vida. [...] No que diz
respeito à minha profissão, sou educador técnico especializado. Faço o
acompanhamento diário, no meu trabalho, de pessoas com deficiência intelectual
e me ocupo de suas vidas. De toda forma, aqui eu estou tentando me justificar,
ainda que não fosse necessário fazê-lo, pois qualquer pessoa suficientemente
inteligente jamais faria perguntas tão baixas e ignorantes!
A
má-fé dos que responsabilizam os defensores dos animais por dedicar tempo para
se preocupar com os problemas humanos parece ainda mais absurdo quando
constatamos que não pensariam em fazer esse mesmo comentário contra os que se
ocupam com pintura, esportes, jardinagem ou coleção de selos.
"Não
é preciso mais tempo para ser vegetariano do que para comer carne animal.
Na
verdade, os que dizem se preocupar com o bem-estar dos seres humanos e com a
preservação do nosso meio ambiente deveriam, ainda que por essa única razão,
tornar-se vegetarianos. Ao fazer isso, eles aumentariam a quantidade de cereais
disponíveis para alimentar as pessoas em outros lugares, reduziriam a poluição,
economizariam água e energia, e deixariam de contribuir para o desmatamento.
Além disso, como a dieta vegetariana é menos cara do que uma dieta baseada em
carne, eles teriam mais dinheiro para gastar em alívio da fome, controle de
natalidade ou qualquer outra causa social ou política que considerassem mais
urgente".
Pessoalmente,
dedico meus recursos e grande parte do meu tempo para atividades humanitárias
através da Karuna-Shechen, uma associação composta de um grupo de voluntários
dedicados e generosos benfeitores, que constrói e administra escolas, clínicas,
hospitais no Tibete, Nepal e índia, e que já concluiu mais de 140 projetos.
Isso
não me impede, de nenhuma forma, de me esforçar ao máximo pela causa de defesa
dos animais.
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1 comment:
Toda dor machuca, toda morte mata, não importa em quem. Colocar-se no lugar de quem sofre, chama-se empatia, tentar aliviá-la ou saná-la não deveria ser colocado em graus diferentes de importância, a dor humana e a dor animal, porque ambas DOEM. Não se trata de uma escolha, quem morre ou vive, quem é salvo e quem não é, porque o ser humano BOM será sempre o primeiro a chegar de onde parte um gemido ou pedido de socorro, irrelevante se o ferido é um animal ou um ser humano. Tudo o que for diferente dessa norma de conduta, chama-se ESPECISMO, valorizar uma espécie em detrimento de outra.
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