“Eu
sou negra, ele é gay, e minha irmã é transgênero - somos uma
família.”
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Ela
pediu para ser adotada e ganhou um pai com quem compartilha o amor
pela dança e uma vida nova
Samara
Medeiros escolheu seu pai aos oito anos.
Era
o professor de dança do projeto social do outro lado da rua, o
coreógrafo e bailarino Rubiélson Medeiros. Depois da morte da mãe,
ela e os irmãos passaram por diferentes lares, e ela queria se
sentir segura.
Como
quando Rubi mostrava que tudo iria dar certo, ensinava os passos de
dança, a abraçava e perguntava se seguia indo à escola e se estava
tudo bem. De tanto pedir para ser filha, ele um dia aceitou ser seu
pai. A seguir, a estudante de 17 anos, moradora de Canoas, conta sua
história até formar esta nova família com o pai que ela escolheu e
a irmã que ele lhe deu.
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Depoimento
de Samara :
Faltam
apenas quatro meses para meu aniversário. Trabalho, estudo, tenho
uma gata linda chamada Mel, estou começando a fazer meu passaporte,
pretendo cursar Psicologia e continuar a dançar, sempre. Pois meu
pai é a dança, e foi pela dança que hoje eu estou aqui. Mas nem
sempre foi assim...
Minha
família biológica era formada pela minha mãe, que faleceu quando
eu tinha cinco ou seis anos, não lembro bem. Somos quatro filhos:
Janine, minha irmã mais velha com quem tenho muito contato, mãe de
uma sobrinha que eu amo, o meu irmão de 16 anos que vive com nossa
ex-madrasta, e um irmão que, logo que minha mãe morreu, foi levado
por uma vizinha e, segundo informações do Conselho Tutelar, foi
adotado.
Nunca
mais soubemos dele.
Morei
em tudo o que é lugar, passei fome, frio, fiquei fora da escola por
muitos anos e teve momentos sobre os quais ainda nem consigo
descrever. Enfrentei preconceitos, primeiro por ser pobre, segundo,
negra, depois por não ter mãe. Meu pai biológico teve
dificuldades, e chegamos a ser recolhidos pelos serviços sociais do
Estado. Mesmo assim, meus dois irmãos e eu éramos e somos unidos. A
infanda difícil nos uniiL
Nasci
em Sapucaia do Sul, mas acabamos morando no bairro Mathias Velho, em
Canoas. E, em dezembro de 2007, abriu uma sala de dança em frente ao
local onde morávamos, e alguém nos matriculou para a gente se
ocupar - corríamos muito na rua (risos).
Naquela
sala de dança, conheci o coreógrafo Rubi. Nas primeiras vezes em
que me abraçou, pedi para ele me adotar.
Até
hoje não tem explicação: eu o abracei, olhei nos olhos dele e
disse "Me adota".
Ele,
como nosso professor, adequava as falas e tentava driblar o meu
pedido de adoção, explicando que eu tinha família, e que as coisas
não são assim. Que aquilo era muito sério. Eu desisti.
Quando
os assistentes sociais, ou o Conselho Tutelar batiam na minha casa,
ou quando o clima estava tenso e eu não sabia o que iria acontecer
conosco, pedia novamente para o Rubi me adotar. A assistente social
do projeto de dança orientou-o a não alimentar o assunto, e eles
buscaram auxilio no Estado e na escola para apoiar o novo grupo
familiar em que eu estava inserida, com figuras de avós bem
importantes e que nos ajudaram. Mas eram pessoas da família da
namorada do meu pai biológico, que já não conseguia nos cuidar.
Um
dia, fomos, mais uma vez, convidados a nos retirar da casa. Partimos
para São Leopoldo, onde vivi até os 11 anos, ficando fora da escola
e passando muito frio - mas com bichos, natureza e espaço para
brincar. Depois, esta família se desorganizou, e fomos divididos
mais uma vez. Voltei para Canoas, e tudo voltou a ficar bem difícil.
Lembrei do Rubi e fui atrás dele. Soube que ele havia adotado uma
adolescente e fiquei muuuuito bra- ba, já que um dia havia pedido
para ele me adotar e não deu.
Então,
prometi: eu seria filha dele! Eu tinha 12 anos.
Ligamos
para o Rubi a cobrar e agendamos uma conversa. Ele como sempre alegre
e com aquele abraço carinhoso nos levou para conhecermos o
McDonald's, um sonho de infanda. Falou que, como amigo, iria nos
auxiliar.
Conheci,
então, a América, hoje minha irmã.
Logo
que ela me viu disse: "Meu pai fala muito em ti! Que você era a
menina que ele sempre quis auxiliar como pai e que você já havia
pedido". No inicio, eu não me dava bem com América, pois ela
já era cuidada pelo Rubi.
Claro
que a América precisava muito. Quando descobri sua história de
vida, percebi o quanto.
Naquela
época, o Rubi estava viajando, morando em dois Estados (entre Santa
Catarina e Rio Grande do Sul).
Eu
estava desconfortável, com medo de voltar para o Conselho Tutelar.
Ele
sempre perguntava como eu estava, se alguém estava me maltratando, e
me matriculou na escola.
Com
ele, aprendi a dançar e a dar aulas. Ele sempre acredita que no
final as coisas vão dar certo, e, de uma certa forma, sempre dão.
Um
dia, depois da apresentação em um evento beneficente, pedi para
talar com Rubi no camarim.
Era
tudo ou nada.
Disse
a ele que não tinha mais onde morar, que as pessoas onde eu vivia
estavam reclamando de mim e que todas as possibilidades estavam
esgotadas
.
Pela terceira vez, pedi que me adotasse. Rubi havia recém chegado de
uma tumê de dança pelos Estados Unidos, estava feliz.
E
ele é um homem bom.
“Se
realmente tu não tens onde ficar e for de direito a minha
responsabilidade por ti, digo 'sim!"
No
outro dia, ele foi ao Conselho Tutelar e ficou responsável por mim.
De lá para cá, minha vida mudou.
A
primeira coisa foi descobrir que meu futuro pai não era rico(risos).
Ele
aparecia na TV, no jornal, fazia shows e andava bem vestido, mas não
havia mordomos, carrões, empregada, nada.
Era
tudo pequeno, simples, ele faz tudo, e a gente também entra no
ritmo.
Ali
encontrei cuidado, infra estrutura e amor.
E
regras: ele pegava e pega pesado na rotina escolar e, quando fiz 14
anos, preparou a mim e a América para fazer estágio, buscar bolsas
de estudos e fazer trabalho voluntário.
Tem
muita conversa, dança, regras e regras, mas também uma coisa que
transborda na minha relação com meu pai: amor e compreensão.
Eu
sou negra, ele é gay, e minha irmã é transgênero - somos uma
família.
Ter
guarda, tutela e ser adotado são processos lentos, que às vezes nos
desestabilizam.
Assumir
a paternidade de adolescentes ainda é muito raro.
Mas,
mesmo assim, meu pai diz que não fomos questionados por não ser uma
família tradicional.
Hoje,
vivemos uma fase muito legal: estudar e trabalhar é o lema da casa.
E
ser feliz, aceitar que dói menos e levar a vida leve.
Estou
no meu segundo estágio pelo Centro de Integração Escola e Empresa,
sou aprendiz no Colégio La Salle de Canoas, estou organizando meu
passaporte para dançar com meu pai fora do Brasil, e estamos
gravando um filme que aborda exatamente as questões entre eu, minha
irmã e meu pai.
Somos
uma família formada pela dança.
0
Rubi sempre quis ser pai, e eu sempre soube que seria filha dele.
Sabia que não poderia deixá-lo escapar.
E
assim hoje estamos eu, América e Rubi, meu pai.
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Matéria
publicada no Caderno Donna ZH 12/08/2017
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