
Duas visões sobre a prática de rodeios publicadas na Zero Hora.
A questão é : uma prática que traga dor e sofrimento aos seres deve ser
respeitada (e preservada) pura e simplesmente pelo fato de fazer parte
da cultura de um povo?
Se sim, o que dizer da clitoridectomia ainda praticada em algumas regiões da África e Ásia?
Extirpar o clitóris de meninas deve ser respeitada por ser um costume ancestral de certos grupos humanos?
Pois então.
Enquanto a Maria de Nazareth diz que qualquer cultura pode (e deve)
mudar se levar em consideração o sofrimento dos seres envolvidos em
algumas de suas práticas, o Nairo Callegaro diz exatamente ao contrário.
Para ele, a cultura e a tradição está acima do sofrimento. Para ele, o importante é a “imagem”, os costumes, a ancestralidade.
O curioso é que a descrição do “tratamento humanitário" que os animais
devem receber nos rodeios, registrado pelo Presidente do MTG, se parece
muito com um roteiro passo a passo de aplicação de tortura.
Esta eu achei exemplar :
"Os animais utilizados nos eventos/provas poderão dar no máximo 20
voltas o boi e 30 a novilha, respeitando o descanso de 30 minutos entre
as voltas nos lotes de animais."
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LIBERTAR ANIMAIS , UM DEVER HUMANO
Maria de Nazareth Agra Hassen – Doutura em Educação (UFRGS)
A maior parte destes necessários processos civilizatórios ainda está em
curso: a extensão de direitos às mulheres, a proteção a crianças e a
idosos, o reconhecimento das diferentes expressões da sexualidade
humana, a inclusão de pessoas com deficiência e a compensação a vítimas
de racismo.
Porém o mais lento dos avanços na moralidade parece ser o reconhecimento dos animais como detentores de direitos.
Assim como em outros casos, apresentam- se contra esse progresso moral:
o lucro, obtusas tradições, comodismo, pouca empatia, a arrogância da
supremacia, os limites no pensamento.
Não melhoraremos como
civilização enquanto não vencermos mais essa barreira ética, isto é,
enquanto seguirmos concebendo animais como coisas, objetos, propriedade,
mercadoria.
Em toda terra, animais são desprezados e mortos,
quando não subjugados, torturados, roubados cm sua dignidade, levados
desde o nascimento a uma existência que nega sua natureza.
A
exploração dos animais não humanos pelos humanos se dá nas fazendas, na
indústria do vestuário, cm zoos, rodeios e outros tipos de diversão, nos
laboratórios e no ensino, nas casas e nas ruas.
A paralisia
moral vai ao ponto de acharmos que animais podem morrer para agradar a
nosso paladar, desconsiderando que nossa saúde independe da ingesta de
seus cadáveres ou de produtos derivados de seus corpos.
Felizmente, paralelas à tecnologia da exploração, crescem as
sensibilidades à causa animal. Seguindo, em alguns posicionamentos,
ideias já defendidas ao tempo de Pitágoras, foi nas últimas décadas que
se adensou a massa crítica em torno dos direitos animais.
O
avanço no campo da moral depende não só de sensibilidade e empatia, mas
também da capacidade de pensar nos domínios da ética, o que exige rigor
conceituai e condições de inferir logicamente, além, é claro, da coragem
de romper a norma.
Os seres vivos são classificados pelo seu
interesse em continuar a existir e pela sua capacidade de sentir dor, a
senciência, em razão da qual devem ter reconhecidos os seus direitos a
uma vida plena.
A noção de direitos animais é incompatível com qualquer uso, mesmo quando tal uso causa menos dor ou dor alguma.
A quem entende que a ausência de dor e desconforto legitima a posse e a
exploração, cabe perguntar se aceitaria ser escravo se bem tratado, se
desprezaria o fato de não poder ficar com seu grupo familiar, de não
decidir quase nada do seu tempo, se bastaria não ser chicoteado.
Não ser escravo é desejo e direito de todos os seres sencientes.
Não sendo meios para fins humanos, eles devem ter garantido seu direito
à vida e à satisfação de necessidades individuais e sociais.
Apenas no interesse dos próprios animais é que em alguns casos, a
exemplo dos animais domesticados, cabe sua tutela visando à proteção.
Se não queremos cometer diariamente injustiças com seres inocentes,
resta-nos o caminho de repensar e alterar práticas, tendo como horizonte
o fato de que cultura alguma é imutável; todas são, a seu modo,
dinâmicas.
É certo que o raciocínio ético se situa na base da
mudança, mas de fato não é uma mudança fácil: é preciso ser
verdadeiramente aguerrido e bravo para lutar pela liberdade alheia.
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O RODEIO É UMA MANIFESTAÇÃO CULTURAL
Nairo Callegaro – Presidente do MTG
A relação do homem com os animais é ancestral e no Rio Grande do Sul
adquire contornos diferenciados, pela forte identificação do gaúcho com o
campo e suas respectivas lidas.
A figura do homem rural no
lombo de um cavalo, pastoreando gado ou ovelhas, e na companhia de seu
"cusco", ocupa o imaginário popular e carrega em si forte valor
simbólico.
Mas não só: essa imagem retrata fielmente a realidade
das gerações que nos antecederam e também de atuais. É exatamente assim
em muitos recantos do nosso Estado.
Por esta razão, o Movimento
Tradicionalista Gaúcho não considera esporte as práticas de laço,
gineteada, chasque e de rédeas, tão comuns por estes pagos, mas, sim,
uma manifestação cultural.
O peão não laça para se divertir, mas
porque é seu trabalho no campo, preservando o jeito herdado dos pais,
dos avós, e contribuindo assim para a conservação da memória de nossos
usos e costumes, não somente nos livros de História, mas também de
maneira vivencial, no dia a dia.
Cabe, evidentemente, todo um
cuidado e olhar especiais quando colocamos em pauta a realização de
rodeios, que são eventos demonstrativos dessas práticas para públicos
muitas vezes essencialmente urbanos.
Esses eventos estão
consolidados no Rio Grande do Sul, com forte argumento econômico e
turístico - argumentos, porém, que em hipótese alguma podem estar acima
das garantias de bem-estar animal.
Nesse sentido, há alguns anos,
juntamente com o Ministério Público e com o Conselho Regional de
Veterinária, o MTG auxiliou na elaboração de um documento com diretrizes
para o bem-estar animal para antes, durante e após a realização de cada
evento. A cartilha elenca o que pode, o que não pode, também as
penalidades para quem não cumprir as determinações e apresenta as
considerações de entidades protetoras dos animais.
Alguns exemplos de determinações:
- O transporte dos animais deverá ser realizado em veículos apropriados
e as instalações do local devem garantir a integridade física deles
durante sua chegada, acomodação e alimentação.
- A encilha e
demais peças utilizadas nas montarias, bem como as características do
arreamento, não poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais.
- As cintas, as cilhas e as barrigueiras deverão ser confeccionadas em
lã natural ou em couro, com dimensões adequadas para garantir o conforto
dos animais.
- Os laços utilizados deverão ser confeccionados em couro trançado, sendo proibido o ato de soquear o animal laçado.
- É proibido o uso de esporas com rosetas pontiagudas, nazarenas, ou
qualquer outro instrumento que cause ferimento nos animais, incluindo
aparelhos que provoquem choques elétricos.
- Os animais
utilizados nos eventos/provas poderão dar no máximo 20 voltas o boi e 30
a novilha, respeitando o descanso de 30 minutos entre as voltas nos
lotes de animais.
- A cancha deve ser de grama ou areia.
O
Movimento Tradicionalista Gaúcho tem lutado arduamente para que os
rodeios crioulos mantenham a autenticidade gaúcha, sem a incorporação de
estrangeirismos ou do conceito de "esporte".
O bem-estar animal
e a preservação da nossa mais essencial cultura regional dependem de
todos os
segmentos da sociedade compreenderem que laço é cultura.